Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Era uma vez um fotógrafo anónimo e histórias perdidas da emigração







Emigrou em 1971, regressou em 84. Documentou em fotografia a vida entre o Porto e Paris: retratos de uma época, de duas cidades, da emigração. Mas os milhares de negativos acumulados nunca saíram da gaveta. Até agora. Há um livro e uma exposição a ganhar forma
Texto de Mariana Correia Pinto • 08/01/2018 - 19:29

DistribuiA A
Tinha assumido a fotografia como uma necessidade de expressão. E não muito mais do que isso. Rui Mendes guardava nas gavetas de casa um enorme arquivo de negativos, fotografias de um amador portuense emigrado para França antes da Revolução e regressado nos anos 80. Durante anos, achou que aquilo que fazia “não interessava a ninguém”. Só “secretamente” ousava pensar o contrário, mas sem nada fazer com esse sentimento. Tudo começou a mudar em meados de 2016, com a entrada em cena de Gracja Zegarowicz, namorada do filho mais velho.

Vasco Mendes, o filho, sempre acreditou no valor daquelas imagens. Com a irmã, chegou a oferecer ao pai um pequeno projector para o incentivar a pegar nos negativos. Mas a inércia não caiu. O talento engavetado era tema recorrente das conversas do realizador de videoclipes com a namorada. Um dia, estavam os dois em casa dos pais de Vasco, Gracja pediu a Rui para espreitar as imagens de que tanto ouvia falar. “Naquele momento tudo parou para mim. Vi aqueles arquivos e não podia acreditar que por 30 anos ninguém, além da família, os tivesse conhecido”, conta a polaca de 26 anos.

Estava decidida a resgatá-los do esquecimento. Com um mestrado a meio, viu naquele material uma base fantástica para o seu trabalho na Universidade de Breslávia com direito a passagem semestral pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Assim, não só poderia teorizar sobre o livro como obra de arte, como conseguiria criar efectivamente um livro. Seguiu-se um “longo e difícil” processo de imersão nos negativos — cerca de 8600 pelas contas de Rui Mendes. Entre as fotografias a preto e branco, havia muitas do Porto e de Paris, as duas cidades onde morou, mas também das suas viagens e da aldeia da mulher, em Trás-os-Montes.

Foi a história por detrás das imagens que fez Gracja Zegarowicz escolher o Porto e Paris como balizas para a sua tese. “Um dia espalhou as fotos pela sala... começou a dizer do que gostava, a escolher”, recorda Rui Mendes, satisfeito por esse processo não ficar a seu cargo: “Não conseguiria, é muito difícil escolher”.

São 350 as fotografias seleccionadas por Gracja para o seu livro que quer ser, em breve, uma exposição. Retrato de uma época, de duas cidades, da emigração e da própria vida de Rui Mendes: “Ao olhá-las assim, percebo que acabam por escrever aquilo que vivi”, analisa enquanto vai olhando o livro Porto – Paris – Porto, desenhado por Gracja e com um teste já impresso.

Foram 63 anos cheios os que cumpriu até agora. Nascido em Outubro de 1954 na Rua de Chaimite, no Porto, Rui Mendes foi menino numa cidade onde se brincava nas ruas: às escondidinhas, corridas de arco, futebol. Os pais eram donos de uma mercearia, uma loja no rés-do-chão do prédio onde viviam, e a zona estava pejada de ilhas, adegas, tascos, até um carvoeiro. Estavam os anos 70 a iniciar-se quando a mudança da urbe começou a acontecer. O comércio enfraquecia, as ilhas iam desaparecendo, as pessoas eram transferidas para os bairros.

Com o esvaziamento da cidade, o negócio dos pais ressentiu-se. E a dar a volta à crise, o casal emigrou, deixando os quatro filhos com os avós. Um ano depois, ao cumprir o antigo 5º ano do liceu, Rui pôs-se também a caminho de Paris, a “fugir à Guerra Colonial”.

“Encontrei o meu sonho”
De repente, aos 17 anos, estava ali, “naquela cidade de avenidas compridas”, lugar onde tudo era grande e diferente do Porto. “Demorei uma série de anos a perceber o que me estava a acontecer”, graceja. A adaptação não foi, apesar disso, complicada. A língua francesa tinha-a aprendido no liceu e o emprego foi encontrado na empresa de calçado ortopédico onde o pai trabalhava.

Naquela altura, como nos tempos de menino em que não sabia dizer à professora o que queria ser quando fosse grande, Rui ainda não tinha descoberto o seu sonho. Mas ele começava a desenhar-se, com a cumplicidade de uma Kodak, prenda do pai com a qual se iniciou na fotografia: fazia retratos de amigos, explorava as ruas parisienses, memorizava em frames as suas viagens.

Uma década se passou até a coisa ganhar contornos mais sérios. “Comprei o meu primeiro aparelho em 1981, uma Canon AE1”, conta. Aí, já a sua alma era de fotógrafo de rua, talvez influenciado pelas suas referências, com Cartier-Bresson à cabeça. E uma descoberta se revelou: “Encontrei o meu sonho: ser fotógrafo profissional”.

Não era fácil cumpri-lo. Preso ao trabalho, “toda a vida de bata azul” vestida, a saltar de emprego em emprego — depois do primeiro passou por uma loja de parafusos, uma de discos, uma empresa de tintas e uma loja de roupas —, a fotografia não podia ser mais do que o lado b dos seus dias. “Só conseguia fotografar ao fim-de-semana”.

Em 1981, já com dez anos cumpridos em Paris e uma formação na área da fotografia, a vontade de regressar fala mais alto. E Rui Mendes atira-se de cabeça. Sem emprego, faz do Porto a sua casa, a tentar cumprir um sonho: “Pus um anúncio de fotógrafo no Jornal de Notícias. Esperei. E percebi como o meio era difícil”, relembra. Meio ano depois estava de regresso à capital francesa, a estabelecer-se noutra empresa de parafusos e já com uma Nikon comprada num salão de Paris, “aparelho” que preserva e continua a usar.

Estações e comboios
As viagens — por anos feitas quase sempre de comboio — eram fonte de inspiração. “O ambiente das estações era incrível. Adorava Campanhã. As estações são lugares melancólicos. Às vezes havia atrasos de horas e ficávamos ali à espera...”

Assim fez uma fotografia de um homem que vivia separado da mulher e dos filhos há 18 anos. Ou de um senhor na plataforma, carregado de malas, junto a uma parede onde se liam promessas de amor eterno. Imagens onde cabe a história da emigração. Mas onde, apesar da melancolia, não sobressai a dor: “Nunca gostei de explorar a tristeza nas minhas fotografias. Procuro sempre imagens com vida”.

Rui não se queria ser um voyeur de máquina na mão. Na sua missão de “registar o que está a acontecer”, de retratar as pessoas no seu dia-a-dia, em ambientes familiares e comuns, procurou sempre criar laços. “Aproximava-me, falava com as pessoas, antes ou depois de fotografar”, diz. De seguida, quando podia, revelava as imagens e ia oferecê-las aos retratados. Ainda ambiciona fazê-lo com alguns dos meninos retratados no Porto, entretanto homens feitos. “Adorava encontrar estas crianças e dar-lhes estas fotos”, comenta enquanto vai olhando uma sequência de imagens tiradas perto da rua onde viveu. “E este menino com o avô. Gostava muito de lhe dar esta foto. Acho que mostra toda a ternura de uma relação com um neto”, diz ao olhar outra imagem para logo juntar uma espécie de declaração de interesses: “É esta a minha relação com a fotografia. Esta vontade de, com ela, dar algo aos outros”.

Nunca teve um caderno para escrever as histórias daquelas pessoas. Por isso foi grande o espanto de Gracja ao perceber, durante as entrevistas para a criação do seu Porto – Paris – Porto, que ele se lembrava “de imensos detalhes” de quase todas as imagens. Com elas, aviva memórias do que fez, do que foi: “Há uma coisa muito engraçada. Não guardo muitas memórias da minha infância, mas ao ver as fotos quase consigo reconstruir o que vivi”. Decorados ficaram também os momentos em que a fotografia ficou por tirar, como acontecia com frequência quando se convencia a sair de casa sem máquina ou nas viagens de comboio, quando as mãos estavam ocupadas por malas. “Ainda penso em algumas dessas fotografias que ficaram por tirar”, diz sorrindo.

Encontrar o amor com a fotografia
O regresso a Paris revelou-se, daquela vez, diferente. Na Associação dos Originários de Portugal, encontrou uma segunda casa. Convidado a colaborar na organização de eventos, foi fotografando cada vez mais. E num desses eventos, em 1982, conheceu Olga, uma jovem transmontana, estudante na Alliance Française. Fotografou-a e pediu-lhe o contacto para mais tarde lhe oferecer o retrato.

Não se separaram mais. Frequentavam as mesmas associações, faziam teatro amador, participavam em reuniões semi-clandestinas do PCP. Falavam ao telefone todos os dias, mesmo que isso significasse procurar uma cabine telefónica a horas tardias.

Havia, no entanto, uma saudade com nome de cidade. Numa das idas a casa, algo muda para Rui: “Ao passar a ponte D. Maria [Pia] tive uma comoção tal... senti que não podia continuar a fazer aquela violência comigo. Decidi que queria voltar dali a um ano”, conta.

Já em Paris, a relação de Rui e Olga “revela-se” e os objectivos diferentes — ele queria regressar, ela queria ir estudar para a União Soviética — vão parecendo menos categóricos. De férias em Portugal, no Verão de 83, o pedido surge sem avisos ou esboços prévios. Num passeio junto à ria de Aveiro, Rui pede Olga em casamento. Quando voltam a França já têm o regresso definitivo a Portugal na cabeça, ainda que o país continuasse a ser uma incerteza. “Não tinha emprego garantido cá. Mas o dinheiro não era para mim a força maior”.

Depois de um ano de muitas fotografias, o mais produtivo de sempre, assentam definitivamente no Porto. “Não pertencer a lado nenhum incomodava-me”, explica Rui a justificar a troca de uma vida estável com um bom salário para um emprego “muito duro” no Mercado Abastecedor do Porto. “Trabalhei lá 26 anos. Levantava-me às três da manhã. Mas preferia assim. O [Alexandre] O’Neill dizia que todos devíamos emigrar mas regressar depois de cinco anos. Concordo com ele. Digo sempre às pessoas: vão, mas voltem.”

Há dois anos, aceitando as penalizações, reformou-se antecipadamente. “Mais uma vez o dinheiro não era tudo”, declara. Aos 63 anos, é o epicentro de um projecto do filho e da namorada. Ela procura apoios para publicar o livro e já decidiu que a pesquisa nos arquivos não vai ficar por aqui (“Há muito mais para descobrir”). Ele, formado em Cinema, ocupa-se do Instagram do pai onde os arquivos vão ganhando vida e tem todo o processo de entrevistas feitas por Gracja documentado. Na cabeça, está em construção um filme onde contará a história de amor dos pais, dois emigrantes que se encontram em Paris e formam família no Porto. Para já, o foco está na exposição. Porto – Paris – Porto, ou a história de uma vida que é a vida de muitos.

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