Castro Barroso Gato Nogueira - Blog Photographico - lembrança da moça do Alentejo
Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui
“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)
«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973
domingo, 14 de janeiro de 2018
Em Évora na diversidade do olhar
* Victor Nogueira (Texto, tratamento de imagem e fotos in illo tempore)
Maria Emília e Luís Tobias (Fotos in illo tempore)
Rui Pedro, Ana Sofia, Susana (Fotos actuais)
Após a Susana e o Sérgio, foram o Rui e a Ana a Évora onde percorreram locais há décadas perambulados pelos pais dele, as casas onde moraram no Centro Histórico, o mítico Café Arcada, uma passagem pelo Café Alentejo, as cercanias do antigo Palácio da Inquisição, o Giraldo Square, numa tarde soalheira e luminosa. Aqui fica a reportagem fotográfica entremeada com textos meus e fotos de outrora, in illo tempore.
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* Évora
* Praça do Giraldo
* Café Arcada
* Café Portugal
* Rua do Raimundo
* Rua de Serpa Pinto
* Cercanias do Templo Romano
* Dispersas
* Os dias da pré-Revolução
* O quarto do estudante
* Siglas
AUDIÇÕES MUSICAIS Johann Sebastian Bach - Toccata e Fuga BWV 565 Luís Góis - Toada Beirã (Canção da Beira Baixa) José Afonso - Traz Outro Amigo Também (LP - álbum) Corelli - La Follia, Tema e variações Mozart - Pequena Serenata Nocturna Donovan - Atlantis José Afonso - Os Vampiros
1968
Ao fim duns vinte minutos foi a chegada a Évora. Após alguns infrutíferos telefonemas feitos dum barzeco existente junto à estação, consegui arranjar um quarto na Pensão Eborense. Começara pelas pensões de 2ª classe e estava a ver que terminava no hotel de luxo. Mas Deus Nosso Senhor teve pena da minha bolsa! Entretanto os táxis tinham debandado. Sabendo que a pensão ficava a cerca de 1 km e porque a noite estava amena, pus o saco da TAP a tiracolo e pés a caminho. (...) . (NSF - 1968.09.09)
Está a custar-me um pouco abandonar Lisboa
e a sua luminosidade e trocá‑la por um provinciano burgo, mesmo que seja a cidade‑museu. (...) Évora é uma cidade
pacata de ruas estreitas e tortuosas, casas caiadas de branco, piso
incomodamente calcetado, nada de cosmopolitismo. O edifício do Instituto, que
foi Palácio da Inquisição, é amplo e arejado. Gostei dele. (AH - 1968.09.30)
Imaginem uma ilha de pedra escura ou casas irritantemente
brancas no meio de uma infindável planície. Imaginem umas muralhas que encerrem
umas relíquias sagradas, mais intocáveis que os "intocáveis".
Imaginem umas igrejas velhas, escuras, uma delas cheia de tíbias e caveiras e
dois esqueletos pendurados na parede [Capela dos Ossos da Igreja de S.
Francisco]. E a encorajadora frase "Homem,
lembra‑te que és pó e em pó te hás‑de
tornar". Uma janela manuelina, num canto, num dos muitos cantos
escusos, e que foi do Garcia de Resende. Um templo romano, vulgarmente
denominado de Diana. Muralhas medievais e seiscentistas. Um aqueduto [da Prata]
ou o que dele resta. E casas, muitas casas, dolorosamente caiadas de branco, um
branco frequentemente maculado por umas escuras pedras graníticas, restos duma
janela, duma porta, duma parede, duma muralha... E ruas estreitas e tortuosas,
onde passam pessoas e carros. Évora, ei‑la, cidade sem presente nem futuro,
com passado, um passado que se pretende preservar a todo o custo. Aqui, se não fossem os automóveis e as
antenas de televisão, poder‑se‑ia
dizer que o tempo parou. Algumas décadas ou mesmo séculos atrás.
Que mais tem ela? Meia dúzia de jardins. As melhores
piscinas da Península. Um Salão Central Eborense. Que dá sessões cinematográficas diariamente (à
6ª feira o filme é português). Um teatro (o Garcia de Resende) que em dois
meses abriu para apresentar um concerto, uma peça de teatro ("D. Quixote", pelo Teatro
Experimental de Cascais) e uma ópera ("Rigoletto",
pela Companhia do Trindade). Um espectáculo de cada.
Cinema, café, Praça do Giraldo, casas e pouco mais. O que há
para fazer. As perspectivas para as miúdas são mais negras. (JCF - 1968.12.26)
1969
Manhã clara, cheia de sol. Um céu azul, sujo de fiapos
brancos - nem por isso menos belo. Telhados cor de tijolo. Com ervas verdes,
pequenas florestas correndo ao longo de profundos vales ou galgando montanhas.
Paredes brancas, sujas. Sólidas chaminés, umas aninhadas junto às paredes
(buscando nelas protecção ou protegendo-as?), outras erguendo-se altaneiras,
por cima dos telhados e das casas, mas pesadas demais para juntarem a sua
alvura suja aos fiapos azul claro que juncam o céu. (NSM - 1969.01.01)
Andei a deambular pelas ruas de Évora armado em explorador.
Cruzes em esquinas assinalam o local onde foi assassinado, largos anos atrás,
um homem qualquer, ruas desertas, miúdos, roupa estendida nas janelas, um
gatito que roça nas minhas botas, o miúdo que me pede dinheiro, já não sei para
quê. Por fim o regresso ao Giraldo. Rumo ao Mercado, onde se vendem animais
embalsamados, artigos de barro, caça, peixe, brinquedos... esses brinquedos de
lata ou de madeira que eu reconheci como já tendo sido meus numa longínqua
infância que já não reconheço como minha. Seguiu-se a habitual passagem pelo Jardim
Público. Onde está uma oliveira com uma lápide que reza assim: “Oliveira plantada em 14 de Julho de 1919
comemorando a Paz Universal após a Guerra dos Povos Aliados contra a
Alemanha" (NSM - 1969.01.26)
(...) Era um jardim geometricamente desconfortável, artificial, No coreto a banda tocava. Além, caridosamente, alguém partilhava com os "jardineantes" as goelas do transístor escancaradas. no banco, Ao meu lado, uma matrona e uma gaiata conversam banalmente: "puxa a mala um bocadinho mais para baixo. isso! assim! para que te não vejam as pernas". E eu sorrio-me por entre a sisudez duma "Introdução à Vida Política". Pobres e ridículas gaiatas! Pobres e ridículas matronas! (1969.02.24)
Desta janela [da sala de aulas do Instituto em que me encontro] avistam-se telhados sujos, uma chaminé esbranquiçada e, lá ao fundo, muito ao longe, a verde campina alentejana, onde se destacam algumas manchas mais escuras, de oliveiras ou sobreiros. Pela outra janela, à minha esquerda, vêm-se as paredes brancas do edifício do Museu Regional, com as suas sacadas de ferro forjado. Há umas semanas atrás era a moldura dum dos quadros mais belos que tenho visto: os ramos das árvores do largo [Marquês de Marialva], agora descarnados, estavam cobertos de folhagem dourada. Quantas vezes, ao entrar para esta sala, os meus olhos se deliciaram neles. (NSM - 1969.04.09)
1971
(...) Verdadeiramente
Évora é uma cidade morta, a que o começo das aulas dá um certo movimento que se
transformará na monotonia do café, casa, instituto, com o cinema (estreias
diárias) e as mesmas caras e os mesmos rostos. (MAF - 1971.10.09)
1973
(...) Na varanda das piscinas, em Évora, às 15:30. Está um dia quentemente abafado; nas ruas muitas saudações dos "amigos" e conhecidos que passam. Na boca um sabor amargo e de náusea. Detesto Évora. Pronto. Já disse. Poderei algum dia apreciar a beleza de Évora ? (MCG - 1973.09.07)
Fui ontem aquela cidade mumificada (-museu, reza a propaganda turística!). Nem queiras saber como fiquei doente, como estive doente nas horas que estive naquela terra, que me parece um pesadelo, longe que dela estou. (...) Em Évora encontrei montes de malta: eram olás! hellos e bons dias quase pegados. Até encontrei o cobrador da camioneta da Amareleja! (MCG - 1973.09.08)
(...) Podia falar-te da tristeza sem sentido desta vida que levo. Da necessidade de agarrar o presente com ambas as mãos. Do nenhum entusiasmo ao avistar anteontem à noite as luzes de Évora. A viagem [de regresso da Amareleja] foi rápida, com minutos de silêncio, outros de conversa animada e outros de busca desesperada de palavras, no negrume da noite, com a estrada deslizando sob nós, o rádio transmitindo música e as pontes aparecendo bruscamente na curva da estrada, dois parapeitos brancos, esguios, varridos pelos faróis do automóvel. Chegados ao burgo, deixada a Marília e [outro] em casa, foi a busca dum lugar para estacionar. As aulas recomeçaram, mas ... quero ir-me embora. É quase uma obsessão. Évora e o Instituto não são apenas o negativo. (MCG - Évora - 1973.11.20)
A vista aérea de Évora e das minhas fotos num voo pilotado pelo Seruca Salgado em 1974
Praça do Giraldo
Nesta praça, centro
cívico, se realizavam os autos de fé e a queima dos heréticos, para “maior
glória de Deus”. Das escadarias da Igreja de Santo Antão se liam as
sentenças do Santo Ofício. Esta igreja foi mandada edificar pelo Cardeal Rei D.
Henrique, após a demolição duma ermida gótica, do Pelourinho e do magnífico
arco romano nesse local existentes. Defronte situava-se a casa da Câmara,
quinhentista, construída sobre as ruínas do Paço Real e demolida nos finais do
século XIX para dar lugar ao edifício do Banco de Portugal.
Trata-se duma praça rectangular, tendo os edifícios, num dos
lados, arcadas de arcos medievais dissemelhantes, que deram origem ao nome do
café dos agrários, das terças feiras: o Arcada. Nesta correnteza se situava a
livraria Nazareth e o Banco do Alentejo, para além de muito comércio. Defronte
as arcadas foram emparedadas e nessa correnteza estavam o Turismo, a pensão
Diana, com café e esplanada, e uma sociedade recreativa, a Harmonia, de cuja
direcção o meu avô Luís foi membro, nela descobrindo o meu pai, em 1974, [ainda
afixado numa parede] um aviso por ele na altura escrito. Num dos lados menores
situavam-se um chafariz do século XVI. (Notas de Viagem, 1998)
Nós por cá vamos
andando, numa terra onde as pedras são venerandas, mas nem por todos veneradas.
Évora, ilha de pedra e cal perdida no meio da imensa planura alentejana, de
ruas estreitas e tortuosas onde o tempo parou algures no passado. da Praça do Giraldo,
cujas arcadas e paredes bordejantes há muito teriam caído se não fossem os
beneméritos que continuamente se revezam a sustentá-las, falando tudo de nada. Das
meninas de longos cabelos e brancas batas, umas feias, outras bonitas, que
passam aos magotes, de livros debaixo do braço. Dos rapazes de castanhos e
compridos capotes. da Escola Agrícola,
que fazem gala em andarem rudemente mal vestidos, de caqui azul. Do Salão Central,
que dá sessões cinematográficas diárias (6.as feiras: filme português). do Teatro
Garcia de Resende, que abre de longe em longe! onde a malta se aborrece por
nada ter de fazer, onde tanto há que fazer.(...). Os jesuítas desiludiram-me.
maus pedagogos, agarrados a métodos de ensino ultrapassados, falando "ex
cathedra", excessivamente cautelosos, para não empregar um termo mais
contundente, desaproveitando as condições para a criação duma escola realmente
nova. (ASV - 1969.02.20)
Estou saturado de Évora: casa, instituto, café Giraldo,
casa, instituto, café Giraldo, casa, instituto, café Giraldo... Sempre as
mesmas caras, sempre as mesmas conversas, sempre a mesma água gotejando sobre
mim (...) (NSM - 1969 - Páscoa)
1971
Hoje, em Évoraburgomedieval é terça feira e, para além dos
turistas habituais, a Praça do Giraldo e o Café Arcada encontram-se cheios de
forasteiros, solidamente especados, indiferentes a quem passa e no estorvo
provocado. É dia de S. Porco, i.e., dia de mercado, em que os homens vêm à
cidade para o negócio do gado, enfiados nos seus fatos escuros, de mau corte,
botas enlameadas e chapéu na cabeça. Detesto a sua falta de maneiras, embora por
vezes seja uma distracção observar as suas atitudes. O mais interessante neles
é o modo como se escarrancham nas cadeiras, à mesa do café, solidamente
instalados, o chapéu na cabeça atirado para trás.
Mas para além deles e quotidianamente há outras figuras
curiosas no café, figuras de todos os dias nas mesmas posições. Todo um mundo
parado, parecendo indiferente à passagem do tempo. (MAF - 1971.10.09)
Café Arcada
1969
Encontro-me no vozear barulhento do Arcada cuja porta gira continuamente. "Adeus oh
escriturário!" As primeiras e únicas palavras que alguém me dirige,
além do "obrigado" do
criado, perdão, do empregado, quando lhe paguei o garoto claro e lhe dei cinco
tostões [1969]. Mas as palavras do [Jacinto] Morte passaram como a chuva
escorrendo pela minha gabardina branco sujo, como o [António] Campos, que diz
poesia muito bem e que esteve em Luanda. A cadeira defronte a mim continua
vazia, apenas ocupada com o "chamberlain"
[guarda-chuva] e a gabardina. ( ) (POE - 1969.03.16)
1971
O ar abafado, a vozearia
imperceptível, mas não inaudível, enchem o café Arcada, para onde vim estudar
(...) É um domingo indefinido, um começo de tarde. (...) O café está cheio, na
sua grande maioria homens na casa dos quarenta, que cavaqueiam. Logo, a meio da
tarde, a clientela será diferente: os homens trarão as esposas e a prole. Nos
outros dias apenas as [mulheres] mais "evoluídas"
aqui virão. Mas são já muitas mais do que antigamente, se a memória me não
atraiçoa. (...) Olho à minha volta e vejo malta conhecida: além, o Morte que me
acena, como o Calisto, que há muito não via. O namorado da Gabriela discute
acaloradamente e o senhor D. Alexandre de Lencastre conversa com dois amigos
(sê-lo-ão?), que falam também com a cabeça e as mãos. Aqui, à minha esquerda,
está o velhote pequenitates que anda à Charlot; costuma pôr uma flor no copo de
água que normalmente acompanha a bica, fala em verso - os dois últimos primam
quase sempre pela falta de rima e métrica - e oferece moedas da sua colecção às
personalidades importantes que passam por Évora e às caras bonitas. Fala com
toda a gente e não sei se falará com alguém. Quando regressei de Luanda reparou
que eu tinha rapado a barba... largos meses depois do acto solene que me tornou
irreconhecível ao espelho, provocando-me, durante alguns dias, ataques de hilaridade
frente àquela face rejuvenescida e francamente risonha, sem o sorriso voltaireano que dizem ser o meu -
irónico e trocista - de que muitas vezes me apercebo mas não contenho, mesmo
nos momentos mais solenes e sérios, de gravidade de circunstância. (...) O ar
está [agora] pesado; olho à minha volta e há clareiras na humanidade que me
cercava. O relógio, sobre a mesa, diz-me faltarem quinze para a uma. Horas de
ir até lá fora, apanhar um pouco de ar antes de regressar a casa para o almoço
(NSF - 1971.01.31)
1972
Abraça por mim a malta da mesa do café Arcada, companheiros das horas vazias. Como estas no Porto, aguardando os exames de Fevereiro. Um abraço especial para a Guida [Morgado] e para a "terrorista" que é a Zeca. ( ) (Lídia - 1972.01.01)
Estou no café, no "velho", barulhento e de ar
viciado que é o Arcada. Deixei os jornais em cima de uma mesa, para marcar o
lugar, enquanto ia à tabacaria comprar uma folha de papel. (...) Ao regressar
encontrei um moço a folheá-los muito descontraidamente. Devia ser dos Regentes
Agrícolas. Que ficou algo atrapalhado e balbuciou pensando serem do café. Que
não acabou de lê-los, apesar da minha cordialidade. Enquanto escrevo vou
bebendo o galão e comendo a sanduíche de fiambre, acto quotidiano das 17 horas.
Na sala meio cheia umas pessoas conversam, outras leem os jornais da tarde,
alguns estudam, uns olham simplesmente para coisa nenhuma, embrenhados sabe-se
lá em que pensamentos. Reconheço alguns, poucos, companheiros indiferentes,
quase móveis da casa. Dos outros, é de assinalar o seu mau gosto no vestir,
fatos escuros, a boina ou o chapéu de abas viradas para os olhos. Conversam com
a cabeça apoiada na mão, uns sorridentes, outros de rosto grave, testas
enrugadas. Por vezes recostam-se para trás nas cadeiras, outras juntam as
cabeças, convergindo para o centro da mesa, quais conspiradores. Olho à minha
volta e o café está [continua] meio cheio. O João Luís chegou e
começou a ler o jornal. Daqui a pouco chegarão o Camilo e o Carlos, que virão
do exame. Domingo Évora será um deserto, estupidificante. Eis que assomam à
porta do café o Chico Bellizzi, pintor, e corresponde cordialmente
ao meu largo aceno. Entretanto o João Luís protesta porque não consegue ler o
jornal; a mesa está desengonçada e tremeliques. (MCG - 1972.03.18)
Em Évora, novamente no café [Arcada], uma das três dominantes da minha vida neste burgo perdido na imensa planície alentejana. Na mesa quadrada de tampo encarnado, o habitual café com leite, o copo de água, os óculos, o envelope e as folhas, meios de estar com os outros. O mesmo ar quente e abafado, o ruído em surdina, a floresta de gente - forasteiros ? - em torno de mim. Naquela mesa as únicas caras conhecidas: o Dinis e o: Cachatra, pintor, que esta tarde tem procurado impingir um dos seus quadros, aquele mesmo que tem agora sobre a mesa. Cheguei de Beringel [onde moram os Brito Lança, tios do Camilo] há umas cinco horas. (MCG - 1972.07.05)
O café é um mar de gente barulhentamente conversadora. As ventoinhas giram mas nem por isso o ar está mais fresco. Évora civiliza-se: conto cerca de dezoito elementos do sexo feminino aqui no Arcada (minha pátria em terras alentejanas). O mundo caminha para a perdição, diriam os "moralistas" de porta para fora! (MCG - 1972.07.24)
Ouço o Zeca Afonso e daqui a
pouco vou até ao Arcada, dar dois dedos de conversa ao Camilo, lanchar a sandes
de fiambre, galão claro e iogurte habituais, e dar uma vista de olhos pelos
jornais da tarde. (MCG - 1972.09.22)
O Arcada é um mar de gente em burburinho, uns lendo, outros comendo, outros escrevendo ou preenchendo sonhos de Totobola, outros conversando com a língua e os dentes e os lábios e as mãos quando não com o corpo inteiro. Do outro lado, além à minha esquerda, um homem está sentado tirando dum saco de plástico algo cujo conteúdo lhe enche as mãos: talvez moedas. Insólito, a seus pés, uma enorme e brilhante bacia de cobre amarelado. O homem levanta-se - tem uma pasta de cabedal quase do seu tamanho - pega na bacia e encaminha-se para a porta, por onde entra e sai muita gente, com ar lento e vagaroso de quem nada tem para fazer. Lembro-me de há quatro anos - ou mesmo há dois - e há muito mais mulheres e raparigas - algumas bem giras por estas mesas. Évora "civiliza-se". Só a minha hospedeira continua com as suas concepções retrógradas de outros tempos e outras eras, que continuam [no fundo] a ser as de Évora. À minha direita dois velhotes conversam: um deles conta qualquer episódio relacionado com a sua estadia na Grande Guerra de 14/18. Olho à minha volta e o café está mais vazio; não encontro o Camilo, que pela segunda vez passou há pouco além no corredor central. Deve estar em dia não. Mais velhotes sentam-se ao lado da minha, iniciando amena cavaqueira. Agora reparo que esta é a mesa deles. Adeus, estudo. Um deles diz que os gajos da situação são os que mais maldizem o Marcelo [Caetano] e os que mais o homenageiam. (MCG - 1972.09.28)
O Arcada hoje está impossível de poluição, por causa dos alentejanos que hoje desceram ao povoado para discutirem o preço do gado e o mais que não sei nem me interessa. (MCG - 1972.12.26)
1973
Chove. Está cinzento. A chuva faz
barulho no pátio. Amanhã é 3ª feira, o meu dia negro, pois a cidade - e o café –
[no Dia de S. Porco] enchem-se de
alentejanos corpulentos, solidamente parados no meio do caminho, de chapéu na
cabeça e fatos escuros, como se nada mais existisse no mundo senão as suas
irritantes pessoas! Embora cheia de gente, a cidade, para mim, está despovoada.
Quando não estou na minha torre (cela, como diz a D. Ilda) ando por aí, pelo
café, pelas livrarias, pelo Instituto [ISESE], quase sempre (fingindo-me )
muito atarefado. (NID - 1973 ?)
Estou a escrever lentamente por dois motivos, o principal dos quais é o facto desta nova carga da esferográfica ser extra fina, e portanto pouco deslizante pelo papel. (...) Fiz um negócio com o Camilo e trocámos as cargas das canetas. Sem dúvida alguma ambos lucrámos; ele porque escreve mais palavras por linha, eu porque escrevo mais por minuto. Estas cartas, escritas ao sabor do tempo e das ocasiões, lidas posteriormente, devem mostrar o seu verdadeiro valor, isto é, nenhum. (MCG -- 1973.01.22)
Vou até ao café lanchar e poluir um pouco os pulmões. (MCG - 1973.01.24)
O
Arcada é um zum-zum de vozes e louça e máquinas e cadeiras atiradas. Na mesa ao
lado o Camilo delicia-se com o "Ricardo III" do Shakespeare.
De vez em quando comunica-me um ou outro dos diálogos da peça. (MCG - 1973.06.08)
(...) Num ápice o Arcada enche-se. Terminaram as condecorações, os toques de clarim e o desfilar das forças em parada. Já ontem se notavam muitos forasteiros que de longes terras vieram até ao povoado. Além o senhor Jaime abre e fecha
os braços, como asas, enquanto vai dando lustro aos sapatos de um cliente.
Passam empregados com as bandejas cheias de chávenas, copos e comes. O
casalinho de namorados bebe chá com torradas. O mesmo que um casal já
caminhando para a meia idade aqui à esquerda, na mesa ao lado. Ele já acabou de
ler o Diário de Notícias (fraco
gosto) e ela dá-lhe uma torradinha. (...) O marinheiro levanta-se e parte.
Afinal a bengala não é dele mas do amigo que o acompanha. O senhor Tenente e o
senhor Coronel cumprimentam-se, batem a pala e apertam as mãos, enquanto as
respectivas esposas se beijam. Na carequinha do senhor Coronel o vinco na pele
assinala a presença do boné, agora sobre a cadeira. Entram pessoas de luto e há
cumprimentos de mesa a mesa. Precisava duma câmara de filmar. Sobre a minha
mesa, "O Século" (sabe) que
dentro de dias será descerrada em Luanda uma estátua ao Marcelo [Caetano]. Para
além d'O Século a lapiseira, um livro
("A Sociedade de Consumo")
e o porta moedas (agora é incómodo trazê-lo no bolso). (...) O Jorge apareceu
ontem pelo café, depois duma longa ausência. Mais velho, já não o miúdo que
conhecemos, agora com os ombros curvados, mostrando-nos os calos do trabalho de
servente de pedreiro. Gosto dele, mas não encontro nem os gestos nem as
palavras que lho digam. ( ) ( MCG - 1973.06.10)
De manhã fui até ao Jardim [Público] e os meus passos levaram me
até ao campo de mini golfe. (...) Apesar da minha propaganda ainda não arranjei
ninguém para jogar comigo. O Carlos e o Camilo só estão bem na poluição do Arcada. Quem lhes tirar a fumarada tira-lhes a vida e o ser!!!
(…) Não se pode entrar hoje no
Arcada, cuja atmosfera deve ter muito pouco oxigénio, tornando-se assim
irrespirável. (XXX - 1973.07.03)
Este barulho do café cansa‑me e dispersa‑me. Estou‑lhe demasiado sensível. O [Café] Portugal já tem esplanada no passeio, mas o Betinho, dono do Arcada, deve andar em compressão de despesas e o mar de gente daqui não se espraia pelo passeio. (...) Entretanto mudei de mesa, estou agora na de tampo azul. O Chico Bellizzi sentou‑se aqui, tomou uma limonada e agora aprecia o panorama em redor, enquanto assobia. (MCG - 1973.07.08)
Levanto os olhos e vejo muitos
magalas, na sua farda verde oliva. Andam também pelas ruas, aos grupos,
espalhafatosos, como quem já tem o seu grão na asa. "Cheira-me" que haverá dentro em breve mais um
contingente para a guerra em África. Alguns escrevem, curvados sobre o papel, a
caneta firme na mão, como quem não está habituado a frequentes escrituras.
Parecem rapazes muito novinhos; uns conversam, irrequietamente, outros têm um
ar absorto, ausente.
O barulho invade-me e cansa- me.
Há pouco, dei de repente com um silêncio gradual, profundo. Levantei os olhos
do papel e era um magote de gente à volta duma mesa, em pé. Um silêncio em
crescendo gradual. Gente levantando-se, esticando o pescoço. Continuo a
escrever. Alguém se deve ter sentido mal, mas o meu curso de primeiros socorros
já tem oito anos. Um homem sai do meio do magote, os seus lábios mexem-se e
leio "Desculpe-me" a mão
passada pela testa como quem tem suores ou tonturas. Sai pela porta giratória
(há pouco atrás de mim) e perde-se na noite das arcadas. (MCG - 1973.11.26)
O chão do café está um autêntico
chiqueiro. Juncado de papéis, beatas e fósforos. E terra. (MCG - 1973.11.27 A)
Comigo, aqui na mesa encarnada do Arcada, após o jantar, a minha mãe e o Jorge, que trabalha como ajudante de carpinteiro, vencendo uma jorna de 70 $ 00. Em Setúbal ganharia 120 $ 00, mas os pais prendem no aqui no burgo [Évora] (...) O Camilo e o Carlos não apareceram por aqui. O Jorge está aqui com uma conversa muito adulta, apesar dos seus dezasseis anos. Ele agora está atrapalhado. Por causa da minha mãe passou a tratar me por "senhor Victor" e por "vocemecê" [abandonando o "Victor" e o "tu"] (...) Perguntei ao Jorge se queria escrever qualquer coisa [para ti, nesta carta], mas ele não quer, pois diz que parece mal a letra dele ao pé da minha de doutor.
1974
(... ) E então, que me dizes ao aumento do
preço do petróleo e seus derivados? (Lá para Abril deve haver mais. Olarilas!).
A velhota dos jornais ali às portas do Arcada já desabafou comigo esta manhã:
não haver um raio que os partisse! Há 10 dias encomendara uma garrafa de gás;
está cozinhando a lenha. Que só na 3ª feira. "Os patifes, os espertalhões, já sabiam disto e obrigam-me a pagar
o gás mais caro!" Como dizia o Carmelo, muito solene e sisudo na sua
pose à mesa do café: "Isto está cada
vez pior!" (MCG - 1974.01.03)
O sol tenta romper o cinzento carregado de chuva, mas em vão. Acordei hoje ao som de catadupas de água [à tarde o sol descobriu e o céu azulou]. Quase um dilúvio que encherá ali a barragem do Divor, livrando-nos da água sabendo a peixe. Já não era sem tempo. Chegámos pouco antes das 22 horas. No Arcada o João [Garcia], a Filomena, o Camilo, o Zé Pinto, o Ribeiro, o "Chinês" e o irmão cantavam em coro desde as cantiguinhas da primária ("Ó Rosa, arredonda a saia", "Tia Anica de Loulé"...) às excursionistas ("Santa Catarina", "Rapsódia Portuguesa"...) passando por cânticos gregorianos e pelos coros alentejanos e canções da Beira Baixa. Enfim, uma grande audição, no café cheio e entretido com outros assuntos. (MCG - 1974.02.11)
Vim até aqui ao Arcada, muito
barulhento. Está um dia bonito, cheio de sol. Évora está cheia de miúdas, aos bandos. (MCG -
1974.03.31)
É segunda-feira em Évora. o Arcada vozento e cheio. Circundo o olhar e não reconheço a maior parte das pessoas, que falam com grandes movimentos das mãos e do corpo - alguns - ou lêem o jornal: "ABola" ou "O Século” Está um dia luminoso e soalheiro, este ano sem desfiles militares. Jovens esquerdistas cá do burgo pretendiam organizar um comício anti-colonialista mas parece-me que ficou tudo em águas de bacalhau (MCG - 1974.06.10)
Passei pelo café onde encontrei o João Luís, a Filomena, o Marçal. Fiquei contente por vê-los mas já não é como antigamente. É como um fósforo que logo se apaga. (...) A Filomena manda cumprimentos e isso faz-me lembrar que o mesmo fizeram o Manuel Gonçalves (cada vez mais louco) e a mulher do Queiroga (reaccionária em questões de namoros)
Évora é uma cidade estúpida. 6 meses de ausência (e se calhar a saturação de 6 anos) fazem-me ressaltar toda esta falta de dinamismo, de interesse, de imaginação. É um encolher de ombros, um arrastar-se pelos cafés, um encostar-se pelas paredes, um nada ter que fazer ou para onde ir. Uma perfeita estagnação. (MCG - 1974.11.27)
Café Portugal
1972
Dia de S. Pedro: uma pequena pausa na leitura contrariada do cooperativismo agrícola, capítulo da Sociologia Rural, parte ínfima da matéria de Sociologia II... Estou envolto no vozear barulhento neste fim de tarde, o ruído contínuo da máquina de café e da louça na cozinha, o barulho dos carros ali na rua. Seguramente um contraste com a Salvada, silenciosa nos seus ruídos campesinos, que o Pe. [Augusto] Silva tão literáriamente descreve na sebenta, a propósito do meio físico rural: "O citadino que chega ao campo é ordinariamente surpreendido pelo silêncio que aí reina ou pelos ruídos novos que ouve (rumorejar das folhas, os gritos dos animais, o canto das aves, etc.) Tem a impressão de respirar mais à vontade ou, ao contrário, de ser surpreendido pelo vento, crestado pelo ardor do sol." Enfim, o rapaz Silva saiu-me um "poeta". Esqueceu-se foi de falar no maravilhoso céu estrelado [que vi em Beringel, estirado no terraço duma casa que foi do Marquês de Minas] (..) [Entretanto] o ruído diminuiu, sinal de que se aproxima a hora de jantar.(MCG - 1972.06.30)~
1973
A tarde de hoje tem estado verdadeiramente tempestuosa: vento ciclónico
e chuva a cântaros. É um prazer
andar pelas ruas com o vento a bater na cara e o cabelo revolto. Mas desde há
uns largos momentos que me encontro no abrigo que é o café Portugal - hoje é 3ª
feira e o Arcada está poluído e barulhento. O vidro da montra, defronte do qual
me sentei, está embaciado, como se fosse nevoeiro, e as pessoas que passam,
correndo ou vergadas sob os guarda‑chuvas abertos são sombras fantasmagóricas,
como as luzes do outro lado da rua. Na mesa ao lado o Camilo escreve. Deve ser
o 3º testamento, nesta tarde. (...) . (MCG - 1973.01.16)
Aqui estou no café,
hoje no Portugal. São dez da manhã. (...) O empregado acabou de pôr‑me aqui a
sandes de fiambre e o galão. Já não posso ver o pão seco com manteiga mais o copo de leite em casa da D. Vitória. Nem
o frango de aviário ou o bife (!) com arroz e batatas fritas ou as batatas
fritas com fiambre e ovo. Que falta de imaginação, quanto mais não seja na
apresentação. Claro que também já deito pelos olhos sandes de fiambre,
abomináveis pregos no pão, galões claros, copos de leite frio.
O café está quase
vazio, com um velhote aqui e além
lendo o jornal ou rapazes estudando. Para lá das amplas montras passam pessoas,
umas lentas, outras apressadas, umas sozinhas, outras conversando, olhando em
frente ou de olhos fitos no chão. (MCG - 1973.06.28 A)
Rua do Raimundo
1968
Desde há 24 dias que assentei
arraiais com armas e bagagens num segundo andar da Rua do Raimundo, mais
precisamente no nº 44. A dois passos da Praça do Giraldo e a quatro do ex
Palácio da Inquisição, actualmente ISESE. O quarto é grande, enorme. Deve ser o
maior quarto que jamais tive. Uma cama que vai ser substituída por dois divãs.
Uma mesa de cabeceira. Duas cadeiras. Com um candeeiro. Uma escrivaninha. Com
outro candeeiro. Um guarda-fatos com porta de pano. Isto é, uma cortina. Um
armário transformado em estante e roupeiro. Uma mesa semicircular, encostada a
uma parede. Com uma saia de pano púrpura. Junto a um espelho de moldura
dourada. Algo estragada. Os [meus] caixotes serrados e amontoados transformados
em prateleiras. Interessante. Ou não fosse eu estudante! Um cesto de papéis.
Indispensável. Pois rasgo muitos ditos cujos. A mala de porão a fazer de banco.
E de arca da velharia e lixarada. Aquela lixarada que não serve para nada, que
só estorva, mas de que não conseguimos separarmo-nos nem sabemos onde guardar.
O mesmo que o sótão das casas grandes e antigas como esta (que não tem sótão
mas tem terraço). Pelas paredes gravuras, fotografias ou reproduções de
quadros. A maioria trágicos. Para o que me havia de dar. E, imprescindível, uma
janela! Vale mais que uma porta. Esta dá para um corredor. Aquela para um
patiozito interior. O contrário seria mais assombroso, não seria?
O aquecedor da casa de banho é a
petróleo. Lá em casa, em Luanda, temos um arrumado a um canto. Este avariou-se
há dias. Fez greve! Provisoriamente utilizamos um balde chuveiro. Também temos
um lá para um canto, em Luanda. Aqui aquecemos a água num panelão, num
fogãozito a gás. Despeja-se a água no balde, içando-o seguidamente. Puxa-se
uma coisa qualquer (não sei o nome) e a água cai em chuveiro. Mas no fim do mês
a sra. D. Vitória [Prates] também comprará um aquecedor a gás. Lá em Luanda
também temos um. Creio que não está arrumado a um canto. Há uns dois anos e uns
dias não estava!
(...) Pago mensalmente 1.150$00,
incluindo cama, mesa, banhos e roupa lavada. Muito menos do que gastava nessa
multi-tentadora Lisboa. (ELF - 1968.11.24)
1969
Sábado é provável que vá a um baile; já aprendi, ou melhor, dou assim uns passitos de dança, consequência dos bailinhos familiares que até ao Carnaval se realizaram cá em casa. (NSF - 1969.03.08)
1970
É depois do jantar. Pela janela
aberta entram a brisa da noite, vozes de pessoas e dum e outro carro que passa
na rua. (...) A D. Vitória pintou-me o quarto de verde, como lhe pedira. A
princípio gostei, mas estou a sentir-me mal com tanto verde. Como as paredes
são muito duras, terei de fixar as gravuras com cola, pois os "punaises" não entram. (NSF -
1970.10.06)
1971
Cheguei há pouco, vindo de
Lisboa. É bom encontrar de novo as
paredes e as caras familiares, até que o aborrecimento de Évora nos faça
esquecê-lo. Dizem que está frio; não o tenho sentido, e a brisa da noite que
entra pela janela escancarada é repousante e refrescante. (MCG -1971.01.02/03)
Cheguei a Évora no sábado, como
de costume no último comboio. Foi bom voltar de novo ao meu quarto, estar entre
coisas familiares, de janela escancarada - apesar do frio que entra me parecer
uma brisa fresca e acariciante. Mas o encantamento foi sol de pouca dura.
Amanhã entro no quarto de século de existência e sem disposição, nenhuma, para
suportar comemorações "familiares" em casa da D. Vitória. Entediam-me
aqueles chás com bolos, com as pessoas todas reunidas à mesa e com as quais
pouco ou nada sinto em comum. E ser eu o homenageado. Que bom se nada se
realizasse! (NID - 1971.01.04)
Preparo a frequência de
Sociologia II enquanto ouço a "Valsa"
de Ravel. É uma tarde de domingo, dum inverno já não rigoroso, aprazível.
Sentado numa cadeira, os pés noutra, rodeado de livros, papéis e apontamentos.
Daqui a pouco vou até ao café lanchar e ler o jornal. A dona da casa ainda não
veio arrumar o quarto. (NSF - 1971.01.24)
É um domingo indefinido, um começo de tarde. Três novos hóspedes entrarão hoje lá para casa. Somos agora oito (para além da hospedeira, irmão [Ambrósio Prates] e sobrinho [Manuel] ): duas miúdas [Celeste Gato e Bia Almeida], estudantes no Magistério Primário, como este, e a mãe duma delas [D.Maria] e o Diogo [Guerreiro] (6º ano liceal e futuro economista). Os novos são um velhote, [o sr. Marquês], empregado comercial, uma assistente social [D.Teresinha] e a ilustre mãe [D. Ilda]. Sou, actualmente, o mais antigo. Todos os outros entraram este ano. (NSF - 1971.01.31)
São quase 20 horas. Como sempre,
o meu quarto está transformado em sala de reunião. Eu escrevo, dois jogam à
batalha naval, outro estuda e a D. Teresinha ouve música. (NSF - 1971.03.21)
Como sempre ouço música. Desta feita o meu amigo Vivaldi e os seus concertos, que têm algo de primaveril, recordando bosques e pássaros e riachos.
Regressei agora a casa. A chuva continua a cair dum céu cinzento e esbranquiçado. Mas hoje não estou disposto a "sentir" a chuva. Noto que algures chilreia um pássaro. Mas isto começa a cheirar-me a poesia barata. (NID - 1971.04.05)
Pronto. Lá arrefeceu tudo ao pegar na caneta para dizer do meu espírito, do que nele se passa. Esvai-se-me por entre os dedos e nas mãos apenas o resto do que não é. No gira discos, Stravinsky. É ao lusco fusco, o candeeiro aceso defronte a mim, enquanto o Rocha tira apontamentos do "Rapport Sur la Situation Sociale dans le Monde en 1963", edição da ONU. Apesar do aquecedor, tenho os pés gelados. Estou enfiado no roupão. O silêncio é perturbado apenas pelo leve respirar, os ruídos das canetas deslizando rápidas pelas folhas, o roçar das mangas nas mesas. (...) O Rocha pôs outro disco: Bach, uma cantata. (NSM - 1971.12.01)
O meu fiel amigo permite que o Luís Góis cante para mim, neste momento, a "Toada Beirã" Ontem à noite o Carlos esteve cá em casa. Tencionava ir ao cinema para ver "Sete Noivas para Sete Irmãos" mas atrasei-me a escrever, mudando por isso de planos, o que permitiu-lhe encontrar-me. Estivemos a conversar até às tantas. (NSM - 1971.12.02)
1972
[Foi] o tempo de ter visto a D.Vitória e lhe ter dito uns piropos até ao próximo chá. Tempo de travar conhecimento, ao jantar, com duas novas hóspedes - temporárias - cá de casa. Ambas de Montemor: uma é velhota, professora primária, de sua graça Maria Inocência, outra auxiliar social, a menina Maria do Céu, em breve senhora de não sei quem. Enfim, se eu não conseguir "controlar" as conversas à mesa terei de ouvir conversas de chacha - Porque será que há pessoas tão chatas?! (...) [Esta] minha falta de jeito para conversar em qualquer circunstância e sobre qualquer assunto! (MCG - 1972.06.07)
O silêncio que substituiu as discussões políticas à mesa após a partida da sra. D. Ilda e do sr. Marquês tem sido agora substituído por "importantíssimas" discussões entre o Diogo da Amareleja e o Victor [Dordio], do Cano, sobre as altas percentagens de reprovações no Liceu e, sobretudo, como hoje, [por] questões automobilísticas. Enfim, se todos gostassem do mesmo era esta vida uma sensaboria, como diria a sabedoria popular. (MCG - 1972.06.30)
É ao fim da tarde de 2ª feira. Está fresco no quarto; na rua o sol queima. Estirado no divã, olhos fechados, o Carlos [Nunes da Ponte] ouve as gravações [de órgão] que efectuou no sábado - algumas composições de sua autoria, outras de Bach. Está contente com a sua genialidade. (MCG - 1972.07.10 -?)
Resolvi passar à máquina o manuscrito escrito antes do jantar, enquanto o Aristides dormia ali no divã e, lá em baixo no pátio, alguém lavava a roupa. Ouvia-se a água escorrendo e o barulho dum balde ou bacia de plástico. Alguém fala aí numa das casas e o relógio da torre [da Igreja de Santo Antão] batia, então, a sua badalada do quarto de hora. (MCG - s/data 1972. 09/10 ?)
Estava eu para aqui alinhavando
estas linhas (...) quando o Carlos me entrou pelo quarto dentro, com um "Ah! Estou muito cansado. Imagina lá que
andei com o Camilo a ver monumentos; pela milésima vez fui ao Museu e à
Sé". Sabes, por causa do Camilo andar na fase cultural! ( O menino
agora anda a estudar latim, não conseguiu convencer qualquer de nós - eu e o
Carlos - a acompanhá-lo em tão profundos estudos, mas nem por isso consegui
escapar às longas dissertações ali à mesa do Arcada, especialmente quando
descobriu um interlocutor: o Régua, que também estudou latim! (MCG -
1972.10.07)
Livros lápis folhas anotadas lápis canetas um cheque dois meses atrasado no pagamento da "Seara Nova" no divã mais livros dois casacos o rádio silenciado a viola do Zé Manuel para as cantorias do Aristides as pantufas aparecendo pela colcha e mais livros dezenas deles e de revistas para qualquer lado que me volte! Se não forem livros são paredes onde esbarra o meu espírito, parede do meu quarto e da casa em frente, pela janela avista-se uma nesgazinha do céu de cinzento nublado. Pela janela entram as vozes do Orlando e da D. Vitória mais o barulho dos fritos - novamente batatas? - e o ruído distanciado dos automóveis e motorizadas com o seu acelerar e buzinar. (MCG - 1972.10.10)
É ao entardecer dum dia
gelidamente outonal. Ali no divã o Aristides e o Zé Manel cantam e tocam do Zeca
Afonso "Traz outro amigo
também" (MCG - 1972.10.11)
Tenho de interromper que a D. Vitória
já me chamou pela 3ª vez - com inflexões de zangada - e o Aristides já deve ir
no 2º prato. De resto o coraçãozinho
deve estar em trevas, pois hoje uma miúda amiga veio visitar o Aristides e ele
mandou-a subir. E como era uma miúda toda alegre, nova e de mini-saia ... bem,
imagino a tempestade que deve ser o sentido de honra e decência da recatada
senhora! Se a coisa me não tocasse também dar-me-ia vontade de rir de tudo
isto. Raio de gente que só vê pernas abertas e "poucas vergonhas!" (MCG - 1972.10.17)
Ali o José Emílio pergunta-me se
estou escrevendo as minhas memórias, entre uma garfada de arroz e outra de
carne. (...) É depois do jantar. Chove e as pingas caiem descompassadamente no
cimento, lá em baixo no pátio. O rádio transmite uma música solene e majestosa
que não identifico. O Aristides vai folheando um livro de poesia e divido a
minha atenção entre o que escrevo e o que ele me diz - lá vou dando conta do
recado (O Aristides comenta o Fernando Pessoa dizendo que é poesia de salão).
(MCG - 1972.10.12)
E como são 20 horas e a voz da D. Vitória está quase a soar!... (....) Há dias a senhora ficou muito com a alma enevoada porque cheguei ali à cozinha e comentei a vê-la fritar batatas, uma vez mais: "Qualquer dia passa a ser a das batatas fritas." Um inocente e amigável comentário provocou tais tempestades, tais amuos - agravados pela falta de doçura habitual da minha voz - que nem imaginado! Resultado, para além dos habituais comentários ("Já não sei o que hei de cozinhar!", etc.): três ou quatro dias sem batatas fritas. (...) (Regressaram hoje ao almoço! "E que saudades, Deus meu!" (MCG - 1972.10.24)
O tempo já convida a vestir se o roupão, acender o aquecedor e ficar-se pacatamente em casa, ouvindo música ou conversando, quando não se joga uma partida de cartas (MCG - 1972.10.30)
De que vou falar-te, eu que neste momento consideraria a felicidade suprema chegar a casa e sentar -me numa poltrona confortável, com Bach ou Mozart no ar e talvez amigos - ou amigas - o corpo sereno sem dentes cerrados! Mas não tenho dinheiro nem livre curso ao meu dinamismo em algo que me entusiasme! (MCG - 1972.11.20)
Há séculos que não punha a Olivetti Lettera 22 a trabalhar (intervalo para umas palmadinhas amigáveis nesta velha amiga e companheira). Que anda comigo, acompanhando-me. Que escreveu os meus relatórios e os meus protestos, as minhas alegrias e as minhas desesperanças, os meus apontamentos escolares e as minhas reflexões políticas, os meus parcos amores e lirismos! Lembro- me duma das passagens do "Diário" de Anne Frank, na qual esta se refere ou faz uma ode à sua querida caneta desaparecida. Mas não escrevo qualquer ode, "em primeiro que tudo" isto é uma Olivetti e não uma Parker ou Pelikan e, "em depois que tudo", está aqui rija e pronta a bater pelos séculos dos séculos. (...) Estou enregelado. Já devia ter-me levantado para cerrar a janela escancarada, através da qual entram não só o frio como os alegres e rápidos acordes duma qualquer composição para piano que um dos co hóspedes do Camilo põe a tocar frequentemente. (MCG - 1972.11.08)
1973
Disse me a D. Vitória que a "menina" Celeste telefonara. (ah! Este tratamento!) Não sei se haveria "festinha familiar" [pelo meu 27 º aniversário], mas sabes como as não aprecio por nada me dizerem. Jantar fora e chegar de madrugada foi um pretexto para malográ-la e, simultaneamente, estar com amigos. (MCG - 1973.01.06)
É sem grande prazer que daqui a pouco vou até ao café perder mais tempo. Aborrece me, no entanto, este enorme quarto, vazio de pessoas. A casa da D. Vitória, por motivos óbvios, não oferece condições para convívio. E este ano é o fim. O Diogo [Guerreiro] passa a vida fora de casa. As miúdas, enfiadas no quarto. De resto as nossas relações agora estão muito desagradáveis para mim. Como não sou tipo de salão e como as condições de convívio são praticamente nulas, limito-me ás minhas secas e distantes saudações, a que nem sequer correspondem. Mas já antes disso passavam pela sala [vindas da cozinha], quais bichos do mato, sem nos saudarem. (...) Ouço subir as escadas. A propósito, sabes que estas miúdas não vêm cá acima senão duas a duas !? Que reles! Imaginar-me-ão e ao Diogo, ali atrás da porta de olhos brilhantes e respiração opressa prontos a "saltarmos-lhes ao espinhaço", como se diz na gíria?! Já o sr. Prates não se enfia no quarto dele sem dar duas voltas à chave! Ah! Ah! Ah! ( ) (...) Daqui a pouco vou sair - à chuva, ao vento, desafiando as intempéries e o furor das divindades - para meter esta presença de mim no marco do correio. (MCG - 1973.01.16)
Por toda a casa soam estalidos, consequência do irrequietismo do Orlando. Não descortino bem qual o gozo daquilo, mas enfim ... Volto a página e pergunto-me que mais vou eu escrever? Levanto-me, dou uma volta pelo quarto, remexo numas quantas coisas e torno a sentar me para escrever isto. Entretanto a D.Vitória regressa, para levantar a bandeja do lanche e despejar o cinzeiro (o João, Garcia, o Carlos Nunes da Ponte, o Tobias e a Lídia empestaram-me o quarto com cigarros). Há cinco anos que lido diariamente com a D. Vitória e nunca as nossas relações foram muito cordiais nem estreitas! Acendo o candeeiro, não porque seja absolutamente necessário, mas num gesto algo inconsciente ou automatizado. Olho para a minha direita e vejo um enorme calhamaço: "Os Macondes de Moçambique", vol III - "Vida Social e Ritual". Terei de consultar este e os dois primeiros para redigir a monografia de Antropologia Cultural. (MCG - 1973.01.26)
Ontem o Diogo Fialho fez anos e fui apanhado para a festinha do costume. Como não podia deixar de ser alguém tinha de entrar pelos copos em mistura. Quem estava mais à mão de semear e convencer foi a Eglantina (com dois cálices a alegria extrovertida natural dela aumentou) mas a brincadeira saiu-me cara que ela só bebia se eu acompanhasse, e o cretino do Diogo Guerreiro (agora muito loquaz) enchia também o meu copo, em vez de disfarçar. Resultado: o estômago a arder - estou mesmo velho - e toda a ceia fora. O riso saiu.me, pois, caro. (MCG - 1973.01.23)
Verdadeiramente o quarto até parece outro, mesmo atendendo à evolução na continuidade. Que não gostou muito da brincadeira foi a D.Vitória, que ficou enxofrada por eu ter posto no corredor a abominável moldura do espelho da cómoda. Ao regressar a casa hoje aquilo estava de novo no meu quarto, arrumado embora num canto. Quando desci a ilustre senhora começou a mandar vir, que aquilo ficava no meu quarto e mais blá blá que me ia enchendo as medidas. Enfim, disse-me que me alugou o quarto para dormir e se eu queria uma sala de convívio que alugasse um apartamento. Ah! Ah! Ah! ... e este até tem sido um ano sossegado: pouca gente vem para cá para o paleio e para ouvir música ou estudar como nos primeiros anos, nem as meninas ainda cá puseram os pés, como algumas de outrora, muito menos tendo eu feito qualquer tentativa nesse sentido. Enfim, a gente tem de desculpar os nervos dos outros! (Aquilo deve também ser por causa das fotografias e posters "imorais e contra os bons costumes". " Porcarias e palhaçadas", como doutras vezes desabafou. ( ) Mas o problema é que o monstro acima referido não ficará no meu quarto. Vamos deixar arrefecer o copo de água e quando a vozinha estiver menos agreste e o olhar menos sofredor atacarei novamente, desta vez com um sorriso Pepsodent, que doutro modo não vai a ilustre senhora. (MCG - 1973.03.13)
Os ares lá por casa andam
tempestuosos. Começou já não sei bem porquê, continuou no dia em que paguei a
pensão e deve ter piorado ontem: o João Luís e a Maria Antónia estiveram no meu
quarto, à tarde, ouvindo música. A D. Vitória não grama o João Luís e uma
rapariga lá em cima - ai Jesus, credo, que lá se vai o bom nome da minha
casa! . (MCG - 1973.03.20)
Passo agora horas seguidas a
escrever, quer rascunhos manuscritos, quer dactilografando. Há pouco o Camilo
berrou-me ali da casa dele para eu deixar de escrever à noite, pois está farto
do tac-tac da máquina [pela noite dentro]. Mas cá em casa ainda ninguém se
queixou. [A casa dele ficava na Rua dos Mercadores, o quarto dele na direcção
do meu, avistando se os terraços de ambas as casas] (MCG - 1973.04.14)
Ainda estou a mastigar a última talhada dum dos bolos que a D. Vitória deixou naquela travessa, especialmente para o "menino", a transbordar. Só lá ficaram umas poucas de migalhas: um tipo não tem nada que fazer e nos intervalos do trabalho (muitos devem ser eles, não?) Vá lá uma trincadela! Ah! Ah! Ah! Pois é, a ilustre senhora foi de abalada para o Cano, mai-la sua sobrinha, mas o seu derradeiro gesto, à partida, comoveu--me. (MCG - 1973.04.16)
O céu está novamente azul e a
tarde vai a meio. (...) No gira discos, música do século XVII, de Corelli. Nada
condizente com a desarrumação que vai pelo quarto, com livros e papéis pelo
divã, conjuntamente com as calças que a D. Vitória nunca arruma naquele
simulacro de guarda fatos (MCG - 1973.05.01)
Qual é neste momento o meu anseio máximo? Descansar! Como sempre comecei a entusiasmar-me com o trabalho, desta feita o de Sociologia do Desenvolvimento, que já vai em ... - imaginem - dezoito páginas. Como não sei parar para descansar, nem tenho possibilidades de fazê-lo, o resultado está à vista. Gostava de estar assim sentado, sentindo a brisa acariciando-me o rosto e o afago duns dedos na minha pele. Mas não pode ser, que tu estás longe. E ... Como reagiriam outras pessoas se eu fosse capaz de sentar-me ao fundo das escadas, seduzido pelo gosto bom dum sorriso, e abraçasse, num gesto sem malícia, camarada, quase fraternal, a pessoa que lá estivesse? Ai Jesus, credo! Mas ... Sê-lo-ia? (MCG - 1973.05.11)
O Orlando [Prates] faz hoje anos. Deve haver festinha. Reprovou na Escola e anda ouvindo discursos por causa disso há tanto tempo que já estou enjoado (....) A Vicência faz exame depois de amanhã. (...) [O Orlando] deu me alguns dos desenhos dele (que eu podia ficar com todos os que quisesse). Vai sendo altura de mudar a decoração do meu quarto. O rapazinho agora pediu-me trabalho - não tem nada que fazer - de modo que desde sábado que me anda em arrumações aqui no quarto - ordenou-me revistas, separou-me jornais e amanhã vou comprar umas folhas de cartão para fazer cadernos para arquivar a papelada e revistas. (MCG - 1973.06.17 B)
Está frio e eu cansado. Passo os
dias na biblioteca ou no café, como vagabundo. Gosto do silêncio do meu quarto
- só se ouve o tic-tac do relógio e o roçar da caneta no papel. O café, com o
seu ruído e a fumarada, cansa-me. Mas lá é que estão as pessoas, lá é que se
conversa, lá é que falamos a sério ou rimos a bandeiras despregadas, lá se gasta
o dinheiro, em lanches e ceias, de pão de forma ou galões claros ou bolos. Uma
pequena fortuna ao fim do mês.
(...) De tarde requisitei a sala de jantar, mais fresca, e lá fiz o estendal de livros e códigos e leis e decretos leis, para tentar fazer um esquema da matéria para ver se amanhã me conseguia safar [no exame de Direito do Trabalho] (MCG - 1973.06.28 b).
Entretanto crescia em mim o nervoso miudinho, daquele que faz picadas no estômago e amarga a boca; o amigo Diogo entretanto regressou e como não estava para estudar mais matemática resolveu ligar a televisão e fez se desentendido mesmo ás mais directas. Enfim, agarrei na trouxa e fui para o Arcada (aquilo, quando me for embora de Évora - ai que alívio! - até ponhem lá uma lápide rezando: "Só lhe faltou trazer para cá a cama e o bacio")
Resumindo e concluindo, não fiz esquema nenhum, não estou com cabeça para fazê-lo e amanhã devo fazer uma linda figura. (MCG - 1973.07.01)
Quem vai entrar em compressão de despesas sou eu. A D. Vitória no próximo ano deixa de dar-me comida (ela acha que eu sou muito exigente e que não me contento com qualquer mistela) assim, diz que me leva 500 paus pelo quarto e banhos. Com tratamento de roupas, 750 $ 00. Mas não me põe cadeiras novas no quarto nem me substitui a rede do divã ("venha a nós o vosso reino"). Desabafou, desabafou, com a minha ingratidão. A conversa do costume, e que ninguém lhe dissera, como eu ontem, que antigamente o serviço e a comida eram melhores. Ai, como ela é minha amiga! Mas isso é lá à maneira dela. (...) que eu só gostava de comer com quem me agradava. Que quando era com as "senhoras" [D. Ilda e Teresinha] preferia comer sózinho. (MCG - 1973.07.08)
A D. Vitória sempre pôs-me um colchão novo no divã. Sempre terá valido para algo a minha conversata de há dias. (1973.07.15)
Lá em casa houve mudanças. As miúdas passaram para o "vosso" quarto [o das escadas para o terraço], no 2º andar. Agora passam o tempo lá em cima e - parece-me - acabou o sossego, com subidas e descidas constantes, a porta sempre abrindo e fechando, chamamentos do fundo das escadas para cima. Esperemos que acalme.
Vindo da rua, deparei com a D. Vitória carregada com camas, que ajudei a transportar escadas acima, enquanto ouvia um desabafo: "Muito pena a gente para ganhar uns tostões!" Já ontem o Orlando me retorquira "ora, isto vai mal!"quando lhe fiz a pergunta habitual: "Então, sô Orlando, como vai isso?!" Referir se ia à sua "exclusão" do 2º andar? (MCG - 1973.12.04)
Ao chegar a casa - será por isso
que o Camilo passa dias no café? - o desejo de entrar em nós e a desolação
porque não se pode contar aos livros aquilo que nos vai na alma ou comunicar as
maravilhas das descobertas que se vão fazendo diariamente. O carinho e a
ternura estão fechados dentro de mim, por trás desta máscara que não é se não
uma parte de mim. Não saberás o que é para mim este desenraizamento. Compreendo
muita coisa - sei até coisas demais que não tenho onde aplicar. O quarto
reflecte-se no negrume brilhante do vidro da janela onde se espelham os
candeeiros. (..) O tempo foge-me por entre os dedos e não sei o que me ficará
dele. (MCG - 1973.12.14)
1974
Ao entardecer a Rua do Raimundo é
um espectáculo ao descê-la. Não gosto de Évora, porque não se vê o mar, nem a
relva, nem as árvores, mas só pedras. Évora é um círculo que nos esmaga e
constrange. Mas o espectáculo da Rua do Raimundo, quando a descemos ao
entardecer!... O sol põe-se mas o céu ainda é azul, com dois luzeiros brancos
cintilando. Um arco vaporoso tingido de encarnado - rasto dum avião - cruza o
céu da rua, de casa a casa. O horizonte é um encarnado pálido e as ruas são
brancas e as pessoas passando quase fantasmagóricas.(MCG - 1974.01.03)
(…) O quarto está gelado. Passei
o fim de semana lendo umas coisas de Antropologia. Tenho os "conhecimentos" um tanto ou
quanto baralhados. A D. Vitória veio aqui há pouco trazer-me um doce e pêras de
arroz doce. Está uma simpatia de senhora! (MCG - 1974.01.03)
Ando muito cansado, necessitando de dormir umas boas sonecas, mas a cama de Évora não me seduz. O meu pai, que "descansou" uns minutos nela, disse que não valia a pena sacrificar-me: disse para comprar uma cama e um colchão decentes. Que pena não ter vindo mais cedo! (MCG - 1974.01.06)
É ao anoitecer. Ouço uma sessão
de órgão que o Carlos gravou para mim, vai para dois anos. Os óculos
encavalitados no nariz, a minha mãe vai lendo um trabalho meu sobre "A Ocupação Portuguesa de Angola" (MCG
- 1974.01.21)
Apetecia-me ir a casa de alguém,
com uma poltrona confortável, ouvir música ou conversar. (...) A partir de 6ª
feira os jornais diários passam a custar 2$50. Tudo aumenta, minha gente.
(1974.01.30)
A D. Vitória levou-me hoje ao quarto uma dose de arroz doce. Ah!Ah!Ah! (MCG - 1974.02.16)
Acabei de jantar; o [Emídio]
Guerreiro e eu comprámos comida no "snack"
Camões e viemos de abalada até casa com um carregamento de salada russa (bah!),
filetes de pescada (estavam bons mas tinham espinhas) e borrego assado com
ervilhas (saboroso, mas a carne era tanta como os ossos). Meio queijito (que o
Guerreiro tinha) e maçãs (que tenho ali) e fizemos a festa por 38$50 cada um.
Ah! esquecia-me, como fundo musical a "Pequena
Sinfonia Nocturna", de Mozart. A cadeira (desmontável) que a minha mãe
me deu permite um sentar confortável. Gosto muito de estar sentado nela: estuda-se bem. (1974 ABRIL 24)
No gira-discos Donovan interpreta "Atlantis", quase abafando o cair da chuva no pátio,
neste entardecer cinzento, que seguramente apagará as fogueiras de S. João. São
20:15 e a tua presença enche-me os sentidos e a memória como se estivesses aqui
junto a mim. Já é tarde e não me apetece ir jantar a casa do sr. Rolo. Não
consegui almoçar senão um prego e um copo de leite, pois os "turistas" tomaram de assalto
as tascas, cafés e restaurantes. (MVG - 1974.06.24)
1973
Chegou agora o Guerreiro, mas vai lendo os vespertinos para se pôr em dia. Assisti ontem, como não podia deixar de ser, ao discurso do Marcelo Caetano sobre o Ultramar Português, na sequência dos incidentes verificados em Lisboa na Capela do Rato, após a atitude tomada por um grupo de católicos - chamados progressistas - sobre a paz - e as consequências da guerra colonial. (...) Pois o discurso do 1º Ministro foi atentamente escutado pela audiência ali do Café Alentejo onde vejo o pouco que me interessa na TV. Escutado atentamente mas não reverentemente. Um discurso notável pela sua construção, pelo encadeamento (embora falacioso) das ideias e factos, pela sua poesia ("Que bom poder ser moralista...", faz-me lembrar um dos poemas dum dos heterónimos do Fernando Pessoa, pela deturpação dos factos e pela demagogia. Nem o tom nem o tema me surpreenderam. Parece um facto que o Governo Português procura uma solução política para o problema colonial. (MCG - 1973.01.16)
Rua de Serpa Pinto
(foto Susana - nocturno em 2017.12.08)
1976
Gozamos os últimos dias nesta
casa [na Quinta de Santa Catarina], pois no fim do mês mudamos para outra,
perto da Praça do Giraldo. ( ) É uma casa velha mas que foi arranjada. Tem
quatro assoalhadas (a mais pequena é do tamanho da maior desta onde estamos),
cozinha, casa de banho, dois terraços. As assoalhadas não são todas ao mesmo
nível, pelo que há escadinhas dumas para outras. A renda são 4 000 $ 00
mensais. (...)
À tarde estive a pintar a cama de
ferro e o lavatório com uma mistura de água, cal de pedreiro e soda cáustica,
para retirar a tinta de modo a ser pintada de novo. Aquilo até fumegava e tenho
a mão direita ardendo um pouco.
(…) As acácias ainda estão na
jarra mas já perderam o viço e o esplendor. Na nova casa não há quintal. É um
2º andar, mas como disse tem dois terraços, um ao pé da cozinha e outro por
cima, no último piso. Vou fazer uns jardins suspensos, com vasos. Teremos de
fazer uma compras que são indispensáveis para a casa nova: o esquentador, o
aspirador, etc. (NSF - 1976.03.14)
1979
A Celeste está lá em baixo no
terraço pintando umas coisas. Amanhã será a vez do frigorífico. (NSF -
1979.09.06)
Chove agora a cântaros e tenho
saudades do casarão de Évora [na rua Serpa Pinto], quando ouvia a chuva bater
no telhado, encanto que me está vedado neste prédio de betão armado, onde
muitas vezes só dou por ela quando chego lá abaixo à rua Largo] e ela cai em
rajadas ou deixou a marca no asfalto molhado. (MMA - 1986.12.14)
Ao lado - Susana na Rua Serpa Pinto - as várias assoalhadas estavam situadas a diferentes níveis, ligadas por pequenos lances de escadas e um enorme para o 2º terraço donde se avistava toda a Évora. Gostava muito desta casa.
Cercanias do Templo Romano
Igreja do Convento dos Loios e Templo romano
Antigo Palácio dos Condes de Soure, onde esteve instalado o Governo Civil do Distrito de Évora
Situa-se o templo no cimo da colina, conjuntamente com a Sé,
o antigo Palácio da Inquisição, o Convento dos Loios, a Biblioteca e Museu
Municipais, e o Palácio dos Duques de Cadaval, com muralha medieval e pequeno
museu, para além do Jardim de Diana, sobre a muralha romana, com ampla vista
para os arredores. Pela Rua 5 de Outubro ou da Selaria ia-se para a Praça do
Giraldo. (Notas de Viagem, 1998)
1974
Hoje foi o Dia da Polícia e está explicado porquê toda a semana têm desfilado pelas ruas da cidade: preparação do grande acontecimento, em que estrearam os capacetes cinzentos com viseira protectora, espingarda de baioneta calada ao ombro, deixando, na esquadra, o escudo protector das pedradas dos manifestantes. 50 000 mil contos teria sido a quantia gasta nos últimos tempos pelo Governo para equipar a polícia [de choque]. Ah! Ah! Os tempos vão desassossegados! (1974.03.12)
1971
Quando um dia for escrita a história do ISESE, verificar-se-à quão castradora foi a sua acção - e esterilizante - quão veementemente destruiu nas pessoas a espontaneidade, a solidariedade, a camaradagem. Não propriamente destruir, porque nesta maldita sociedade portuguesa feudalizada, cinco séculos de história contribuíram para nivelar as pessoas no temor, na mediocridade e na inautenticidade. A coragem, a hombridade, a lealdade, o entusiasmo inovador, eis o que falta ao castrado povo português! (NSM - 1971.01.14)
Estou na sala da AE. Isto é um autêntica lixeira. O chão juncado de papéis, as mesas e os móveis juncados de sebentas, de listas, de stencils amontoados. (Aqui ao meu lado um cesto de papéis ... vazio!) É impossível trabalhar nesta pocilga. Na secretária onde escrevo, uma resma aberta, o ficheiro de sócios, cinzeiros, químicos, cola, agrafador, furador, lista de vendas. Parece que foi tudo saqueado. Na realidade a Associação de Estudantes não existe. Bem sei que os que trabalham em qualquer coisa, que a fazem andar, são uma minoria. Mas aqui somos de menos! No princípio deste ano eu e o Viegas discutimos se deveríamos candidatarmo-nos de novo. Ou deixar isto extinguir-se. Venceu a primeira hipótese. Mas a messe é grande demais. Se acudimos a um lado, eis que deixamos uma parede para construir outra, eis que aquela começa a desmoronar se. E perante isto, estas paredes sempre a ruírem, o que muito me custa, penso que o melhor é deixar isto cair de vez. Se a malta prefere agir individualmente, em grupúsculos, sempre falando muito bem e agindo menos e mal, então feche-se isto. Poucos como somos, uma acção eficaz exigiria uma programação eficaz, uma dedicação grande, um não desperdiçar energias e gestos. (...) (NSM - 1971.04.11)
Salvo erro em 72/73 o Viegas e eu resolvemos não formar lista para a Direcção da Associação dos Estudantes, pelo que, à falta de candidatos, os jesuítas nomearam uma Comissão Administrativa para gerir a AE. Mas em 73/74 a malta dos três primeiros anos resolveu retomar a associação através de eleições e pressionavam-me para que encabeçasse a lista. Realizávamos então reuniões clandestinas numa sala das traseiras do Café Parque, junto à Praça de Touros, para preparar o processo eleitoral e programa da lista. Dos conspiradores lembro-me que também faziam parte o Tó Veladas, o Carrageta, o Manuel Gonçalves, o João Garcia e creio que a Maria Antónia, entre outros. Entretanto aconteceu o 25 de Abril e em Plenário Geral de Estudantes estes elegeram uma Comissão Coordenadora das Actividades da Associação dos Estudantes, que nos primeiros meses incluiu a minha pessoa. (1998)
Dispersas
Ao fundo a Igreja do antigo Convento da Graçs
fotos em 2018.01.14
Os dias da pré-Revolução
1974
Foram pancadas secas as que me acordaram cerca das 8 h 30 m desta manhã, seguidas dum jorro de luz sobre os olhos e da visão do Diogo [Guerreiro] em pijama, o rádio na mão: "Ouve lá isto e vê se percebes alguma coisa!" Meio a dormir ouço, pelo rádio, um apelo aos médicos e falar nas operações iniciadas na madrugada de hoje. Estou baralhado e nada sei sobre o que estou a ouvir. A Emissora Nacional está silenciosa. Ouve -se música portuguesa, especialmente do Zeca Afonso. Durante o resto do dia segue-se a audição dos comunicados do Comando das Forças Armadas. No Instituto a malta aglomera-se junto aos automóveis com rádio. A Filomena está assustada (Tem muito medo das revoluções!) e diz que é um golpe das esquerdas. Mas nada se sabe de concreto sobre a finalidade e orientação do Movimento. Dizem-me que os bancos estão encerrados e dou por mim a pensar se o dinheiro que tenho no bolso me chegará para o fim de semana. Felizmente que levantei ontem massas, se não estava lixado. . À cautela passo pelo Nazareth para arranjar um exemplar do "Portugal e o Futuro", livro do Spínola, que não circula em Angola e que o [meu irmão] Zé tem interesse em ler.(...) Venho até casa para saber de que lado está a RTP. A emissão começa à hora habitual - 12:45 - e surge um locutor de olhar esgazeado, olhando para a direita e para a esquerda, ouvindo-se ruídos no estúdio. A emissão é interrompida. Será um locutor do Movimento? A emissão recomeça pouco depois e a dúvida desvanece-se: o locutor, com ar atrapalhado, informa que seguir-se-à um filme da série Daktari, o telejornal das 13:45 e a Telescola. A emissão é novamente interrompida, recomeçando pouco depois com o filme anunciado: animais sendo caçados com laços. (...) Nos comunicados do MFA o general Spínola é apresentado como o fiel intérprete dos sentimentos da população (que não se teria manifestado) ( ) Eis o homem. Para já, teremos uma ditadura para restaurar as liberdades cívicas.
Nas ruas de Évora, durante o dia, a malta sorria-se, euforicamente, numa euforia um pouco contida. (1974 ABRIL 25).
A Rádio
Renascença transmite “Os vampiros", do Zeca Afonso! Rei morto,
rei posto! A Junta de Salvação Nacional, como a si própria se intitula, abre a
tarracha e já hoje tornou público o seu programa, cujo ponto limite é a
realização de eleições gerais para a Assembleia Constituinte e Presidente da
República no prazo de 12 meses.
No café
Estrela velhos falam dizendo que os jovens de agora são melhores que no seu tempo:
"A gente também não concordava com o Salazar mas nunca tivemos coragem
de fazermos o que eles fizeram.". Nas imagens que a RTP transmite
a nota dominante entre os manifestantes e os mirones era a juventude. Outro
velho diz que nunca foi marcelista.
No Instituto
o Director [António da Silva, s.j.] anda nervoso e carrancudo. Comunica à
Comissão Administrativa da Associação dos Estudantes que não autoriza a Reunião
Geral de Alunos convocada para essa tarde, pretende que a [referida] Comissão
nomeie outra Comissão, que deverá submeter à sanção da Direcção do Instituto. A
Comissão discorda, o Director desdiz-se mas exige que lhe sejam comunicados os
nomes, reservando-se o direito de vetá-los. A Reunião realiza-se [fora das
instalações do ISESE, na provisória sede da CDE, no que fora até aí a sede da Legião Portuguesa], comparecendo 30 estudantes.
É aceite por
maioria absoluta uma moção minha: "Escolher uma Comissão que terá
como finalidade detectar junto dos estudantes dos problemas que os afectam
enquanto estudantes., o modo de resolvê los bem como à sua atitude face à
Associação dos Estudantes"
Seguidamente
10 dos estudantes presentes oferecem-se para serem votados para constituírem
essa comissão. Decide-se que serão escolhidos os cinco nomes mais votados
integrarão a Comissão, que fica assim constituída: Ribeiro (1º ano) - 9 votos;
Luís Carmelo (2º ano sociologia) - 11 votos; João Luís Garcia (3º ano
sociologia) - 11 votos; Faria Monteiro (1º ano) - 12 votos; Victor Nogueira (5º
ano sociologia) - 16 votos.
Quer a
direcção [do ISESE] aceite ou não, ela submeter se à a um plebiscito [entenda
se, ractificação] junto de todos os estudantes. (MCG - 1974.04.26)
O Telejornal
transmite a libertação dos presos políticos do Forte Caxias. (...) Uma grande
multidão - milhares de pessoas aguardaram durante mais de hora e meia pela
chegada do cortejo automóvel que acompanhava os presos políticos libertados -
uns 3 ou quatro, um dos quais há 12 anos. [entre eles, Dinis Miranda e António Gervásio] (...) Na placa central da Praça
do Giraldo um grande magote de pessoas estão comprando "A
Capital". São autênticas corridas aos jornais, avidamente disputados,
como os dos últimos dias. Toda a gente anda de jornal debaixo do braço ou lê-o à
mesa do café ou especado na rua. Até, oh! surpresa, raparigas! (Muitas mulheres
têm tanta pena do Marcelo [Caetano], coitadinho, tão simpático, tão amigo do
povo!) SAFA! A caça aos PIDES continua. (...)
Passaram
hoje em Évora uma coluna de carros de assalto, jipões e jeeps. Os soldados iam
sorridentes, acenavam, alguns tinham flores nos canos das armas. Os populares
gritam "Obrigado, rapazes!" e eu depois tenho pena
de não ter correspondido ao aceno dos militares, apesar de estar comovido.
(...) O 1º de Maio - Dia do Trabalhador - é finalmente feriado. Prevê-se uma
manifestação, que de resto agora são livres.
(...) Viste
o TV 7, ontem, domingo? É muito para um homem só ouvir finalmente, aquilo que
alguns pensavam, muitos sentiam, mas não se podia dizer. É sobretudo o fim da
guerra colonial, o direito à greve... Não, (...) não creio que se possa
retroceder. A luta dos próximos tempos será de morte (não, não me refiro à
guerra civil!); espero que o povo português não perca tudo o que pretenderão
tirar-lhe: uma sociedade mais justa e humana. Mas de algo estou certo: "a
longa noite do fascismo não voltará!". (MCG - 1974.04.27/28)
PROCLAMAÇÃO
Os
estudantes do ISESE, reunidos em 3 Maio 1974, saúdam todos quantos, sobretudo
na clandestinidade e com risco da sua segurança e bem-estar, tem lutado contra
todas as formas de repressão e violação dos direitos humanos em sociedade,
nomeadamente a partir da instauração da ditadura fascista em Portugal;
Incluem nesta saudação o Movimento
das Forças Armadas
Na sequência lógica das Declarações
Universais dos Direitos Humanos e da Doutrina Social da Igreja;
Considerando os poderes
discricionários da Direcção do ISESE, exclusivamente formada por membros da
Companha Portuguesa de Jesus e dela directa e exclusivamente dependentes;
REIVINDICAM:
- o direito de participação na
gestão do ISESE
DECLARAM que o direito de
participação na gestão do ISESE implica
-o reconhecimento imediato dum
Conselho de Estudantes (cuja constituição será objecto duma próxima RGA);
- a liberdade de expressão do
pensamento e na procura das verdade, o
que implica a abolição do ensino dogmático e magistral;
- o reconhecimento imediato do
direito de participação na constituição dos júris de exame;
- a liberdade de comparência às
aulas, o que implica a abolição imediata do regime de faltas;
-a liberdade de reunião nas
instalações do ISESE.
RECONHECEM aos empregados do ISESE o
direito de participação e decisão na resolução dos próprios assuntos.
SAÚDAM todos os professores do ISESE
que de forma inequívoca e expressa adiram ao conteúdo da presente proclamação.
DECLARAM que prosseguirão na sua
luta contra todos quantos, de qualquer modo, se oponham às declarações e
reivindicações da presente proclamação.
(aprovado em
Plenário Geral de 3 Maio 74 - A Comissão
Coordenadora das Actividades da Associação dos Estudantes)
A "Brigada de Saneamento" chegou ao Instituto: o movimento
foi crescendo e engrossando desde o 26 de abril, em que a Direcção do ISESE
tentou impedir a realização duma Reunião Geral de Alunos [RGA] e impôr uma
Comissão Administrativa da AE do seu agrado. E desde 6ª feira passada, 3 maio,
o ISESE está em polvorosa e com reuniões de cursos para discussão e
deliberações sobre cadeiras e professores que vão desde decisões de
reorganização de programas, supressão de cadeiras, demissão de professores e
abolição de aulas e exames. Entretanto os Jesuítas voltaram completamente a
casaca e já aceitam diálogos e participações e até convocaram a Comunidade
Académica (professores, alunos e empregados) para uma reunião hoje à noite!
Comunidade Académica !!?? Como é possível mudarem‑se as pessoas dum dia para o
outro? Estou estupefacto! Enfim ...
Tenho tido muito trabalho: durante todos estes dias e noites estive
praticamente sózinho tentando levar a água ao moinho da unidade dos estudantes
para a gestão do ISESE. A Direcção [dos Jesuítas] tem sido completamente desautorizada
e fazendo esforços para controlar a situação. A Comissão Organizadora [da Associação dos Estudantes] tem estado a
estruturar‑se especialmente desde ontem e é preciso agora organizar as
Comissões de Trabalho para não serem torneadas pela Direcção [do isese] ([1]) (MCG - 1974.05.07)
(...)
Tirando os jornais, praticamente desde o 25 de Abril nada mais tenho lido;
quase não paro em casa e tenho também um certo desassossego em mim, porque o
tempo nem sempre tem sido eficazmente aproveitado. Para além disso o tempo dum
homem é também para o amor e ternura e estes têm estado ausentes. Enfim...
(Sabes, é bom também sentir-se o corpo duma mulher junto a nós, porque o amor e
a ternura não são só palavras, muito menos apenas escritas, mas também a
possibilidade de se manifestarem nos gestos).
Sinto-me
alheio ao que se está passando em Portugal. Alheio não porque me desinteresse,
mas porque me escapa o significado de muita coisa (desde há dois anos que
deixei quase de estudar para compreender a realidade do que me cerca) Sinto-me
assim ultrapassado numa altura em que o desenrolar dos acontecimentos exige uma
grande lucidez) (MCG - 1974.06.10)
Hoje esteve
um dia bonito e fresco, durante o qual estiveste muitas vezes no meu
pensamento. O vento ligeiro agita as antenas de TV no telhado, enquanto
andorinhas chilreiam e cruzam o céu azul. É já ao entardecer. (MCG -
1974.07.14)
Ao lado - Desenho do Cartaz das Festas dos Finalistas do ISESE 1971/72, concebido no grupo do Café Arcada e desenhado pelo Camilo Monteiro - fundo vermelho - venceu o concurso mas não chegou a ser publicado. Neste esboço faltam as letras
No café,
ontem, a "Capital" aberta sobre a mesa, ia lendo a
notícia, antes, o discurso do Spínola, uma grande emoção subindo por mim: finalmente
a independência para o meu País. Angola livrar-se-à, finalmente, da tutela
asfixiante de Lisboa. Mas... quem vencerá? O capitalismo internacional ou os
povos de Angola, Guiné e Moçambique? O reconhecimento do direito à
independência é já um primeiro passo, mas a luta continuará. Pois é, minha
linda, mas não tinha ninguém com quem partilhar a minha alegria..Ao contrário
desta malta que, desde há pouco, em longa fila de automóveis, buzinando
estridentemente, sobe a Rua Serpa Pinto, circundando várias vezes o Giraldo e
segue pela Rua S. João de Deus. Vão sorridentes e acenantes, agitando bandeiras
azuis e brancas, as pessoas concentrando-se sorridentes nos passeios. Pergunto
ao meu vizinho o que se passa e a resposta vem breve: "O
Juventude" passou à 2ª divisão!" Ah!Ah!Ah!
Ontem, no
comício do PC, ali no Rossio de S. Brás, o Álvaro Cunhal falou na independência
dos povos das colónias. Mas nem uma única palavra, ou referência, aos
movimentos de libertação: MPLA, FRELIMO, PAIGC! Ainda antes do Álvaro Cunhal
falar o palco foi abaixo por duas vezes. Uma multidão imensa concentrava-se em
redor do palco, junto ao Monte Alentejano, agitando-se inúmeras bandeiras
vermelhas do PC. Bem orquestrada, a multidão repetia as palavras de ordem, de
punho erguido. Detecto, junto a mim, um grupo que deve ser da "claque".
Quando se falam nas torturas sofridas pelo Cunhal e outro comunista, uma mulher
ao meu lado diz-me: "Coitadinho! Bandidos!" E a multidão
grita: "Morte à PIDE!". Dois delegados dos Sindicatos Agrícolas (Évora
e Beja) enumeram as quebras dos contratos colectivos de trabalho e o nome dos
latifundiários. A multidão grita: "Morte aos cães!" "A terra a
quem a trabalha!". Ao meu lado, algumas mulheres dizem: "É assim mesmo!" e "Essa sou eu!", quando se fala em ranchos despedidos.O Álvaro Cunhal cita as lutas revolucionárias dos
trabalhadores alentejanos e a "palha" que os
latifundiários teriam mandado dar aos trabalhadores que imploravam comida. E a
revolta; que enquanto houvesse ovelhas, galinhas e porcos não comiam palha os
trabalhadores!
O Partido
faz a sua campanha e no palco estão tipos que já conheço de há muito. Por
detrás deles, enormes, em fundo vermelho, as efígies de Marx, Engels e Lenine.
A brancura de Évora é agora quebrada por cartazes do PC. Marx, Engels e Lenine
enchem as ruas, conjuntamente com cartazes com a foice e o martelo. (MCG -
1974.07.28)
Numa curva
da planície surgem as torres da Sé de Évora, mai-lo seu casario branco. Como
sempre, não sinto nenhuma alegria ao avistar o "burgo
medieval". (MCG - 1974.09.01)
Fui hoje ao
ISESE: aquela malta anda pelos cantos, perguntando uns aos outros (e alguns a
mim): "Então, que vamos fazer?" (MCG - 1974.09.02)
Ainda não é
meia noite e já foi tempo de jantar - que saudades do bacalhau cozido com grão!
- e andar por aí, vendo as montras e dando umas voltas. As camisolas de gola
alta estão caras: aproximadamente 500 paus! No Nazareth, muito "progressivo" -
já não há PIDE para revistar-lhe a loja [livraria]; exibem-se, em plena montra,
obras de Lenine e revistas de nus femininos, daquelas que após o 25 de Abril
povoam os passeios, livrarias e tabacarias, para as pessoas fazerem o gosto ao
olho e se irem masturbando, à falta dum corpo que possam amar, numa sociedade
hipócrita e farisaica.(...) Passo pelas ruas de Évora, debaixo dos arcos
[arcadas]. As pessoas cruzam-se comigo e do café vêm o vozear e algumas
gargalhadas, que extravasam para as ruas, agora cheias de papéis rasgados e com
as paredes pintalgadas de cartazes. Évora, a cidade limpinha onde não se viam
outrora cartazes, salvo os da ANP em tempos de farsa eleitoral. No ISESE o
piquete saúda-me calorosamente à minha entrada e, após algumas piadolas -
por causa da pró-UNEP [conotada com o PCP e a UEC] - retomam o jogo das cartas. As casas de banho
cheiram a ácido úrico. Puseram sofás num corredor do r/c e aí dormem os do
piquete. Que os Jesuítas consideram ilegal e abusivo. Pela paredes e bancos,
o "Revolução", do PRP-BR, o "Luta Popular", do
MRPP e comunicados e cartazes do MES e da Associação Portugal China. O ISESE é
um reduto anti PC. Para muitos, creio que parece bem e está na moda! ( ) (MCG -
1974.11.25/26)
Évora é uma
cidade estúpida. 6 meses de ausência (e se calhar a saturação de 6 anos) fazem-me ressaltar toda esta falta de dinamismo, de interesse, de imaginação. É um
encolher de ombros, um arrastar-se pelos cafés, um encostar-se pelas paredes,
um nada ter que fazer ou para onde ir. Uma perfeita estagnação. Talvez que um
tipo tendo casa e emprego, a coisa se torne menos monótona. Mesmo assim, acho
que preferia mil vezes Setúbal. Tem mais movimento e não parece uma ilha como
este burgo medieval. (...) Soou agora o apito do comboio da meia noite. (MCG -
1974.11.28)
Aqui no café
Estrela vão progressivamente substituindo as pequenas mesas de pedra preta e as
cadeiras amarelas por amplas mesas brancas com armação preta e confortáveis e
anatómicas cadeiras laranja. É o fim da manhã de domingo, um domingo cheio de
sol mas frio. (MCG - 1974.12.08)
Pouca terra,
pouca terra, cá vai o comboio para Évora. (...) Despachei as malas - vêm no
furgão, mas o saco com os livros pesa muito. Ali duas velhotas discutem as
vantagens de ser criada de servir: ganham bem, vestem os vestidos da senhora,
não gastam nada. Uma vida de fidalgas. Opiniões! Há pouco discutiam a nudez:
passar aí um homem todo nú, que falta de moral e patati patata. Eu rio-me a
bandeiras despregadas e ela mete-se comigo. (MCG - 1974.12.10)
Acabou de
chegar o almoço. Isto não é comida para uma pessoa de alimento como eu. Évora
deve ser das cidades onde se come pior. Parece que os alentejanos jejuam por
sistema. Arre! (MCG - 1974.12.16)
Ontem andei de avião [pilotado pelo meu colega Seruca Salgado, na foto] sobre Évora, que é uma cidade bestial lá de cima. Foi
a 2ª vez que andei de avioneta na minha vida - a 1ª foi em Angola [no ano em
que residimos no Uíge, onde o meu pai fora colocado], tinha para aí três anos.
Tirei umas fotografias. (...) Aqui para nós, um pouco antes, quando o teco-teco
começou a rolar na pista estava um pouco apreensivo, mas logo liguei à terra.
Sobrevoámos a cidade, fomos a S. Bento, às piscinas, à Cartuxa, ao Convento do
Espinheiro. É bestial! (1974.12.23)
O ISESE foi desocupado às 14:30, por decisão do Plenário de Estudantes. [Os
Jesuítas] vistoriaram o edifício, que foi achado em bom estado de conservação,
apesar de não sei quantas lâmpadas fundidas, dum interruptor partido, dum quebra
luz partido - 15 contos (resultado duma bola mais alta) e duma poltrona
combalida. (...) Nas instalações da Associação dos Estudantes foi assinada a
acta de desocupação, depois de mais discussão sobre os termos [da mesma]
(1974.12.26)
[1]- A recusa da Direcção do ISESE em partilhar a gestão
do ISESE com os estudantes, pretendendo reservar a última palavra para a
Companhia de Jesus, levou à radicalização do processo e à ocupação do Instituto
pelo corpo discente [com o apoio de alguns dos professores progressistas]. Contudo à medida
que o tempo avançava os estudantes iam abandonando o processo e regressando a
suas casas - a maioria não era de Évora, pelo que nas vésperas do Natal e Ano
Novo não havia quem assegurasse a ocupação,
pelo que fácil teria sido aos Jesuítas reocuparem as instalações. Penso contudo
que o evoluir da situação política e a perda de controle final sobre a gestão e
orientação ideológica do Instituto não era do seu agrado, pelo que assinaram um
protocolo com o Governo visando a suspensão das actividades do ISESE e
assegurando uma situação transitória para os que não tivessem terminado os
cursos, mediante a criação duma escola de duração limitada no tempo - a Escola
Bento de Jesus Caraça - (re)criando-se depois a Universidade de Évora, extinta
pelo Marquês de Pombal no século XVIII, embora gorando-se a expectativa dos
Jesuítas retomarem o seu controle. Os cursos do ISESE, permitidos graças ao
contributo da Fundação Eugénio de Almeida e do Conde de Vilalva, pretendiam no Alentejo
formar as elites que assegurassem a gestão das empresas e da Administração Pública numa perspectiva
económica e social. De acordo com a cadeira de Doutrinas Sociais, o capitalismo tinha alguma coisas más, o socialismo algumas coisa boas mas a verdade e o caminho estavam na Doutrina Social da Igreja. Economia era escolhido por filhos de gente como os Espírito
Santo, Champalimaud e outros, enquanto Sociologia era frequentado por
ex-seminaristas e ambos por rapazes e raparigas cujos pais não tinham posses ou
preferiam tê-las longe da depravação e
agitação de Lisboa. Em Sociologia
poucos lá estavam por opção, como eu ou o Victor Ângelo. Aliás, com defeitos
embora, era o único curso de Sociologia em Portugal antes do 25 de Abril, já
que o Governo de então considerava este ramo do conhecimento como sendo pouco
aconselhável por potencialmente subversivo.
Cartoon - João Abel Manta - Os vira-casacas e as vítimas da Guerra Colonial
O quarto do estudante
fotos MENS em 1974
Atrás do sofá, a servir de recosto, um colchão insuflável da tropa que trouxera de Luanda e à minha direita os sacos da TAP que me serviam para transportar a bagagem nas minhas viagens de avião ou para Lisboa/Porto ou aos fins de semana para a Amareleja ou, Beringel / Beja e regressos. Na parede a reprodução dum quadro de Van Gogh (Cafe Terrace, à noite), um Cristo, do Camilo, artesanato alentejano e uma foice que trouxera do monte do pai da Celeste, em Santo Amador (Moura). Também se vislumbram duas das garrafas de uísque das que comprava a bordo do avião nas viagens de regresso a Portugal. Afixado também um poster do ITAU, “O amor é um pássaro azul no alto da madrugada”, de Maria Rosa Colaço. Este e algumas das outras imagens afixadas nas paredes do meu quarto eram pela dona da casa de hóspedes consideradas "porcarias" e "poucas vergonhas", que em vão e por vezes quis que eu os retirasse.
O ascético divã onde dormia. O armário servia de guarda roupa (nas gavetas) e de biblioteca. Nas paredes, uma litogravura de Ribeiro de Pavia (Alentejanos), adquirida numa campanha para recolha de fundos pelas CDE, para além de reproduções dum quadro de Picasso e fotos do Maio de 68, da Guerra do Vietname e em Angola e da Liz Taylor no filme "Quem tem medo de Virgínia Wolf ?"
O ascético divã onde dormia, a mesa de estudo com o candeeiro mais a incómoda cadeira e, na cómoda, o gravador de cassetes, trazido de Luanda, o gira-discos Philips, comprado na loja do pai do Sertório, uma bandeja em vime, artesanato da Madeira oferecida pelo meu irmão, e a reprodução doutro quadro de Picasso. Por cima dos livros outra das "porcarias " e "poucas vergonhas", uma foto (cartaz) a preto e branco dum dorso feminino, das nádegas ao pescoço. Em nenhuma das fotos aparece um poster de Charlot e de Jackie Coogan no filme O Garoto de Charlot.
À esquerda o armário de que se falou acima e à direita o "guarda-fatos", com um cortinado a servir de porta, e afixada na porta do quarto a minha caricatura feita pelo Carlos Barradas para a Festa de Finalistas do Liceu Nacional Salvador Correia, em Luanda, no ano de 1965 / 66. Em 1º plano um dos livros das Teses do III Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro, de 4 a 8 de Abril de 1973
Siglas
AE – Associação dos Estudantes
ANP – Acção Nacional Popular
CDE – Comissões Democráticas Eleitorais
ESESE – Escola Superior de Estudos Económicos e Sociais
Bento de Jesus Caraça
FRELIMO – Frente para a Libertação de Moçambique
ISESE – Instituto Superior Económico e Social de Évora
MÊS – Movimento de Esquerda Socialista
MFA – Movimento das Forças Armadas
MPLA – Movimento Popular para a Libertação de Angola
MRPP – Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado
ONU – Organização das Nações Unidas
PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e
Cabo Verde
PC / PCP – Partido Comunista Português
PIDE – Polícia de Informação e Defesa do Estado
Pró-UNEP – União Nacional dos Estudantes Portugueses
PRP/BR – Partido Revolucionário do Proletariado / Brigadas Revolucionárias
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