A princípio, para que se defina uma obra como sendo "de arte", faz-se preciso consultar os léxicos para, à luz da semântica, defini-la como tal. Onde achávamos que íamos encontrar a resposta definitiva, deparamo-nos com o primeiro obstáculo visto que arte tem muitos significados, inclusive um tão genérico que quase nada diz:"Execução prática de uma ideia". O professor Armindo Trevisan, em seu livro “Como compreender a arte“, nos dá uma pista convincente: “A obra de arte é um objeto de prazer, que visa a provocar determinada experiência gratificante, que consiste numa espécie de vivência sensorial-perceptivo-intelectual, onde são engajadas especialmente a memória e a imaginação”.
A ideia de arte está visceralmente vinculada à estética, esta que determina o caráter do belo nas produções naturais e artísticas. Como não poderia deixar de ser, a arte anda de mãos dadas com a filosofia—foi com Heidegger e Merleau-Ponty que uma filosofia da arte se tornou realmente possível –, e tem a ver com harmonia das formas e coloridos. Quem se propõe a produzir arte, por óbvio se lança em direção à sensibilidade do outro com propósito de emocioná-lo. Advirta-se, porém, que quando se trata de emoção estética, não devemos considerá-la uma “emoção sem inteligência”, mas uma "emoção da inteligência”, como refere Raymond Bayer em Traite’d’Esthétique (Tratado de Estética). Em seu livro “A Obra de Arte”, Michel Harr, professor de filosofia e estética contemporânea na Universidade de Paris XII, destaca: “A arte não é mais que que um instrumento, quer para o artista, quer para o espectador, uma via de acesso ao estado estético.
Se há pretensos artistas que não o são de fato, existem aqueles que produzem arte sem a consciência de estar fazendo arte. Porque a intenção de produzir arte tem relevância relativa no resultado final da obra. É preciso que, além do propósito, haja talento artístico e conhecimento dos modos e ferramentas para viabilizá-la. "Ser fotógrafo é colocar na mesma linha de mira o olho, a cabeça e o coração", escreveu Henri Cartier-Bresson (1908-2004), o pai do fotojornalismo. E Antoine de Saint- Exupéry (1900-1044), que se consagrou com “ O Pequeno Príncipe”, observa: "Você vê apenas com o coração; o essencial é invisível aos olhos". Ambos destacam o valor da emoção na percepção do além da materialidade. É a visão dos significados; a visão do que não é visto pelos olhos do corpo. Por sua vez, o pintor e poeta suíço Paul Klee (1879-1940) conclui: "A arte não reproduz o que vemos. Ela nos faz ver". Fazer com que as pessoas vejam (percebam) além do que a imagem explicita, eis o que deve pretender o artista visual.
A fotografia, portanto, pode ser ou não arte; assim como todas as demais expressões tidas como “de arte”. Todas elas apenas se candidatam a viabilizar uma obra que seja verdadeiramente de arte. No caso da fotografia, a câmera disponibiliza a quem aciona seu disparador um meio técnico de “transpor o que sente no que quer fazer sentir”, como escreveu o romancista e filósofo Albert Camus (1913-1960), referindo-se a escritores. Nessa condição, o fotógrafo revela algo em sua obra, mas também se revela, como qualquer um que faça arte, como destaca Trevisan. Por isso, ser artista implica em expor, de algum modo, recônditos de seu próprio eu.
A relevância de uma obra de arte pode ser tamanha a ponto de mudar o jeito de seu espectador olhar a vida e o mundo. Daí a responsabilidade implícita do artista com essa assertiva. Assim como uma obra pode provocar encantamentos, ela pode expressar ideais e ideologias. Pode concordar, denunciar, contestar, reivindicar. Pode ser afago, mas também agressão, transgressão. Incitar a reações diversas e se comprometer responsavelmente com elas, eis uma força que deve mover o artista ao executar sua obra. Reações tão variáveis quanto às possibilidades humanas de ser. Charles Boudelaire (1821-1867), poeta e teórico da arte francesa, destacou um aspecto dessa premissa: “O importante na obra de arte é o espanto”. Anos depois, sobre esse prisma, assim se manifestou Georges Braque (1882-1963), pintor e escultor francês que criou o Cubismo junto com Pablo Picasso: “A arte existe para perturbar”.
A fotografia enquanto veículo de expressão artística usa a imagem para ser; todavia, diferente de outras artes visuais como o pintura e a escultura, por exemplo, que constroem imagens a partir de algo que existe, ou não. Neste contexto, diferentes da fotografia, que é contida no âmbito da realidade plástica existente – condição que limita o ato criativo nela contido. Porque não se pode fotografar o que não existe. Outra diferença diz respeito à intervenção no estado da obra. A outros artistas visuais é permitido além de figurar, transfigurar e até romper com todos os conceitos e preconceitos plásticos para produzir sua obra. Quando o fotógrafo tenta transformar a realidade fotografada, intervindo nas imagens que a câmera capta, adentra no campo minado da negação dos meios fotográficos, e, com isso, atesta que a fotografia em si é insuficiente para expressar plenamente o que pretende. Assim, também assume sua incapacidade enquanto fotógrafo em dialogar com o espectador de sua obra através dos diversos meios que a fotografia oferece. Meios, como se sabe, mais do que suficientes para se fazer dela uma obra de arte.
Uma imagem pode gerar em quem a observar as mais diversas sensações porque remete à cena dos fatos, a feição e a indumentária das pessoas, a forma dos seres e objetos, as condições climáticas; a época e até a hora em que a foto foi feita, em alguns casos. A fotografia, quando sem intervenção de outras artes, é mais fiel à imagem mostrada, aonde as percepções chegam mais próximas ao instante fotografado. Daí ser ela a testemunha de maior credibilidade.
O fotógrafo, no exercício de sua arte, pode transitar por outras artes. Pode ”contar” histórias, "cantar" canções, "declamar" versos através de seus retratos. Warley Tomaz dá uma dimensão poética a esse artista da imagem: “O fotógrafo é um poeta que a partir de seu olhar proclama versos eternizados nas imagens de sua arte”. Pode assemelhar-se aos grandes mestres da pintura valendo-se de tonalidades de cores, jogo de luz e sombra, perspectivas, enquadramentos. À guisa de exemplo, as fotos da norte-americana Nan Goldin, segundo alguns, remetem à luz de Caravaggio (1563-1610), pintor italiano de nomeada, e ao erotismo de Delacroix (1798-1863), um dos mais importantes pintores do romantismo francês. O fotógrafo pode até ousar se aproximar dos escultores, ainda que disponha apenas de uma dimensão para expressar sua arte, valendo-se de contrastes que possam dar volume à imagem fotografada.
No momento de fotografar temos em nossas mãos a implícita oportunidade de fazer desse ato uma obra de arte. Daí a procedente advertência de Cartier-Bresson aos que pretendem se assumir como fotógrafos: "É preciso fotografar sempre com o maior respeito pelo tema e por si próprio". Desde logo, portanto, devemos eximir de culpa os meios fotográficos se o objetivo de produzir arte não for alcançado. Porque, em essência, o mais nobre e edificante motivo de existir da fotografia é ser arte.
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