* Victor Nogueira
1986
Está o Sérgio muito aborrecido porque agora entra todos os dias cerca das 9 horas. Compreende-se o seu aborrecimento: mora em Carcavelos e tem de levantar-se mais cedo. Porquê? Porque ele e outros arquitectos e engenheiros que moram em Lisboa e arredores juntam-se para vir de carro, ora no de um, ora no de outro. Só que agora há uma nova passageira, a Lídia, nova aqui na Câmara, onde quer chegar às nove e não cerca das dez, como sucedia.(...)
De vez em quando tenho de interromper o meu bate-papo para tratar de outros assuntos. Fui há pouco a casa levar uns sapatos que estavam no sapateiro e aproveitei para trazer o rádio Hitachi que neste momento está tocando. Mas o aparelho está cansado, tem mais de vinte anos de uso e trabalha com um volume de som ondulante.
Hoje é um grande dia. A Teresa já veio dar-me trabalho: fazer o levantamento das escolas primárias do município, sua localização em carta topográfica e respectivas populações. Depois seguir-se-ão creches, infantários e escolas preparatórias e secundárias, de modo a permitir a sua criação à medida das necessidades decorrentes do aumento ou construção em novas urbanizações. Como se isto não bastasse apareceu aqui há pouco o vereador perguntando-me se já tinha acabado os processos de concurso [de cujos júris sou Presidente] e o que estava fazendo; pelo que lhe disse que estavam praticamente concluídos e que nunca na minha vida tinha estado tão descansado como agora. De modo que o homem lá se foi embora, dizendo que era necessário pôr a Divisão de Planeamento a funcionar, o que não é problema meu, pois [já] não tenho funções de direcção ou de chefia e já não estou para inventar trabalho.
Bem, vou interromper de novo a nossa conversa, para continuar as minhas leituras; presentemente ando às voltas com a "Peregrinação" do Fernão Mendes Pinto e com os "Sermões" do Pe. António Vieira. (MMA 1986.06.05)
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Hoje está uma brisa fresca, agitando as árvores além na rua e a roupa desfraldada nos estendais do prédio em fronteiro. A Arminda come iogurte, enquanto lê um livro sobre legislação que encomendei e chegou hoje. Está sempre a comer e não sei se é da gravidez adiantada, se sempre foi assim, embora antigamente, quando ia ao Departamento de Pessoal, fosse magrinha.
No estirador a Vanda desenha fichas para os inquéritos que ela e outros jovens do OTJ irão fazer -levantamentos dos edifícios com interesse municipal e dos estabelecimentos de ensino escolar e pré-escolar. A Vanda tem 18 anos e tivemos de pô-la aqui no Gabinete, pois com o seu ar ingénuo e a vestimenta à punk já trazia os desenhadores ali na sala ao lado muito alvoreados. Enfim ...
Quarta feira vou à Câmara do Barreiro falar com o meu colega Rui Banha, do Planeamento Urbanístico, para "cultivar-me". (MMA 1986.06)
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A Arminda e o Sérgio estão ali numa animada conversa sobre a visita que na 2ª feira passada efectuaram a Vale da Rosa, no concelho de Alcoutim., lugarejo perdido em caminhos de cabras pelos cabeços da Serra Algarvia. Afinal não fizeram "gazeta" ao serviço. A finalidade da visita foi verem uma central de energia solar que serve cinco casas e catorze pessoas que, numa região paupérrima, passaram a dispor de um telefone, luz eléctrica, duas arcas frigoríficas e ... dois televisores a cores! Entretanto, ali ao lado, como sempre, uma grande barulheira na sala dos desenhadores, verdadeiramente incomodativa.
Também como habitualmente muito pouco tenho para fazer, sendo este o principal motivo porque escrevo tão assiduamente. Aguardo com uma certa curiosidade a carta da Maria do Mar e o que nela me dirá. (...) Gostaria de ser muito mais simples, mas não sou, pelo contrário. Muito mais simples, menos exigente e de ligar mais facilmente à terra. Mas não consigo e morrerei com este jeito, certo de que a lucidez e a capacidade de análise das situações, por si só, não chegam.
(...) Já voltei do almoço. Estive a ver como havia de responder ali a um inquérito sobre habitação, mas só amanhã voltarei a pegar no assunto, para ter algo para fazer; é caso para dizer que é necessário fazer render o peixe. Tenho praticamente terminados os concursos de promoção e de reenquadramento [do Departamento de Pessoal], bem como o processo disciplinar por falta de assiduidade, faltando-me decidir se devo interrogar de novo o arguido, em face de documentos que requisitei ao Departamento de Pessoal. Mas nada disso tem a ver com as minhas funções aqui (no Gabinete do Plano Director Municipal). Lembrar-me que antigamente tinha de "comprimir-me" para resolver o máximo de assuntos no mínimo de tempo, tratando uma quantidade deles simultaneamente! (MMA 1986.06.04)
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Olho pela janela e um rebanho de ovelhas vai ali pela placa central da avenida [Bento Caraça], por entre a lataria dos automóveis, vestígio do tempo em que esta era uma zona rural, como testemunham o olival além atrás e os nomes das ruas do Bairro da Belavista. De repente aumenta o movimento automóvel e apercebo-me que é meio dia e trinta e que vão sendo horas de abalada, pois vou almoçar à Baixa, para debater algumas questões político-partidárias. (....) (MMA 1986.12.03)
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(...) Resolvi alterar as minhas férias, mudando o seu início de 1 para 18, pois quero deixar prontos os boletins de inquéritos às populações de bairros degradados, a realojar Deus sabe quando ! (MMA 1986.07.28)
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O Rádio Clube de Setúbal transmite música antigota: há pouco, p.ex, El Reloj, de António Prieto, agora Et Pourtant, de Charles Aznavour. Está um fim de dia cinzento e frio, embora a cozinha esteja cheia de luz, como se fosse dia; estou encantado com os girassóis colhidos na berma da estrada e que alegram a nudez e o ascetismo desta casa, agora entregue apenas a mim. (MMA - 1986.12.11)
1990
A mudança da paragem do autocarro tornou o café mais frequentado e menos remansoso em determinadas horas, quando se amontoa pessoal aparecido sabe-se lá de onde. Contudo, em certas horas, ainda continua a ser um local agradável, acolhedor, como simpáticas são normalmente as proprietárias, entre a malta conhecidas como as "manas gordas". Há um outro café, o das escadinhas, também simpático embora mais calmo por não estar em sítio de passagem ou junto a paragem de autocarro.
Aqui nesta zona residencial ficam parte dos serviços municipais, em área que era para ser um centro comercial, e talvez isso explique o hábito que se criou nos cafés das redondezas dos clientes levarem os comes e bebes para a mesa e, muitas vezes, de retorno para o balcão.
(...) E foi assim que tudo começou: escolhida a mesa, uns sentaram-se e outros ficaram a fazer o avio e por isso só depois reparámos que a mesa escolhida estava suja, pelo que pedimos às manas que a limpassem, o que lhes caiu mal, enervou e fez com que uma delas derramasse a cafeteira do chá a ferver sobre as minhas calças o que, diga-se de passagem, não foi pêra doce. Por isso, uma hora depois, estava "caído" no Centro de Enfermagem, porque me doía cada vez mais o local da queimadura. (CTT - 1990.03.12)
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Daqui a pouco vou até Lisboa para mais uma reunião sindical, pelo que não vale a pena ir ali ao arquivo e á secretaria em busca de volumosos e pouco apetitosos processos de obras ou requerimentos de viabilidade para retirar de cada um duas informações para um inquérito industrial do INE sobre loteamentos industriais. De modo que prossigo o alinhavar de linhas para a Musa d'Ante, os ouvidos massacrados pela agudeza e guincharia da música que em alto som irrompe ali da sala da Manel e da Célia, da qual estou separado apenas por um armário de madeira que não chega ao topo. (MMA 1990.09.19)
Hoje estou nos meus dias de pedrada. E quando tal acontece aborrece-me estar sozinho. embora não me apeteça estar com qualquer pessoa. (...) O primeiro dia de trabalho está terminado e parece que as férias foram há muito tempo. O regresso foi como sempre: bacalhoadas para a direita, algumas beijocas para a esquerda, um sucinto relatório das mesmas com perguntas idênticas ao(s) interlocutor(es) e interrogações sobre as fotografias de férias. Vá lá que a arquitecta Nina, que foi ao Brasil ver a família e mostrar a Mariana, a criancinha que é o enlevo dela como mãe babosa, não se esqueceu das moedas para a minha colecção.
Para além disso foi um dia de grande chateação. A minha secretária estava limpa e arrumada, tal como a deixara. Embora tenham deixado de distribuir-me trabalho, a minha categoria profissional dá-me liberdade para apresentar e desenvolver propostas e projectos de trabalho. Mas isto exige um mínimo de meios que não me dão ou retiram, para me cortarem a veleidade de fazer qualquer coisa. Há uns três anos tiraram-me o apoio administrativo e há dois meses o computador. Sem ovos é difícil fazer omoletes. Ás 17:00 horas, farto da pasmaceira geral, de conversa para encher tempo e sem nada para fazer, disse adeus ao pessoal e fui curtir a minha chateação e desalento para o Jumbo, para comprar fruta, peixe, iogurtes, queijo, manteiga e algumas coisas mais. (MMA 1993.09.08)
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Na Praça do Bocage há uma alva barraquinha estilo mourisco, inaugurada hoje, contendo as principais peças do Plano Director Municipal, agora em fase de discussão pública. Lá estava a minha querida directora, rodeada de alguns colegas nossos, que ainda de longe me fez um correspondido aceno de mão com um sorriso de derreter o coração do mais incauto, aceno que se transformou numa amena cavaqueira quando cheguei ao pé deles e da barraquinha. (MMA - 1993.09.15)
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Amanhã vou reiniciar a minha aprendizagem com as folhas de cálculo (matemático), interrompida há semanas e recomeçada hoje com umas breves lições do Luís, o informático do STAL. Entre as minhas actividades e responsabilidades extra-laborais está a coordenação e participação num grupo de trabalho de quadros técnicos da Administração Local. Ora, antes de partir para férias, uma colega nossa ficou de trabalhar uns dados, para permitir a sequência do nosso trabalho relativo à reestruturação de carreiras e revisão do sistema retributivo. Só que já lá vão umas seis semanas sem que ela tenha feito qualquer coisa, porque anda deprimida. De modo que tenho de ser eu a tratar do assunto, já que não posso permitir que as minhas depressões me façam andar pelos cantos durante muito tempo. (MMA 1993,09,20)
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O João Neves é geógrafo e está a substituir a Isabel e a Maria, que se foram embora da Câmara, onde estavam a recibo verde. Com ele faço agora equipa para prosseguir o levantamento, caracterização e programação do equipamento colectivo. Agora andamos ás voltas com o equipamento desportivo, ao qual se seguirá a rede escolar. De modo que saímos de manhã com o R4 do Departamento a percorrer o município, localizando em carta e preenchendo um inquérito, o que me agrada mais do que passar o dia encafuado num gabinete sempre com a mesma paisagem a as mesmas pessoas. E como não levamos motorista, sou eu que vou a conduzir nas calmas, o que me agrada. Quando ando com o meu carro ando sempre na esgalha, o que não sucede com o carro do serviço (ou do sindicato).
Com isto tudo atrasa-se o meu trabalho sindical, o que me preocupa pois a proposta do STAL referente á revisão do sistema retributivo dos técnicos superiores não introduz alterações relativamente aos vencimentos dos docs, apesar das propostas feitas em devido tempo pelo grupo de trabalho de que falei. Tenho três semanas até Novembro, quando se realizará o Congresso do STAL, para tentar dar a volta á situação, pois a maioria dos sindicalistas e dos trabalhadores entendem que nós, técnicos, já ganhamos o suficiente, quando não demasiado. De modo que se não conseguir dar a volta lá terei de partir a louça no referido Congresso.(MMA 1993.09.26)
1994
Esteve hoje um domingo bonito, soalheiro e primaveril. Mas não me apeteceu andar por aí a deambular sozinho, nem ir a casa do Zé e da Madalena, no Seixal. De modo que fiquei aqui em casa, às voltas com o computador, aperfeiçoando-me na utilização de programas de cálculo matemático e de construção de gráficos. Fora isso fiz por aí uns consertos e reparações, mas como não comprei as buchas para os parafusos ainda não foi desta que instalei a tomada de corrente na parede do corredor para ligar o aquecedor a óleo, que muita falta me tem feito nestes dias frios, de bater o dente. Não encontrei ainda os vedantes metálicos para as janelas. (MMA 1994.02.06)
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Antigamente havia mais convivência, porque os gabinetes eram salas enormes cheias de vasos e plantas; agora e desde há uns anos as salas foram sendo divididas e subdivididas em gabinetes cada vez mais minúsculos. As pessoas estão mais isoladas e formam-se grupos e subgrupos, que se encontram em cafés diferentes: os fiscais no café lá em cima, no Largo, os desenhadores neste ou no café das escadinhas, os técnicos no café das escadinhas, abandonado que foi o café das manas [Café Lorimar] na Avenida Bento Caraça], onde continuo a ir com as arquitectas Arminda ou Nina e onde vai o pessoal da secretaria. E isto para não falar na Directora, com o seu séquito (arqº Zé Manel e engª Margarida) que já deixaram de se misturar com o maralhal. (MMA - 1994.02.20)
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Lá se vai dentro em breve o meu privilégio de trabalhar a escassos metros de casa. Vamos mudar para um edifício novo, com quatro ou cinco pisos, no centro da cidade, perto dos Paços do Concelho. Aqui em cima estamos distribuídos por dois pisos no que também esteve para ser um centro comercial, agora transformado em autêntico labirinto, com portas, corredores, escadas e paredes envidraçadas por todo o lado. Uma autêntica ratoeira em caso de sinistro mas, como se costuma dizer, em casa de ferreiro espeto de pau. Sempre é melhor irmos para o Centro da cidade, não só porque há mais economias nas comunicações entre os serviços e nas deslocações dos munícipes, mas também porque há mais vida e movimento lá em baixo. (MMA 1994.02.23)
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Já mudámos de edifício, vai para mês e meio. Agora trabalhamos no centro da cidade, mas as relações entre as pessoas alteraram-se radicalmente no enorme casarão de seis pisos e paredes frias onde se concentraram vários serviços municipais até então espalhados pela cidade. Distribuídos que estamos pelos vários andares com múltiplos corredores e gabinetes, maior é o isolamento pois menos vezes nos cruzamos uns com os outros, para além de se ter tornado menos natural assomarmos e permanecermos nos gabinetes uns dos outros. Fiquei num gabinete pequeno, com o meu colega geógrafo, e porque a sala é pequena e sem estiradores, foi possível torná-lo menos árido e mais acolhedor que os enormes salões onde despejaram engenheiros, arquitectos e desenhadores, perdidos no meio dum espação onde largaram o mobiliário de estilos e feitios díspares.(MMA - 1994.06.20)
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