Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

A luz revela-se às escuras - Raquel Feliciano




Diário Digital - terça-feira, 22 de Dezembro de 2009
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Miguel Matos entregou-se à contemplação do cosmos na exposição de Raquel Feliciano na Galeria Alecrim 50.
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Arredondadas sombras negras revelam pontos de luz, como estrelas. Ao lado, fotografias escuras da superfície do mar remetem para a mesma ideia. É a junção de elementos opostos, o princípio que levou Raquel Feliciano a apresentar estes trabalhos. A artista desenha, de forma quase invisível, com uma solução de sais de prata sobre papel, que depois expõe à luz, luz essa que lhe revela a imagem final. 

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O desenho às cegas serve como metáfora para a criação, mito da génese cósmica evocada nas imagens de escuridão, salpicadas de pontos brancos. Possíveis constelações? Por estas imagens passa também o processo de fotograma. Raquel interpõe, entre a luz e o papel, uma película manchada a tinta-da-china que lhe marca os tais pontos brancos. 
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O bloquear da luz que nos devolve posteriormente a luz das estrelas. São técnicas inspiradas em processos fotográficos antigos e que, retrabalhados de forma experimental, dão a estas obras o seu carácter inovador, fresco, de surpresa e mistério. No século XIX, inglês William Henry Fox Talbot criava desenhos fotográficos com plantas sobre papel foto-sensível. É a partir destes primórdios da fotografia artística que Raquel Feliciano baralha os dados e apresenta estas imagens poéticas, que convidam à contemplação.
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“Quando era mais nova, tinha um grande fascínio pela astronomia e pela cosmologia. O mistério da formação das estrelas e das galáxias sempre me interessou”, revela Raquel Feliciano. “Recentemente voltei a ler coisas no âmbito da física para fazer relações com o meu trabalho. Interessa-me explorar as relações entre o micro e o macro, as analogias entre o muito grande e o muito pequeno, entre o homem e aquilo que o transcende em escala.” 
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Este é um trabalho sobre a luz e a escuridão e de como elas se podem unir. A luz só existe em confronto com a escuridão e é nestas fotografias e desenhos-fotograma que ela se revela. 
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De forma mais abstracta numas obras, mais figurativa noutras. Nas fotografias que ladeiam os desenhos, o lado evocativo e metafórico da imagem destaca-se por ser mais evidente. São imagens de água pontilhadas por focos de luz que mais não são do que o reflexo do sol no mar ou no rio. Esses pontos originados pelo reflexo de luzes fazem mais uma vez lembrar corpos celestes. “São estrelas do mar”, comenta Raquel com um sorriso. “Às vezes fotografo de forma muito intuitiva, depois apercebo-me de que existe alguma coisa substancial e decido explorá-la. Aqui há o casamento do céu e da terra.” 
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Na última edição da exposição “7 Artistas ao 10 Mês”, na Fundação Calouste Gulbenkian, Raquel figurou entre os artistas seleccionados. Aí apresentou desenhos com montanhas e aves de rapina, que simbolizavam a junção de dois elementos essenciais: o ar e a terra. Nesta exposição, conseguiu juntar os outros dois: a água (do mar) e o fogo (das estrelas).
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Alguns artistas começam, neste momento, a regressar a uma vertente da arte que privilegia de novo a contemplação, tão desprezada que tem estado nos últimos anos. Raquel Feliciano re-aproxima a arte desta introspecção, desta paragem para reflexão: “Acho que isso é um traço de carácter. Sou uma pessoa contemplativa e bastante sensível à beleza e à natureza, quer visualmente quer intelectualmente. Penso nas ligações entre a natureza e a filosofia, até mesmo no campo da teologia. Para mim é tudo a mesma coisa e a arte entra nessa interrogação sobre a relação do Homem com o Cosmos.” 
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Esta pertinência da reflexão junta-se a um lado técnico acentuado que reforça também o mistério intrigante das imagens. Na arte que Raquel Feliciano produz, tem de existir sempre algum encantamento. E isso pode surgir pela beleza, pelo assombramento. “Não acho que toda a arte tenha de ser necessariamente bela e harmoniosa, mas em geral procuro criar obras que transmitam silêncio e contemplação. No entanto, isso tem estado em desuso e como tal sentia-me fora do meu tempo. Lembro-me de quando eu estava a estudar, aquilo que eu queria fazer parecia desajustado. No fundo, acho que a beleza é um canal de comunicação com o espectador que faz pensar e permite tocar pessoas diferentes de maneiras diferentes”. As imagens de Raquel Feliciano não são buracos negros, mas têm o poder de sugar a nossa atenção por alguns instantes, ao ponto de nada mais existir do que o nosso cosmos interior. E é tudo um efeito de luz. 
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A exposição de Raquel Feliciano está patente na Galeria Alecrim 50 (Rua do Alecrim, 48/59) até 16 de Janeiro. Aberta de segunda a sexta das 11.00 às 19.00. Sábado das 11.00 às 13.30 e das 16.00 às 19.00. A entrada é gratuita.
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