Fernando Lemos: Eu sou a fotografia
O surrealista Fernando Lemos veio do Brasil com negativos na mala para tirar deles fotografias inéditas dos tempos em que abriu caminho na escuridão criativa dos anos 50. Fotografias nunca antes vistas em público.
Conversámos com Fernando Lemos no dia em que estava marcada a viagem para Vila Nova de Famalicão, onde a Fundação Cupertino de Miranda expõe a série realizada nos primeiros anos da década de 50 que o tornaram incontornável na história da fotografia portuguesa. E não só. Ao lado dessas imagens, há novos retratos de amigos feitos “por amor, amizade, respeito intelectual e aprendizagem”.
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Ainda fotografa?
Muito pouco. Considero a fotografia já em mim. Já me perguntaram também se eu era fotógrafo. Respondo: “Não. Eu sou a fotografia”. Em tudo o que vejo, é como se fosse a fotografia a ver essas coisas. Tenho a fotografia na minha cultura visual.
Já cheguei a dizer uma coisa meio escandalosa que é: as câmaras hoje são melhores que os fotógrafos, elas fazem tudo. Levam o serviço pronto até casa…
Quando comecei a ver que toda a gente tinha uma camarazinha e andava fotografando primeiro achei que era um disparate. Depois pensei outra vez e disse para comigo: afinal, uma das coisas boas da fotografia é que ela ensina a ver. E isso é uma grande consagração do desejo da imagem e da autoimagem, do amadorismo, mais do que a coisa profissional. Eu tive tudo para me tornar um profissional, com essa tralha toda às costas. Queriam até que eu fizesse um estúdio, mas disse “não”. Nunca fiz retratos de pessoas que não conhecia. Nem que me pagassem. Não sou essa fotografia, não sou esse fotógrafo.
A gente já sabe que a fotografia foi mais uma vitória industrial do que artística. Não importa se vai sair dela mais ou menos arte. O que é mais importante é que a magia fica ao alcance de toda a gente. No Japão, percebi que as crianças aprendem primeiro a fotografar e só depois a escrever e a desenhar. Elas registam imagens e só depois aprendem a escrita e o desenho. E isto falta-nos no Ocidente - pôr o desenho como uma coisa obrigatória no ensino desde cedo. Não é para ser artista, é para aprender a ver a coisas. A fotografia é a mãe disso. Ela vem da gravura… deu o cinema… Vem da coisa dramática que é a sombra, a luz. Todas as grandes aquisições da arte foram a preto-e-branco, a própria televisão nasceu a preto-e-branco. Ainda hoje quando se vê um filme antigo a preto-e-branco as imagens de sangue não precisam de ser vermelhas. Sabemos que é sangue. Isso não se vai perder nunca. Essa capacidade de interpretar a imagem que em parte se deve à fotografia. A fotografia é a minha maneira de olhar as coisas. Aprendemos a ver a nossa própria realidade, o nosso quotidiano.
As duplas exposições são um dos traços mais distintivos do seu trabalho. Qual é papel do acidental nas imagens que captou?
Tenho-me garantido mais por juízos de gente nova. Ultimamente tenho-me dado até mais com fotógrafos. Aos artistas plásticos nem quero vê-los à frente – todos chatos e intimistas. O que os mais novos me dizem é que estas fotografias parecem ter sido feitas hoje. E isso para mim é uma revelação espantosa. Eu digo-lhes que quando tirei estas fotografias tinha a idade deles, uns vinte anos. Foi como se tivesse esgotado o primeiro estágio de uma arte visual. Quando as tirei não estava preocupado com o tempo. Não tenho nas minhas fotografias grandes revelações, não tenho um automóvel, o beijo na rua, essa coisa toda dos artistas franceses. Nunca fiz isso.
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Mas quando está a fazer a dupla exposição não está à espera que o acidental também faça o seu trabalho?
Sem dúvida. Como não tinha uma máquina automática, era preciso passar o rolo manualmente, aquilo a que se chamava “mão na roda”. O que queria preparar na composição era um pensamento mais pictórico e gráfico. No fundo, considero-me gráfico em tudo o que faço. Quando imaginava uma certa situação para um retrato, ocultava uma parte da captura da imagem já preparando a outra, como se estivesse pintando, fazendo com que a matéria fosse aderindo uma à outra, transformando esta pele deste corpo na mesma pele do outro corpo que é o mesmo repetido. Há aqui alguma herança cubista, na medida em que de uma posição vemos vários ângulos do objecto. Os meus corpos também se foram mostrando dos vários lados. No retrato, tentei passar as possíveis fisionomias que vamos tendo em poucas fracções de segundo e de que não damos conta. Os retratos não são uma coisa estática. Há uma mudança de gesto, de olhar. Dentro disto, é claro que há o flagrante, há o instante. Saber se a luz está boa ou não, tudo isso para mim é secundário. O desafiante é esse “flagra”. O fotógrafo também é uma testemunha. Ele vem testemunhar fenómenos que desconhece, aos quais é alheio. Não como repórter, mas como fotógrafo que assiste ao acidente.
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Escreveu na exposição Refotos [SNBA, Lisboa, 1982]: “Não se pretendeu criar nenhuma ruptura no conceito solene da santa fotografia. Não temos nada contra os fotógrafos, nem as máquinas fotográficas, a não ser quando eles são menos eficientes que elas e lhes obedecem cegamente deixando-as fazer praticamente tudo”. Como é que olha hoje para o advento da fotografia digital?
O universo que se estendeu através do digital é uma grande conquista, como todas as outras grandes conquistas, como o teatro, o cinema. No início, foram um grande susto. O digital trouxe mais elementos tecnológicos, novas coisas ligadas à velocidade. E na velocidade há uma coisa que acho má: a pressa. Isso está deturpando e dando ao digital recursos de uma liberdade ao serviço da publicidade, coisas secundárias, coisas da arte do agrado, da arte do bonitinho. Afastou-se daquilo que acho importante na arte que é o fingimento. O Gaston Bachelard sabe o que isso quer dizer, o “devaneio” que a própria fotografia faz à volta da realidade.
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O digital cresceu, mas a mudança que se pode fazer dentro dele é discutível… é como discutir o facto de se ter dado cor ao cinema. Que nem é bem a cor, é mais a colorização. A fotografia em branco e preto ainda tem a dramatização… O cinema aprendeu isso.
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Quando digo que já sou a fotografia, já estou a ver também quando é que sou a fotografia digital. Se se meter numa imagem um pássaro todo quadriculado e roxo, isso é uma coisa da publicidade, para atingir um certo tipo de gosto, um certo tipo de público. É como se se estivesse a vender sabonetes. Não tenho nenhuma guerra aberta com o digital. Mas prefiro ser eu a controlar aí uns 85 por cento e deixar o resto para os automatismos.
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É verdade que às vezes prefere o resultado do que aparece no negativo do que a imagem que é ampliada a partir dele?
Sim, é verdade. Prefiro a imagem do negativo no sentido da surpresa do registo. A fotografia para mim é um percurso meio aquático. Na hora de tirar uma cópia da banheira, dá ideia que se está a pescar um peixe, fresquinho. A fotografia para mim também é a transparência. A transparência é uma forma de espionagem. Apanhamos certas coisas e nem sabemos que as apanhámos. Como um furto. O olhar fotográfico pode furtar da realidade coisas de que nem nos apercebemos. No negativo, a transparência torna-se importante. Há dados nessa imagem… uma fraqueza de luz num lugar… mais preto num canto, como se se estive a colorir ou desenhar. Como fotógrafo, tenho directrizes já bem definidas e que passei várias vezes para o laboratório e tentei passar para o António [impressor de Lisboa]: “os pretos são pretos porque são feitos com tinta-da-china, os brancos são os brancos do papel. Considere sempre que estou desenhando, e invente nos meios-tons, nos cinzentos. Isso é um trabalho seu, do laboratório”.
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E incomoda-o o retoque?
Acho que o retoque é como a última solução, uma coisa a que não se pode fugir. É como as nossas rugas. No retoque que se faz por causa dos danos do tempo corre-se o risco de se perder tempo, demora muito para ficar bem feito, e sempre um remendo, uma maquilhagem, um botox. É melhor deixar como está.
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É raro alguém conseguir apontar a “sua” primeira fotografia. O Fernando tem esse momento bem presente na vista tirada da sua casa, na Rua do Sol ao Rato, em Lisboa. O que é que recorda desse momento?
No grupo surrealista ninguém estava interessado em usar a fotografia. Havia umas colagens, mas não se usava para reproduzir. A fotografia aproximou-se de mim por causa do rosto, do nosso rosto como portugueses. Até aí, achava que não havia nada que nos desse a cara da nossa gente. Nas artes plásticas, muito pouco. Lembrei-me da fotografia e pensei que a cara das pessoas com quem tinha amizade já era algo que valia a pena, um começo para essa colecta de retratos por amor, por amizade, por respeito intelectual, por aprendizagem.
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Resolvi comprar uma câmara, a mais barata que consegui. Felizmente tinha uma lente fenomenal e a vantagem de não ser automática. Morava num quinto andar. No dia seguinte, assim que acordei, peguei nela e fui à cozinha que tinha uma janelinha pequena. Não resisti. Era a minha rua, o meu bairro, o sítio onde nasci. Decidi: é aqui que vai acontecer a minha primeira fotografia. E sempre a coloquei assim.
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No catálogo da exposição da Casa Jalco [exposição surrealista com Fernando de Azevedo e Vespeira, 1952], António Pedro dizia que “pintava com a máquina fotográfica e com os pincéis”. Este é talvez o resumo perfeito para explicar a indiferenciação entre o pintor e o fotógrafo. Revê-se nesta descrição enquanto criador?
Não há distinção. Sou muito gráfico. Faço tudo com uma visão gráfica. Executei a fotografia como se estivesse pintando, usando matéria para ela se fundir, para adquirir as qualidades da pintura, mas do que as qualidades da fotografia, como o recorte. O Manuel Bandeira, que fez um texto para a minha primeira exposição no Rio de Janeiro também se refere a esta questão…
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…dizia que se “sente o pintor nas suas fotografias”…
Porque a fotografia não foi feita para imitar a pintura, mas para ser a técnica da fusão. A pintura é uma adesão, uma adesão de vários gestos coloridos através da cor. O desenho é uma arte de um gesto só. O desenho é uma arte de alta precisão como o electrocardiograma. Não tem retoque. A pintura pode ter retoque. Vamos pondo e tirando, mudando de cor, de formato. Na fotografia há todo um outro gesto. Na fotografia e no desenho há uma soma de gestos num único olhar. A mão quando chega já é uma ferramenta.
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O desafio de chegar ao campo do surrealismo pela fotografia é maior do que pelas outras artes, como pela pintura ou pela poesia?
Sim, é verdade. Os trabalhos que me impressionaram mais no surrealismo foram aqueles que usaram a fotografia. Mesmo quando não era “a” fotografia de uma coisa mas o uso de coisas que tinham sido fotografadas e depois coladas, rasgadas, intervenções nas chamadas ocultações que foram produtos de vários artistas. A produção do Max Ernst, por exemplo, pega muito em coisas feitas e cria obras novas.
Na fotografia surrealista a bandeira da liberdade era mais exposta. A fotografia contém uma certa ideia de liberdade, na acção, na captação de tudo. O conceito de liberdade aparece mais na fotografia, do que em outra coisa qualquer. Justamente porque ela foi uma testemunha. É a prova de que foi uma coisa livre. Se não foi livre, ela denuncia. Essa ideia da liberdade está sempre em jogo. A fotografia tem esse poder.
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A criação em campo aberto, em liberdade total, é também uma ideia muito ligada ao surrealismo…
Exactamente. Das coisas importantes depois da guerra – a Europa estava enferma, desgovernada e triste – foi nós surgirmos como um surto de alegria, de bem-estar, de optimismo, em contraponto com a ideia de que o mundo tinha acabado. Tivemos um pouco essa ousadia de dizer “o mundo não acabou, não pode acabar. Agora é que começou”.
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Fala-se sempre da influência da obra de Man Ray na sua obra fotográfica. Que alcance teve o surrealismo de Ray nas imagens que produziu?
Vim a conhecer o Man Ray depois de fazer aquelas fotografias. Não tínhamos assim tanta informação sobre o que se passava lá fora. Quando descobri o trabalho dele achei que era um gajo porreiro. Mas a influência de man Ray – que conheci em Paris – nem foi pela fotografia. Foi mais por essa postura multifacetada perante os vários suportes de criação. Ele era um artista total. Deu lições radicais sobre várias coisas, inclusive na publicidade. Considero-o importante, mas diria que me senti mais influenciado pelo Max Ernst, por exemplo.
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Quer dizer que a sua fotografia foi mais influenciada pela pintura?
Sim. Na fotografia vi muitas coisas, e ainda vejo, mas tenho ideia que as origens são sempre as mesmas. Esse surrealismo de figurinha sifilítica herdada do Dalí, essa coisa do erotismo, da masturbação e dos corpos estragados são meio “demodé”. Para mim, a fotografia do Man Ray é música de câmara, quer dizer, é muito laboratório.
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Entende a fotografia mais como um processo de destruição ou construção da realidade?
A construção e a destruição estão em mim como um temperamento que me leva a fazer tudo. A minha obra tem sido analisada nesse sentido. O tipo de trabalho de sensualidade que eu coloco numa coisa é feito a partir da destruição dessa coisa. Não para ela ser substituída, mas para ela ser uma construção. Mesmo no caos é possível existir alguma regra. No caos é preciso aproveitar a lição, todas as equações de um projecto que se construiu. Mostrar o que já nele há de destruição. Pode ser o tempo, um erro de cálculo, o mau uso, uma guerra, uma fatalidade. Há uma herança sensual de querer… não é uma coisa mórbida de querer ter relações sexuais com cadáveres. É uma coisa mais ligada à ideia de permanência de valores. Não os valores de permanência, que podem levar ao fascismo, mas à permanência daquilo que são realmente valores, como é a força da arte.
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Numa entrevista disse que a sua fotografia era “sensorial e quase primitiva”. Quer aprofundar esta descrição?
Tenho insistido muito nesta ideia para afastar qualquer pretensão de que sirvo de exemplo para alguma grande teoria da fotografia. Nem o efeito das exposições e os prémios me convencem que sou um caso excepcional. Entrei na fotografia como um primitivo. Esta descrição é como uma defesa. É também sinal de alguma cobardia em eu não querer assumir um estatuto. Entrei na fotografia por acaso. Eu sou o acaso, sou um primitivo. E isto não tem nada a ver com o folclórico, com a arte primeira. Primitivo é no sentido de quem chegou à fotografia por acaso. Parece que deu certo. Ainda bem.
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A partir de determinada altura deixou de recorrer à fotografia como suporte criativo. Porquê?
Sou muito mais gráfico. Sou muito mais ligado ao desenho e ao texto, que são artes ligadas ao gesto. Entendo a fotografia mais como uma ferramenta do resultado, o último gesto de uma criação. É uma arte final. É por isso que eu considero a fotografia já em mim e digo “eu sou a fotografia”. É porque eu já sou um produto acabado, deixei de ser um “layout” para ser mais uma arte final.
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É apresentado como o único fotógrafo surrealista português dos anos 50. No entanto, no ano passado, um leilão em Lisboa revelou um outro fotógrafo que encontrou inspiração na mesma corrente artística no final dos anos 50, Victor Palla. Já viu essas imagens?
Vi. Gostei o trabalho dele. Admirava-o muito por causa das capas de livros que criava. Era das poucas coisas que se faziam bem em Portugal. Eram novas, não provincianas. Tive uma ou duas vezes com ele, mas não falámos de fotografia. Havia entre nós uma apreciação meio secreta.
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Havia uma admiração mútua?
Sem dúvida. Ele sabia que o admirava e eu sabia que ele me admirava. Durante mais de 50 e tal anos de afastamento perdi muitos detalhes das pessoas. Fui assistindo a tudo isso à distância. O tempo distanciou-me. Quando recebi o prémio do Centro Português de Fotografia [Prémio Nacional de Fotografia] nem sabia que existia. Quando a Tereza [Siza] me disse que o Palla tinha vencido a primeira edição, disse: “Ainda bem. Foi bem entregue”.
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Na prática, o seu exemplo não foi seguido de maneira consequente nos anos seguintes. O Estado Novo venceu o surrealismo?
Não sei. Sob certos aspectos talvez tenha vencido. Mas não se pode falar em vitória. Um Estado que não teve capacidade para outra coisa que não fosse instaurar medo, destruição do lado humano do português, e querer exaltar a história de Portugal… Ele não destruiu só o surrealismo, ele destruiu o próprio processo histórico. Fez a feira popular com aquelas coisas todas feitas de estafa e gesso. Eles estragaram toda a festa. O António Ferro é uma figura discutível, mas ainda tentou salvar a cara, mas não deu certo. Não conseguiu. Os discursos do Salazar foram uma anedota, meio hilários, meio dementes. Só um povo humilde como o nosso podia aceitar aquela situação. Até a polícia política era a mais atrasada delas todas. Vieram aqui os profissionais das SS alemãs dar treinos, mas nem assim eles aprenderam. Eram todos uns sacanas sem categoria nenhuma. Eram uns denunciantes, sacaneando o vizinho.
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O livro Lisboa, Cidade Triste e Alegre vai ser reeditado em Dezembro. Partilha do entusiasmo que gira à volta desta obra?
Partilho. É uma boa notícia. O livro tem uma reputação enorme. Dá uma versão de Lisboa absolutamente adequada. É uma fotografia que eterniza certas coisas de Lisboa. É a tal história da permanência de valores. Há ali certas coisas que não vão acabar nunca, nem com a morte da gente. São coisas que vão ficar. Lisboa tem uma história, é das poucas cidades no mundo com várias características próprias que não são palpáveis em outros lugares. Tenho pregado muito esse sermão. Para um fotógrafo, a forma urbanística da implantação de Lisboa é muito interessante. Uma cidade que criou estas estreitezas todas fica parecida com um brinquedo de armar. A gente corta e monta em casa.
E o livro reflecte isso…
Reflecte isso e dá uma lição humanista. Lisboa é a minha cidade. O livro do Palla/Martins dá-nos uma Lisboa que não pode ser igualada por mais ninguém. A boniteza de Lisboa não foi idealizada, foi uma coisa que aconteceu. E isto do acontecer não é só importante na fotografia, mas em relação a todo o objecto de arte. Só é objecto de arte, aquilo que inaugura. Todo o gesto de arte é inaugurante, o que funda uma coisa. O resto, são tudo derivados. Quando a coisa se torna torna inconfundível … e o que é que é o belo? O belo é quando a coisa deu certo. O belo é quando a fórmula é bem sucedida. E Lisboa dá-me essa sensação. Pode ser uma ilusão minha, uma bebedeira, mas acho que Lisboa é um gesto fundador.
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A exposição inaugurada na Fundação Cupertino de Miranda tem fotografias inéditas. Quando andou a mexer de novo nos seus negativos o que é que procurou?
Muito pouca coisa. Não fui à procura de nada que fosse exclusivo. Há uma ou outra imagem que já podia ter sido ampliado antes. Mas não me preocupei muito com isso. Não sou pesquisador.
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No novo conjunto continua a existir muito retrato. Prevalece um tipo de retrato psicológico, mais voltado para a sugestão do que para a fisionomia. O que é que procura transmitir com este estilo?
Procuro mostrar que somos vários. Quando aparecemos em qualquer situação, não temos uma cara fixa, não somos uma máscara. Quis captar os retratos desta forma para se perceber que temos na nossa cara um mundo de coisas para explodir, para esconder. Não se fica a conhecer uma pessoa ao olhar para a calça, para o sapato. Conhecemos, quando olhamos para o rosto das pessoas. É na cara que está tudo e não sabemos os códigos disso. Na procura do retrato entra-se um pouquinho nesses códigos.
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Continua a tentar “adivinhar a idade do futuro”?
Ouvi essa expressão numa entrevista ao Philip Glass. Ele dizia que não sabia a idade do futuro. Achei interessante. Sabe-se a idade do passado, do presente, mas qual é a idade do futuro? Fiquei a pensar nisso. Depois do livro do Saramago, “As Intermitências da Morte”, eu chego a ter medo que a morte me esqueça. É um pouco hilária esta coisa toda, a gente é que toma tudo muito a sério. É a questão também do surrealismo, o não tomar a sério. Mas é preciso levar as pessoas a entenderem que só gente séria é que pode brincar.
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