Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

desurbanandarilhando


A Tetra e o Pote de Água (Lanchoa), no tempo em que os animais por lá pastavam, a long time ago
(fotos victor nogueira - provas de contacto) 


* Victor Nogueira

1986

Está o Sérgio muito aborrecido porque agora entra todos os dias cerca das 9 horas. Compreende-se o seu aborrecimento: mora em Carcavelos e tem de levantar-se mais cedo. Porquê? Porque ele e outros arquitectos e engenheiros que moram em Lisboa e arredores juntam-se para vir de carro, ora no de um, ora no de outro. Só que agora há uma nova passageira, a Lídia, nova aqui na Câmara, onde quer chegar às nove e não cerca das dez, como sucedia.(...)

De vez em quando tenho de interromper o meu bate-papo  para tratar de outros assuntos. Fui há pouco a casa levar uns sapatos que estavam no sapateiro e aproveitei para trazer o rádio Hitachi que neste momento está tocando. Mas o aparelho está cansado, tem mais de vinte anos de uso e trabalha com um volume de som ondulante.

Hoje é um grande dia. A Teresa já veio dar-me trabalho: fazer o levantamento das escolas primárias do município, sua localização em carta topográfica e respectivas populações. Depois seguir-se-ão creches, infantários e escolas preparatórias e secundárias, de modo a permitir a sua criação à medida das necessidades decorrentes do aumento ou construção em novas urbanizações. Como se isto não bastasse apareceu aqui há pouco o vereador perguntando-me se já tinha acabado os processos de concurso [de cujos júris sou Presidente] e o que estava fazendo; pelo  que lhe disse que estavam praticamente concluídos e que nunca na minha vida tinha estado tão descansado como agora. De modo que o homem lá se foi embora, dizendo que era necessário pôr a Divisão de Planeamento a funcionar, o que não  é problema meu, pois [já] não tenho funções de direcção ou de chefia e já não estou para inventar trabalho. 

Bem, vou interromper de novo a nossa conversa, para continuar as minhas leituras; presentemente ando às voltas com a "Peregrinação"  do Fernão Mendes Pinto  e com os "Sermões" do Pe. António Vieira. (MMA 1986.06.05)

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Hoje está uma brisa fresca, agitando as árvores além na rua e a roupa desfraldada nos estendais do prédio em fronteiro. A Arminda come iogurte, enquanto lê um livro sobre legislação que encomendei e chegou hoje. Está sempre a comer e não sei se é da gravidez adiantada, se sempre foi assim, embora antigamente, quando ia  ao Departamento de Pessoal, fosse magrinha.

No estirador a Vanda desenha fichas para os inquéritos que ela e outros jovens do OTJ irão fazer -levantamentos dos edifícios com interesse municipal e dos estabelecimentos de ensino escolar e pré-escolar. A Vanda tem 18 anos e tivemos de pô-la aqui no Gabinete, pois com o seu ar ingénuo e a vestimenta à punk já trazia os desenhadores ali na sala ao lado muito alvoreados. Enfim ...

Quarta feira vou à Câmara do Barreiro falar com o meu colega Rui Banha, do Planeamento Urbanístico, para "cultivar-me". (MMA 1986.06)

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A Arminda e o Sérgio estão ali numa animada conversa sobre a visita que na 2ª feira passada efectuaram a Vale da Rosa, no concelho de Alcoutim., lugarejo perdido em caminhos de cabras pelos cabeços da Serra Algarvia. Afinal não fizeram "gazeta" ao serviço. A finalidade da visita foi verem uma central de energia solar que serve cinco casas e catorze pessoas que, numa região paupérrima, passaram a dispor de um  telefone, luz eléctrica, duas arcas frigoríficas e ... dois televisores a cores! Entretanto, ali ao lado, como sempre, uma grande barulheira na sala dos desenhadores, verdadeiramente incomodativa.

Também como habitualmente muito pouco tenho para fazer, sendo este o principal motivo porque escrevo tão assiduamente. Aguardo com uma certa curiosidade a  carta da Maria do Mar e o que nela me dirá. (...) Gostaria de ser muito mais simples, mas não sou, pelo contrário. Muito mais simples, menos exigente e de ligar mais facilmente à terra. Mas não consigo e morrerei com este jeito, certo de que a lucidez e a capacidade de análise das situações, por si só, não chegam.

(...) Já voltei do almoço. Estive a ver como havia de responder ali a um inquérito sobre habitação, mas só amanhã voltarei a pegar no assunto, para ter algo para fazer; é caso para dizer que é necessário fazer render o peixe. Tenho praticamente terminados os concursos de promoção e de reenquadramento [do Departamento de Pessoal], bem como o processo disciplinar por falta de assiduidade, faltando-me decidir se devo interrogar de novo o arguido, em face de documentos que requisitei ao Departamento de Pessoal. Mas nada disso tem a ver com as minhas funções aqui (no Gabinete do Plano Director Municipal). Lembrar-me que antigamente tinha de "comprimir-me" para resolver o máximo de assuntos no mínimo de tempo, tratando uma quantidade deles simultaneamente! (MMA 1986.06.04)

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Olho pela janela e um rebanho de ovelhas vai ali pela placa central da avenida [Bento Caraça], por entre a lataria dos automóveis, vestígio do tempo em que esta era uma zona rural, como testemunham o olival além atrás e os nomes das  ruas do Bairro da Belavista. De repente aumenta o movimento automóvel e apercebo-me que é meio dia e trinta e que vão sendo horas de abalada, pois vou almoçar à Baixa, para debater algumas questões político-partidárias. (....) (MMA 1986.12.03)

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(...) Resolvi alterar as minhas férias, mudando o seu início de 1 para 18, pois quero deixar prontos os boletins de inquéritos às populações de bairros degradados, a realojar Deus sabe quando ! (MMA 1986.07.28)

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O Rádio Clube de Setúbal transmite música antigota: há pouco, p.ex, El Reloj, de António Prieto, agora Et Pourtant, de Charles Aznavour. Está um fim de dia cinzento e frio, embora a cozinha esteja cheia de luz, como se fosse dia; estou encantado com os girassóis colhidos na berma da estrada e que alegram a nudez e o ascetismo desta casa, agora entregue apenas a mim. (MMA - 1986.12.11)

1990

A mudança da paragem do autocarro tornou o café mais frequentado e menos remansoso em determinadas horas, quando se amontoa pessoal aparecido sabe-se lá de onde. Contudo, em certas horas, ainda continua a ser um local agradável, acolhedor, como simpáticas são normalmente as proprietárias, entre a malta conhecidas como as "manas gordas". Há um outro café, o das escadinhas, também simpático embora mais calmo por não estar em sítio de passagem ou junto a paragem de autocarro.

Aqui nesta zona residencial ficam parte dos serviços municipais, em área que era para ser um centro comercial, e talvez isso explique o hábito que se criou nos cafés das redondezas dos clientes levarem os comes e bebes para a mesa e, muitas vezes, de retorno para o balcão.

(...) E foi assim que tudo começou: escolhida a mesa, uns sentaram-se e outros ficaram a fazer o avio e por isso só depois reparámos que a mesa escolhida estava suja, pelo que pedimos às manas que a limpassem, o que lhes caiu mal, enervou e fez com que uma delas derramasse a cafeteira do chá a ferver sobre as minhas calças o que, diga-se de passagem, não foi pêra doce. Por isso, uma hora depois, estava "caído" no Centro de Enfermagem, porque me doía cada vez mais o local da queimadura.  (CTT - 1990.03.12)

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Daqui a pouco vou até Lisboa para mais uma  reunião sindical, pelo que não vale a pena ir ali ao arquivo e á secretaria em busca de volumosos e pouco apetitosos processos de obras ou requerimentos de viabilidade para retirar de cada  um duas informações para um inquérito industrial do INE sobre loteamentos industriais. De modo que prossigo o alinhavar de linhas para a Musa d'Ante, os ouvidos massacrados pela agudeza e guincharia da música que em alto som irrompe ali da sala da Manel e da Célia, da qual estou separado apenas por um armário de madeira que não chega ao topo. (MMA 1990.09.19)

1993

Hoje estou nos meus dias de pedrada. E quando tal acontece aborrece-me estar sozinho. embora não me apeteça estar com qualquer pessoa. (...)  O primeiro dia de trabalho está terminado e parece que as férias foram há muito tempo. O regresso foi como sempre: bacalhoadas para a direita, algumas beijocas para a esquerda, um sucinto relatório das mesmas com perguntas idênticas ao(s) interlocutor(es)  e interrogações sobre as  fotografias de férias. Vá lá  que a arquitecta Nina, que foi ao Brasil ver a família e mostrar a  Mariana, a criancinha que é o enlevo dela como mãe babosa,  não se esqueceu das moedas para a minha colecção. 

Para além disso foi um dia de grande chateação. A minha secretária estava limpa e arrumada, tal como a deixara. Embora tenham deixado de distribuir-me trabalho, a minha categoria profissional dá-me liberdade para apresentar e desenvolver propostas e projectos de trabalho. Mas isto exige um mínimo de meios que não me dão ou retiram, para me cortarem a veleidade de fazer qualquer coisa. Há uns três anos tiraram-me o apoio administrativo e há dois meses o computador.  Sem ovos é difícil fazer omoletes. Ás 17:00 horas, farto da pasmaceira geral, de conversa para encher tempo e sem nada para fazer, disse adeus ao pessoal e fui curtir a minha chateação e desalento para o Jumbo, para comprar fruta, peixe, iogurtes, queijo, manteiga e algumas coisas mais. (MMA 1993.09.08)

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Na Praça do Bocage há uma alva barraquinha estilo mourisco, inaugurada hoje, contendo as principais peças do Plano Director Municipal, agora em fase de discussão pública. Lá estava a minha querida directora, rodeada de alguns colegas nossos, que ainda de longe me fez um correspondido aceno de mão com um sorriso de derreter o coração do mais incauto, aceno que se transformou numa amena cavaqueira quando cheguei ao pé deles e da barraquinha. (MMA - 1993.09.15)

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Amanhã vou reiniciar a minha aprendizagem com as folhas de cálculo (matemático), interrompida há semanas e recomeçada hoje com umas breves lições do Luís, o informático do STAL. Entre as minhas actividades e responsabilidades extra-laborais  está a coordenação e participação num grupo de trabalho de quadros técnicos da Administração Local. Ora, antes de partir para férias, uma colega nossa ficou de trabalhar uns dados, para permitir a sequência do nosso trabalho relativo à reestruturação de carreiras e revisão do sistema retributivo.  Só que já lá vão umas seis semanas sem que ela tenha feito qualquer coisa, porque anda deprimida. De modo que tenho de ser eu a tratar do assunto, já que não posso permitir que as minhas depressões me façam andar pelos cantos durante muito tempo. (MMA 1993,09,20)

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O João Neves é geógrafo e está a substituir a Isabel e a Maria, que se foram embora da Câmara, onde estavam a recibo verde. Com ele faço agora equipa para prosseguir o  levantamento, caracterização e programação do equipamento colectivo. Agora andamos ás voltas com o equipamento desportivo,  ao qual se seguirá a rede escolar. De modo que saímos de manhã com o R4 do Departamento a percorrer o município, localizando em carta e preenchendo um inquérito, o que me agrada mais do que passar o dia encafuado num gabinete sempre com a mesma paisagem a as mesmas pessoas. E como não levamos motorista, sou eu que vou a conduzir nas calmas, o que me agrada. Quando ando com o meu carro ando sempre na esgalha, o que não sucede com o carro do  serviço (ou do sindicato).

Com isto tudo atrasa-se o meu trabalho sindical, o que me preocupa pois a proposta  do STAL referente á revisão do sistema retributivo dos técnicos superiores não introduz alterações relativamente aos vencimentos dos docs, apesar das propostas feitas em devido tempo pelo grupo de trabalho de que falei. Tenho três semanas até Novembro, quando se realizará o Congresso do STAL,  para tentar dar a volta á situação, pois a maioria dos sindicalistas e dos trabalhadores entendem que nós, técnicos, já ganhamos o  suficiente, quando não demasiado. De modo que se não conseguir dar a volta lá terei de partir a louça no referido Congresso.(MMA 1993.09.26)

1994

Esteve hoje um domingo bonito, soalheiro e primaveril. Mas não me apeteceu andar por aí a deambular sozinho, nem ir a casa do Zé e da Madalena, no Seixal. De modo que fiquei aqui em casa, às voltas com o computador, aperfeiçoando-me na utilização de programas de cálculo matemático e de construção de gráficos. Fora isso fiz por aí uns consertos e reparações, mas como não comprei as buchas para os parafusos ainda não foi desta que instalei a tomada de corrente na parede do corredor para ligar o aquecedor a óleo, que muita falta me tem feito nestes dias frios, de bater o dente. Não encontrei ainda  os vedantes metálicos para as janelas.  (MMA 1994.02.06)

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Antigamente havia mais convivência, porque os gabinetes eram salas enormes cheias de vasos e plantas; agora e desde há uns anos as salas foram sendo divididas e subdivididas em gabinetes cada vez mais minúsculos. As pessoas estão mais isoladas e formam-se grupos e subgrupos, que se encontram em cafés diferentes: os fiscais no café lá em cima, no Largo, os desenhadores neste ou no café das escadinhas, os técnicos no café das escadinhas, abandonado que foi o café das manas [Café Lorimar] na Avenida Bento Caraça], onde continuo a ir com as arquitectas Arminda ou Nina e onde vai o pessoal da secretaria. E isto para não falar na Directora, com o seu séquito (arqº Zé Manel e engª Margarida) que já deixaram de se misturar com o maralhal. (MMA - 1994.02.20)

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Lá se vai dentro em breve o meu privilégio de trabalhar a escassos metros de casa. Vamos mudar para um edifício novo, com quatro ou cinco pisos, no centro da cidade, perto dos Paços do Concelho. Aqui em cima estamos distribuídos por dois pisos no que também esteve para ser um centro comercial, agora transformado em autêntico labirinto, com portas, corredores, escadas e paredes envidraçadas por todo o lado. Uma autêntica ratoeira em caso de sinistro mas, como se costuma dizer, em casa de ferreiro espeto de pau. Sempre é melhor irmos para o Centro da cidade, não só porque há mais economias nas comunicações entre os serviços e nas deslocações dos munícipes, mas também porque há mais vida e movimento lá em baixo. (MMA 1994.02.23)

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Já mudámos de edifício, vai para mês e meio. Agora trabalhamos no centro da cidade, mas as relações entre as pessoas alteraram-se radicalmente no enorme casarão de seis pisos e paredes frias onde se concentraram vários serviços municipais até então espalhados pela cidade. Distribuídos que estamos pelos vários andares com múltiplos corredores e gabinetes, maior é o isolamento pois menos vezes nos cruzamos uns com os outros, para além de se ter tornado menos natural assomarmos e permanecermos nos gabinetes uns dos outros. Fiquei num gabinete pequeno, com o meu colega geógrafo, e porque a sala é pequena e sem estiradores, foi possível torná-lo menos árido e mais acolhedor que os enormes salões onde despejaram engenheiros, arquitectos e desenhadores, perdidos no meio dum espação onde largaram o mobiliário de estilos e feitios díspares.(MMA - 1994.06.20)


(foto Fátima Oliveira)


(com Fátima Oliveira, foto polaroid, autor não identificado)


(foto Arqª Nina Campos) - O velho e já na altura desactualizado PC 286 era exemplar único no Urbanismo apenas usado por mim e por um engenheiro; para o resto do pessoal os computadores eram um bicho aterrorizante. Antes da sua generalização e para o pessoal administrativo de secretariado  foram adquiridas máquinas eléctricas de escrever, Olivetti Margarita, que tinham uma pequena memória, Consegui que me fosse atribuída uma, mas ao contrário de mim os restantes utilizadores usavam-nas como vulgares máquinas de escrever, sem curarem de apreender as suas potencialidades.

Para suprir a retirada do apoio administrativa resolvi frequentar no Instituto da Juventude três módulos de informática: Sistemas Operativos (MS-DOS), Processamento de Texto (Word Star) e Bases de Dados (DBase III Plus). O Windows dava ainda os primeiros passos, o MS-DOS era o predominante, obrigando a escrever os complexos comandos em monitores de baixa resolução e as disquetes atingiam a estonteante capacidade de armazenamento de 1,44 MB. Mas o Vereador  do Urbanismo despachou negativamente a minha solicitação, alegando não haver nela qualquer interessa para o Departamento. Contudo, a Chefia da Divisão comunicou-me que autorizava a minha frequência dos módulos, dispensando-me do serviço, mas que os custos teriam de ser suportados por mim.  Assim sucedeu e lá frequentei as acções de formação em 1990, de Junho a Setembro. Entretanto e em regime de auto aprendizagem estudava um fastidioso programa de cálculo, o Quattro Pro. Mas o processamento de texto em Word Star era um pincel, pelo que eu e o meu colega engenheiro desencantámos um Word versão 2.0, que utilizávamos em alternativa mais eficiente. Entretanto generalizaram-se os computadores entre o pessoal técnico e de secretariado, com versões de processamento mais rápidas, pelo que abandonámos definitivamente o MS-DOS, migrando para o Windows e para a funcionalidade do mouse.  Troquei o Word Star e o Quattro Pro pelo Word e pelo Excel, mas em alternativa ao Acces continuei a utilizar o DBase III.


Devo ter sido o técnico que mais mudou de poiso no Planeamento Urbanístico. Este foi o meu segundo espaço de trabalho, entre o Gabinete da Chefe de Divisão e a Sala dos Desenhadores. Inicialmente a Chefe da Divisão repartiu comigo o seu gabinete, separados por armários, que não chegavam ao topo. Depois transitei para este salão. A ele me refiro nuns versitos de pé-quebrado.

GABINETE DO ATALHINHO e VARIAÇÕES

Ora viva!
Diga bom dia
com alegria
e boa tarde
sem alarde
...

Com licença, com licença
tenho pressa de passar
qu’ isto é um gabinete
e não quero incomodar
....

Com licença, sem confiança
tenha pressa de passar
qu’ isto é um gabinete
e eu quero trabalhar
...

Com licença, com licença
tenho pressa de ficar
qu’ isto é um gabinete
e eu quero conversar

Escrito em 1987.08 ... - GABINETE DO ATALHINHO E VARIAÇÕES -  é uma colagem de textos por mim postos nas portas do meu gabinete, corredor de passagem na Divisão de Planeamento Urbanístico por ser utilizado para encurtar caminho. 



Auto-retrato, na Rua Padre José Maria Nunes da Silva

O toldo vermelho era da mercearia do senhor Óscar, que havia sido um dos operários meus alunos quando dei aulas nos Estaleiros Navais da Setenave. Como aqueles dois pisos em que estava o Urbanismo se destinavam inicialmente a Centro Comercial, as  paredes exteriores eram em grande parte montras envidraças mas espelhadas, o que permitia assistir a cenas por vezes caricatas dos transeuntes no exterior. Com efeito, elas permitiam ver para fora mas não para o interior, pelo que as pessoas não se apercebiam que estavam a ser .. vistas, penteando-se, ajeitando o vestuário, levantando a saia para melhor se comporem ou fazendo caretas e momices para o espelho.



(Em serviço externo, foto Arqª Nina Campos) - No Largo da Conceição


(foto Arqº Vidal Marques)

Esta é a única foto no edifício Sado, depois de ter sido desalojado do gabinete anexo, cedido à Engª Elvira, da Informática, e à Manel, entretanto emprateleiradas como eu. Este espaço era compartilhado com o Arqº Vidal Marques e a Draª  Esperança, economista. Quando o PS perdeu as eleições havia no Urbanismo cerca de dez técnicos superiores, alguns no topo da carreira, a quem não era distribuído qualquer trabalho.

Em 1989 e nos meus tempos livres escrevi um livrito (DHU - Retratos) com sonetos e quadras caracterizando todos e cada um dos que trabalhavam no Edifício Sado, que distribuí com dedicatórias em quadras populares, policopiado, e teve algum êxito. Dessa safra é o  HAVERA BEM QUE PERDURE? escrito em 1989.09.11.

João Baptista é gestor
Do Pessoal saneado
Pelo fero pegador
De vitelas, apeado.

Em urbana prateleira
Sem planear o puseram,
Não lhe ligando, asneira,
pior bourrada fizeram.

É preciso ter engenho
E também alguma arte
P'ra mostrar algum empenho
Na quarentena, á parte.

Não há bem que sempre dure
Nem mal que se não acabe;
No galho está um lemúre,
Sabiá sem claridade!

Vai embora, vai partir,
0 trem da grã palhaçada?
Alguém poderá cair,
Oh! Mas que bera maçada!

Talvez fiquem as saudades
Da rainha, que doçura,
Tão rápida nas berdades,
No enredo: que secura!



Foto Victor Nogueira - Setúbal - Casal das Figueiras - 

Em 1986 / 87, no âmbito do planeamento urbanístico e coordenando uma equipa de inquiridores procedi à caracterização socioeconómica e condições de vida e de habitação de bairros de lata do Casal das Figueiras/Viso, Mal-Talhado e Humberto Delgado para realojamento, assinalando-se as desabitadas que eram logo demolidas. No Casal das Figueiras uma das barracas [uma única divisão, telhado e paredes de colmo e chão de terra batida] tinha apenas este retrato, que guardei, antes da demolição, e era testemunho de alguém que vivera muito melhor, pois tratava-se duma foto de estúdio, emoldurada, ampliada, com a marca da casa fotográfica, em relevo. Nunca descobri se era menino ou menina, pois a expressão é ambígua e nada permite concluir num ou noutro sentido.

1997

para além da vida quotidiana

 
em 1997 - De Setúbal falei nas linhas anteriores. Mas a cidade de hoje nada tem a ver com aquela que me encantou e seduziu, ponto de passagem dum estudante universitário de Angola exilado e desterrado  em évoraburgomedieval a caminho de Lisboa ou do Porto. Setúbal, antes de 1974,  era a Avenida 5 de Outubro, com acácias floridas e as miúdas em bando, era o estuário do Sado  visto do Forte de S. Filipe, era o Castelo de Palmela visto de qualquer ponto da cidade tal como o estuário do Sado com a Serra da Arrábida  ao fundo, eram a Noémia e o casal Armindo Gonçalves. Setúbal era também o enorme paredão ribeirinho cheio de carros ao entardecer ou de pescadores de cana, com o pôr do sol sempre variado espelhado nas núvens ou cintilando nas águas do rio. Setúbal eram as praias, o desejo das praias que se vieram a revelar desagradavelmente frias e de acesso difícil.

As acácias floridas, rubras ou roxas, a luminosidade do ar e o céu azul faziam lembrar Luanda, tal como o Estuário do Sado, visto do Castelo de S. Filipe, se  assemelhava à Baía de Luanda vista da Fortaleza de S. Miguel, com a península de Tróia confundindo se com a Ilha do Cabo.

.Uma cidade são as pessoas, as pedras, as casas e a paisagem circundante. Mas as pessoas de Setúbal revelaram-se uma desilusão. A cidade reúne a dimensão humana das distâncias dentro de si própria das cidades pequenas com o individualismo  caracteristico das grandes cidades onde cada um trata de si, sem a solidariedade dos vizinhos mas, paradoxalmente, com a coscuvilhice e maledicência destes: todos sabem de todos mas cada um trata de si. Nada da camaradagem que encontrei entre as gentes do Barreiro e nas aldeias  e montes do Alentejo, nada da cordialidade que muitos anos depois encontrei na Covilhã, e nas vilas da Beira Baixa ou em Lamego  e Trás-os-Montes!

Setúbal, destruída pelo terramoto de 1755, do passado pouco conserva. E o pouco que tinha em edifícios está em ruína e demolição aceleradas. Se é verdade que o Marquês de Pombal não veio a tempo de reconstruir a cidade ao jeito racionalista, Mata Cáceres, o Presidente socialista desde 1986 [substituído pela CDU após 2001],  tem sido um terramoto que permite que a memória da urbe seja arrasada: moinhos de vento, fábricas conserveiras, bairros como o Salgado ou de Santos Nicolau... E se o Parque Verde da Lanchoa foi construído, embora amputado em área, ("uma loucura dos técnicos da câmara", [e do PCP. subentendia-se] como então declarou e registaram os jornais)  foi porque à sua substituição por betão e asfalto se opuseram então o PCP (APU), então maioritário na Junta de Freguesia de S. Sebastião, que com os seus 50 mil moradores  tem metade dos habitantes e dos eleitores do concelho. Mas um olival perto, preservado pelos moradores e pela anterior maioria da APU/PCP, não escapou ao terramoto dos socialistas e do Manuel do alcatrão,  como é conhecido.

Persistem, esses sim, os bairros de lata, como o Mal Talhado, da Cova do Canastro, da Monarquina ... Se interesse há por estes bairros, não é porque os seus habitantes mereçam melhores condições de vida mas porque se situam encravados em áreas apetecíveis para a especulação urbanística, a mesma que pretende arrasar o Bairro Azul (e a Belavista), de habitação social e vista privilegiada, para dar lugar a habitação de luxo. Nos esteiros e nos estaleiros navais desactivados, as embarcações típicas de outrora apodrecem afundadas no lodo ou na praia, sem que a Câmara recupere algumas delas, como outras na Península de Setúbal o fazem.

Uma cidade é também o seu traçado e a paisagem circundante. Que resta de Setúbal? O Castelo de Palmela e o Forte de S. Filipe estão encobertos por cortinas de prédios altos, iguais em qualquer cidade e sem nada que a distinga. O mesmo se pode dizer do estuário do Sado e da Serra da Arrábida. A cidade voltou as costas ao rio, que os seus habitantes não desfrutam porque entretanto o porto fluvial vai crescendo e acrescentado à barreira física que já era a linha férrea. À beira rio, o horizonte é cortado e abafado por viadutos e muros gradeados, como nas Fontainhas (bairro de pescadores) ou na Vila Maria. Lisboa alinda-se e Setúbal desfeia se com o lixo dela proveniente.

É verdade que uma nova camada consumidora surgiu e assim as discotecas e os pubs crescem na parte baixa, sobretudo a poente da Luísa Todi. Mas a vida associativa decresce, os cinemas encerram, a companhia de teatro residente fecha-se em si mesma. Em contrapartida aumentam as situações de marginalização ou exclusão sociais, florescendo as prostituições infantil e feminina, bem como o tráfico e o consumo de droga.

A várzea, solo agrícola fértil, apesar de protegido, é ocupada paulatinamente por prédios, betão e asfalto, acabando com as hortas e laranjais e quintas que davam origem a laranjais e doçaria de nomeada. Lembro-me duma reunião da Assembleia Municipal em que um vereador do PS argumentava contra as proibições da Reserva Natural do Estuário do Sado, uma simples linha numa carta topográfica, argumentava ele (que se deslocaria livremente ao sabor dos interesses da especulação urbanística, penso eu seria o seu pensamento implícito). (Notas de Viagem, 1997, ano XI da Gestão PS / Mata Cáceres)


2001

Após 16 anos de gestão PS, a coligação CDU, integrando o PCP, em 2001 ,reconquistou, com maioria absoluta, a Câmara Municipal de Setúbal, que havia perdido em 1985, enquanto APU, quando o PS venceu com maioria relativa, invertendo-se o processo descaracterizador e betonificação da cidade., cuja fruição voltou a estar ao alcance dos  seus habitantes defendida pela gestão CDU.

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