Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

em Pointe Noire, 1958 / 1959

* Victor Nogueira


Na casa dos Gaspar

Na praia



Com Jacques Tiolais




Com Nicole Tiolais



Com o casal Gaspar

No verso das fotos anotei: "Numa praia de Pointe Noire, durante um picnic. Pescou-se uma raia que depois se deitou fora. Para beber só havia cerveja, de maneira que eu e o João Gaspar ficámos cheiros de sede. A Nicole era francesa e tinha uma irmã, a Chantal, e um irmão, o Jacques Tiolais. Íamos frequentemente a casa deles. (fotos em 1958.08)


Alice Gaspar

Fotos João Gaspar (?)
~
1958
Chegámos bem a P. Negra. O João [Gaspar] no primeiro dia caiu doente, mas já se encontra bom. O Zé sente a minha falta [?]. Já visitei a cidade quase toda. Ontem fui almoçar a casa dum rapaz e á tarde fui ao cinema ver dois filmes: "Victime du Destin" e "La Belle Otero" (MEB 1958.08.xx)

Já visitei a cidade, que é engraçada, mas diferente de Luanda. A tia já mandou os “Cavaleiros Andantes”? Cá os indígenas são mais “finos” do que os de Luanda. Quase todos têm o seu carro, bicicleta, etc (JJCF 1958)

Ponta Negra (Pointe Noire) [na Africa Equatorial Francesa] é bonita, mas Luanda é mais. Tenho falado francês. Aqui trabalha-se todos os dias, até ao domingo. (MEB - 1958.08.12)

Então, como vai? Sentes falta do teu Victor? Não vos escrevi há mais tempo porque só há avião para Luanda ás 5.ªs feiras. Já visitei grande parte da cidade. Devo embarcar no dia 4 de Setembro. (MNS -1958.08.XX)
1959
Vim a Ponta Negra pela 2ª vez [A 1ª fora nas férias grandes do ano anterior].  Isto é uma cidade muito pacata. A vida é monótona. Espero aqui voltar 3ª vez. A maioria da população é portuguesa. (...) Tenho ido bastantes vezes ao cinema. Aqui num mês fui mais vezes ao cinema do que durante um ano em Luanda. (MLCF - 1959.07.27) 

Os pretos, como não sabem o meu nome, chamam me "Le Portugais", tanto na loja como na rua. (...). Um deles disse que eu tinha cara de francês. Que pouca sorte a minha. (MEB - 1959.07.27)
Eu não sei escrever cartas sem ser em estilo telegráfico, pois a minha vida aqui é sempre igual. (MNS -1959.08.05)
Estive em Pointe Noire por duas vezes: em 1958, de Agosto 07 a Setembro 04, e em 1959, de Junho 24 a Agosto 26.
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1. Viajei de avião a Ponta N egra, na A.E.F. [Afrique Équatoriale Française]. Passei as férias em casa do sr. António Gaspar e sra. D. Alice Gaspar. Primeiras impressões sobre a vida sexual humana. Comecei a escrever um Diário, que durou poucos dias. Em P. Noire chamavam-me “Le Portugais”. (Diário III pags 4 e 5)
2. Viajei de avião a Ponta Negra, onde fui passar as Férias Grandes pela 2ª vez 1ª paixão da minha adolescência: Maria Filomena Amaro (Bébé). Pointe Noire é uma cidade recente, (Diário III pag. 5)

Já li (em Pointe Noire) os seguintes romances célebres: A Cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe (um livro que foi dos poucos que me fez verter lágrimas). É um romance a mostrar como os escravos negros eram tratados, separados dos filhos e das mulheres, obrigados a casar com outras (ou com outros), não importando se eram cristãos ou não), Fabiola, do Cardeal Wiseman (perseguições aos cristãos no tempo do começo do cristianismo), A Estranha História de Oliver Twist, de Charles Dickens, A Letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, A Dama do Nevoeiro, O Pirata, Rob Roy, O Cavaleiro da Escócia, todos de Walter Scott, Quo Vadis, de Henry Lienkyewicz e Feira das Vaidades, de William Tackeray.  (NSF - 1959.08.09)

Em Ponta Negra a minha vida era quase sempre a mesma. (...) Nas primeiras semanas eu ia brincar a casa do Zé Vieira e vice-versa. Geralmente praticávamos tiro ao alvo ou caçávamos pássaros com espingardas de chumbos. Um dia, por certas razões, deixei de ir a casa dele e vice-versa (outra vez!) Em casa dele andei várias vezes de bicicleta. 

Lia quase todos os dias umas quatro horas e passava uma ou duas horas a falar francês com o lavadeiro. Ultimamente passava muito tempo na loja a falar francês com os clientes. Algumas vezes ia a casa da Maria Alice, a noiva do Correia Martins. Almocei lá uma vez e jantei no dia em que o C.M. a pediu em casamento. 

À noitinha o sr. Gaspar e o João iam ao Correio e à Livraria e eu aproveitava e ia com eles. Algumas vezes saia também com o João.

Ao princípio eu dormia com o João, mas depois, por causa dumas discussões que tive com ele, mudei para o quarto do lado. 

Ia todos os domingos à missa, excepto no último. E ia sempre à missa das 8 horas. Só umas duas ou três vezes é que a D. Alice foi comigo.

Assisti aos aniversários do Zé Vieira, duma rapariga conhecida do João. Almocei duas vezes em casa do Zé Vieira. Na véspera da minha partida fui convidado por ele, mas recusei. 

Quase todas as terças feiras ia ao Correio comprar selos e despachar as cartas. Escrevi vinte e uma cartas: cinco ao pai (3), três ao José João (2), oito à mãe (6), duas à Gininha (0), uma ao avô Zé Luís (0), uma à Maria Luísa (0), uma ao Espinheira Rio (1). Os números entre parênteses indicam o número de cartas que recebi em resposta. Não recebi resposta a nove cartas.

Fui a dez matinées e onze soirées. Vi 25 filmes. Todas as terças feiras e algumas vezes à quarta havia dois filmes à noite, num dos cinemas. 
Em Ponta Negra comprei quatro livros e uma lembrança, além de várias coisas que necessitava. (MEB - 1959.09.04)
Li o livro "Fabíola", do Cardeal Wiseman. Trata das perseguições aos cristãos no século IV. À tarde fui ver o filme "Cinq Fusils à l'Ouest", [de Roger Corman - 1955] no Vox. De manhã fui ver a parada militar. Além do desfile dos soldados, desfilaram "jeeps", ambulâncias do exército, camiões de transporte de tropas e carros blindados. Os tanques de guerra não desfilaram. Sobrevoaram a cidade quatro aviões militares. Foram condecorados três oficiais. (Diário II - 1959.07.14) ([1])

[1]  - Do filme “Guerre et Paix”, de King Vidor (1956) baseado no romance de Léon Tolstoi, impressionaram-me as cenas de batalha com a infantaria avançando em filas cerradas, os soldados morrendo como tordos, uns sobre os outros, mas sempre avançando, ao som dos tambores e do troar dos canhões.  Quando na tela Napoleão queimava as bandeiras francesas, ao retirar da Rússia, muitos franceses abandonaram a sala.

[2] - Da casa de Ponta Negra pouco me recordo já. Era um edifício grande, com dois pisos e um quintal nas traseiras. No piso térreo os armazéns e a loja e no superior a casa de habitação. Na loja vendia-se de tudo e ainda hoje o cheiro a panos e a bacalhau traz-me à memória a loja e o seu conteúdo. Pouco mais me recordo para além do que ficou acima registado e nas poucas fotografias. Lembro-me que havia um lavadeiro negro, o que me causou alguma perplexidade então, pois tal tarefa em Luanda era feminina. Com este empregado tinha longas conversas em francês.

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Filmes que vi em Pointe Noire.
Far-west - L'Aigle Solitaire, 5 Fusils à l'Ouest (no Cine Vox), La Derniére Fleche (com Tyrone Power), Je Suis un Aventurier, Tomahawk [este no cine Vox].
Grande Guerra - Kanal (insurreição dos polacos contra os nazis em 1944. Neste filme vêm‑se os horrores da guerra, só desejada pelos que ficam em casa e não se arriscam como os soldados se arriscam, a morrer sem saber quando), L'Almiral Canaris, no Cine Vox. (Filme de espionagem alemã hitleriana. L'Almiral Canaris, o chefe da espionagem alemã, que sempre foi contra a guerra, e que foi enforcado por ordem de Hitler  horas antes dos aliados tomarem a cidade onde ele residia. Grande parte das cenas deste filme são verídicas, pois são provenientes de documentários da época). Le Dictateur (Neste filme, que é de rir até mais não, Charles Chaplin põe no ridículo Hitler), Le Renard des Oceans.
Outros géneros - "Scipion, L'Africaine". La Guerre et La Paix [Impressionantes as marchas da infantaria cerrada contra a artilharia, em vagas sucessivas e dizimadas.] Houve espectadores que abandonaram a sala de exibição (Cine Potinière). O filme tinha muitas cenas cortadas, especialmente no que se refere à derrota dos franceses. Uma cena foi suprimida: quando Napoleão queima as bandeiras francesas, forçado a retirar‑se da Rússia após a invasão até Moscovo]
Circo - Sous le Grand Chapiteau du Monde (um dos melhores filmes que foram produzidos)
Outros filmes - "Dick Turpin, le Bandit Gentil‑homme", "Tu Seras un Homme, mon Fils" (com Tironne Power), "Les Grandes Familles" (mostrando que a riqueza não traz a felicidade), "Jordan, le Revolté" (filme de gangsters, no Vox), "Ulisse",  "Magie Vert" (vêm‑se as paisagens do Perú, Bolívia e Brasil)

Hoje devo ir ver um filme cómico: "Comme un Cheveu sur la Soupe". (1959.08.09)




Alice e João Gaspar, em Luanda

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