Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

quinta-feira, 11 de março de 2021

O casarão da rua de alconchel

 * Victor Nogueira

A rua de Alconchel

Foto dum conjunto num voo em teco teco pilotado pelo meu colega Seruca Salgado, em 1974.dezembro. Nela distinguem-se as torres da muralha  que ladeavam a Porta de Alconchel e a rua homónima subindo até à Praça do Giraldo.


Porta de Alconchel


Troço da muralha medieval (cerca nova), entre as Portas de Alconchel e a do Raimundo

2021

Na sinuosa mas relativamente larga Rua de Serpa Pinto em Évora residimos num enorme casarão, com dois terraços, dum dos quais se avistavam a cidade e o campo. Estendia-se a antiga Rua de Alconchel desde a porta medieval homónima (erguida em 1402) até à Praça do Giraldo, a qual se avistava das janelas. Defronte destas se situa o antigo Palácio do Barrocal, propriedade do INATEL (antiga FNAT) com seu pátio interior, onde presentemente está instalado um polo do Museu do Relógio, este sedeado em Serpa. Um pouco mais acima, paredes meias com a Igreja de Santo Antão, encontra-se o antigo "Chafariz dos Cavalos". Nesta rua se localizava a livraria dum antigo empregado da Nazareth, o António, que antes de Abril também vendia livros proibidos por debaixo do balcão e que no início também tinha uma galeria de exposições de arte, depois substituída por mais estantes de livros. Outro edifício importante é o do antigo Convento de Santa Clara (séculos XVI a XVIII), desde 1936 com funções de estabelecimento de ensino.

1973

Chegados a Évora, a 1ª bomba de gasolina ostentava ainda (?) o fatídico "Esgotado"; na 2ª uma longa fila de automóveis estendia-se desde a Porta do Raimundo à Porta de Alconchel. Mais uns metros adiante um auto tanque da SACOR enfiava pela estação de serviço (à saída para Lisboa) e num ápice 6 automóveis iniciaram uma bicha. Azar, que o empregado logo disse que só amanhã, às 8 da matina. E assim saímos do 5º lugar. É o que eu digo: a continuar assim a gasolina esgota-se ainda mesmo antes de haver. (MCG - 1973.12.03)

Há gasolina à farta nas bombas de Évora e acabaram as bichas [e o racionamento]. (MCG - 1973.12.04)

1974

No café, ontem, a "Capital" aberta sobre a mesa, ia lendo a notícia, antes, o discurso do Spínola, uma grande emoção subindo por mim: finalmente a independência para o meu País. Angola livrar-se-á, finalmente, da tutela asfixiante de Lisboa. Mas ... quem vencerá? O capitalismo internacional ou os povos de Angola, Guiné e Moçambique? O reconhecimento do direito à independência é já um primeiro passo, mas a luta continuará. Pois é, minha linda, mas não tinha ninguém com quem partilhar a minha alegria.  Ao contrário desta malta que, desde há pouco, em longa fila de automóveis, buzinando estridentemente, sobe a rua Serpa Pinto, circundando várias vezes o Giraldo e segue pela R. S. João de Deus. Vão sorridentes e acenantes, agitando bandeiras azuis e brancas, as pessoas concentrando-se sorridentes nos passeios. Pergunto ao meu vizinho o que se passa e a resposta vem breve: "O Juventude" passou à 2ª divisão!" Ah!Ah!Ah!  (MCG - 1974.07.28)

1976

Safa, isto hoje é chuva sobre chuva! Já aborrece tanta água. Estou aqui num café ao fundo da Rua Serpa Pinto, para alinhavar estas linhas. Passei agora pelo Sindicato [dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de Évora] onde arranjei uma colecção das teses da Conferência da Reforma Agrária. (1976.11.11)




Á  esquerda as duas janelas do quarto da frente a à direita as da sala comum


1975 09 17 Greve dos Trabalhadores Agrícolas


(Foto tirada por alguém que ia a passar na rua)



 1976 04 11 - Festa da Liberdade (PCP) - VER  Évora nos anos da pré-Revolução - 1976



Palácio do Barrocal (fachada e pedra de armas)


Rua de Serpa Pinto ou de Alconchel com a Praça do Giraldo ao fundo, vendo-se uma das torres sineiras da Igreja de Santo Antão, a elegante fonte Henriquina e as arcadas, onde se situava o Café Arcada, local de encontro, estudo, estadia e convívio da malta do ISESE não alentejana. isto é, os estrangeiros.


Pensa-se que a fundação  deste chafariz é da época da reedificação do Aqueduto, em 1531, a fim de aproveitar as águas decorrentes da Praça do Giraldo. Além deste nome, também há referências que tomou o nome de "Chafariz dos Cavalos". No Tombo Municipal, de 1651 é designado de "Chafariz da Rua de Alcunchel" e, em 1849, "Chafariz da Rua D' Alcouchel".  

A casa







Vista aérea (Google Earth 2020) 
Nestas imagens distinguem-se os terraços do nº 21, 2º Direito, no 3º e 4º pisos, bem como o nº 21, 2º Esquerdo e a sua varanda, que davam para a Rua da Moeda. A entrada para o 1º (escritórios, com tectos de estuque trabalhados) e 2º (habitação) andares fazia-se pelo º 21  da Rua Serpa Pinto.

1976

Gozamos os últimos dias nesta casa [na Quinta de Santa Catarina], pois no fim do mês mudamos para outra, perto da Praça do Giraldo. É uma casa velha mas que foi arranjada. Tem quatro assoalhadas (a mais pequena é do tamanho da maior desta onde estamos), cozinha, casa de banho, dois terraços. As assoalhadas não são todas ao mesmo nível, pelo que há escadinhas dumas para outras. A renda são 4 000 $ 00 mensais. (...) (NSF - 1976.03.14)

Cá por Évora um calor infernal e falta de água: na maioria do tempo os canos deitam apenas ar. Enfim, vai ser um lindo Verão. Também esta casa é muito quente à tarde, contrariamente à outra. A tartaruga, como vai? Um aluno da Celeste, por sinal chamado Victor, deu lhe bichos da seda. Aquilo são piores que marabuntas ou piranhas: passam o tempo a devorar folhas de amoreira. Estão ali numa tampa duma caixa de sapatos. (MEB - 1976.06.01)

Os bichos da seda, na sua maioria, já fizeram os seus casulos amarelos. Vamos ver quando nascem as borboletas. Encanto-me a ver a sua evolução. (MEB - 1976.06.15)

1979

A Celeste está lá em baixo no terraço pintando umas coisas. Amanhã será a vez do frigorífico. (NSF - 1979.09.06)

1980

Amanhã vamos até Setúbal, para envernizar o  chão da casa, arrumar umas coisas, receber os ordenados e concluir os inquéritos do corrente mês. Devemos lá ficar até cerca de 6 de Setembro (A D. Maria e o Rui Pedro ficam em Évora). Depois regressaremos para acabar os preparativos para a mudança, em meados do próximo mês (salvo erro a 17 tenho serviço de exames). Vamos ver se nessa altura já funcionam os elevadores. (NSF - 1980.08.28)

1986

Chove agora a cântaros e tenho saudades do casarão de Évora  [na rua Serpa Pinto], quando ouvia a chuva bater no telhado, encanto que me está vedado neste prédio de betão armado, onde muitas vezes só dou por ela quando chego lá abaixo à rua [largo] e ela cai em rajadas ou deixou a marca no asfalto molhado. (MMA - 1986.12.14)

2021

Nunca entendi bem a planta do edifício. Aqui morámos no 2º andar dto do Nº 21, num apartamento com enormes assoalhadas e tectos abobadados.

Os do lado esquerdo, onde moravam a Isabel e o António Ricardo, professores como nós, eram trabalhados em estuque. Ambos se situavam ao cimo duma íngreme escadaria, de dois lances, no topo da qual uma cancela permitia que os miúdos (a Susana e o Daniel Filipe) brincassem no vasto átrio. Para aceder ao da direita subia-se um pequeno degrau e entrávamos num minúsculo átrio; defronte, a cozinha, à esquerda, um pátio com a despensa e, à direita, subindo uns degraus, ficava uma sala interior, com um pequeno nicho, onde preparávamos as lições e estava a biblioteca. Novos degraus permitiam o acesso a um vasto piso com enormes assoalhadas: a sala de estar, o nosso quarto e a casa de banho. Novas escadas para a traseira conduziam-nos ao quarto da Mariazinha e da Susana.

No nosso quarto uma porta permitia o acesso a um segundo pátio, por uma larga escadaria de dois lances, escadaria que servia também para arrumos. Neste segundo e soalheiro terraço se estendia a roupa para secar e dele se avistavam os telhados de Évora, as torres sineiras da Igreja de Santo Antão e a Rua da Moeda.

No princípio eram deveras incomodativas as badaladas da Igreja, assinalando as horas e os quartos, mas passado algum tempo já não dávamos por isso. Os< nossos amigos admiravam-se da Susana não dar quedas numa casa com tantas escadinhas, mas a verdade é que ela depressa se habituou, subindo e descendo desassombradamente, no princípio gatinhando. Foi nesta casa que aprendeu a andar sozinha.

Gostava imenso desta casa, situada a dois passos da Praça do Giraldo, mas hoje seria um entrave subir aquela íngreme escadaria ajoujado de compras e circular pelo seu interior subindo e descendo escadinhas incessantemente.

No rés do chão do edifício, com janelas de guilhotina por onde entrava um frio gélido e cortante, situava-se um estabelecimento comercial e no 1º andar dois escritórios, um dos quais do Banco Espírito Santo.

O prédio pertencia ao Santana, que tinha uma casa de móveis mais abaixo; no princípio não queria alugar-nos, mas fui falar com a nora, casada com um filho dele (ambos tinham sido meus colegas de curso no ISESE) e lá se resolveu a dar-nos o aluguer.


O terraço no 2º andar





Pisando azeitonas provenientes do monte dos meus sogros, em Santo Amador, na margem esquerda do rio Guadiana.


Este cacto acompanhou-nos de Évora para Setúbal; aqui cresceu imenso até que foi trasladado para a Escola do Faralhão onde a Celeste dava aulas, aí acabando por ser arrancado. Um rebento dele ainda existe numa das varandas da casa no cimo do prédio no alto duma encosta.






(fotógrafo não identificado)






(foto MENS) - A janela que se vê é da sala da casa da Isabel e do António Ricardo




  

(Rui Pedro)


Em baixo e à esquerda a janela do átrio comum ás duas moradias


A cozinha


Nesta foto avistam-se sucessivamente a janela da cozinha, a porta pata o terraço no 3º piso e a janela do átrio comum aos dois inquilinos do 2º andar



A sala de trabalho






(autor não identificado)


Matriz da litogravura a seguir referida 
A biblioteca era muito mais pequena e não enchia a casa toda, ao contrário do que sucede actualmente, no alto da torre no cimo duma encosta. Aqui os livros eram menos, e ainda se vê o nicho de que falei em post anterior. Muitos dos objectos ainda existem: o pote alentejano, (oferta dum casal amigo, os Armindo Gonçalves), a xilogravura do meu irmão e a bandeja artesanato madeirense que me ofereceu, o candeeiro (agora no Mindelo), o gira-discos (emprestado ao Rui Pedro), o garrafão de cerâmica (agora com a Susana), e o armário, desenhado por mim.
A escultura em madeira no nicho (outra das ofertas do meu irmão) entretanto e há uns anos foi por mim oferecida a uma pessoa amiga, aqui no prédio onde actualmente moro. O gravador portátil, esse há muito que foi para o lixo.
Embora as estantes fossem de metal, a junção das varas verticais eram frágeis, em plástico, e com tantas mudanças, um dia, já aqui nesta casa em Setúbal, ao remontá-las com a ajuda do meu amigo Gilberto Santos, desabaram. De repente disse: "Gilberto, isto vai cair" e só houve tempo de nos afastarmos e para não termos ficado debaixo dum monte de livros e ferros retorcidos.


A sala comum



A peça em barro vidrado, entretanto desaparecida, era de autoria e oferta do meu irmão


Com Joana, Miguel Bacelar e filhos


Com São, Santana Marques e filho






1977.08.07 - 1º aniversário da Susana







Com tantas escadinhas, os nossos amigos admiravam-se de a Susana não cair nelas, magoando-se. Mas a verdade é que ela as subia e descia lepidamente, primeiro gatinhado e depois pelo seu próprio pé. Diz a Susana que gostava muito da cadeira que se vê na foto.



Á direita na foto uma litogravura de Ribeiro de Pavia, adquirida numa campanha de angariação de fundos das CDE /Comissões Democráticas Eleitorais), em 1969, durante a campanha para a então chamada Assembleia Nacional. A referida litogravura faz parte da série "Servos da Gleba", ilustrações de Pavia para o romance "Fanga", de Alves Redol,  escrito em 1943, que retrata a precária existência da população das lezírias, em luta contra a fome e a opressão.


Com Joana, Miguel Bacelar e filhos


O quarto de casal



(foto António Ricardo)




(foto António Ricardo)


(foto António Ricardo)


(foto António Ricardo)




Quarto das traseiras




O tecto deste quarto enorme, ao cimo de dois ou três degraus, era inclinado, pelo que a parede do fundo tinha menor altura, como se vê pela janela, e dava para o pátio do 2º andar e nele dormiam a minha sogra e a Susana
 

O terraço no 3º andar e a paisagem







Uma das torres sineiras da Igreja de Santo Antão






Estendendo a roupa


(A Rua da Moeda, vista da varanda do 21, 2º Esquerdo)


Os moradores no 2º Direito e no 2º Esquerdo 

1976

A Celeste lá vai andando, bem como o mini, que deve nascer lá com a força do calor.  (MEB - 1976.06.01) 

A Susana lá vai crescendo e engordando. ( ). A semana passada já pesava 3,200 kg. Não chora muito, mas fá-lo normalmente a horas inconvenientes, isto é, ente as 24 e as 2 da madrugada. Já tem uma configuração diferente mas não sei com quem é parecida. Ah! Ah! Ah! Dizem que é comigo! Coitadinha da criancinha, bem poderia ter saído mais bonitinha!  

Nós cá vamos com uma nova actividade: o "tratar da Susana" (o nome sugerido pelo tio Zé [Luís] (...) Quando lhe damos as gotas [de Vi Dê] faz umas caretas enormes que nos faz rir (E a tomar banho também. Delicia se, salvo quando lhe molham a cabeça). (NSF - 1976.08.30)

A Susana cá vai crescendo. Já tem cara de gente e vai engordando. Agora está bebendo o leite de biberon. Já nos segue com os olhos, desde que estejamos ao pé dela, e de vez em quando vai sorrindo, cada vez com mais frequência. Tem recebido bastantes prendas, mas sucede-lhe um pouco como aos noivos: qualquer dia não sabe o que há de fazer aos "babetes" e aos "baby grows" (macacos). (NSF - 1976.05.09)

A Susana tem grandes palrações e de vez em quando berra para lhe irem fazer companhia. Pesa 6,050 kg. (MEB - 1976.11.29)

A D. Maria [avó] e a Susana dormem. A Susana fala muito, embora por enquanto só ela entenda o seu palrar. Nasceu lhe um dente e outro está a romper. Agarra as coisas e diverte-se a tocar o guizo ou a fazer chiar o cão de borracha. Fora isso bebe o leite todo mas faz grandes fitas para comer a papa. (NSF - 1976.12.13)

1977

A Susana está com muitas gracinhas. (NSF - 1977.05.22)

      

O meu pai não escreve; anda lá ocupado com a vida dele e depois eu é que pago. Cá tenho andado, agora comecei a gatinhar e não gosto de ficar sozinha. Como vês, já sou gente e não estou para passar o tempo quietinha, deitada na cama. 

Estou muito linda na fotografia, não estou? O fatinho fica-me bem (Olha, bem tenho dito para te agradecerem, que bem sei que não ficas contente, mas que se há-de fazer, os meus pais não têm emenda!). Beijinhos da Susana

PS – Quando vêm visitar-me?  (MLCF 1977.05.29)

1978

A Susana está para ali amuada pois quer ir para casa da Isabel, nossa vizinha. (MCG - 1978.06.27)

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Com Isabel, António Ricardo e filhos (Avenida António Maria Portela, em Setúbal)


Com Daniel Filipe na Praça do Bocage, em Setúbal


As fotos em 2017 / 2018

Em 2017 e 2018  o Rui e a Susana voltaram a Évora e registaram fotograficamente a Rua de Serpa Pinto e a fachada da casa, onde morámos e ambos nasceram.




(fotos Susana)



Palácio do Barrocal e Fonte dos Cavalos ou de Alconchel


Rua de Serpa Pinto, 21

(fotos Rui Pedro)



A Rua e a casa no Google Earh






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