Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Em Lisboa, na Praça de Londres, e a malta

* Victor Nogueira

Nos meus tempos de  estudante em Económicas e depois, quando vinha de évoraburgomedieval a Lisboa e almoçava com a minha ex-colega Emília, economista, que trabalhava no sucessivamente Ministério das Corporações e Previdência Social e Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, a Praça de Londres e adjacências eram um ponto de encontro. Mas no meu 1º ano em Portugal, ainda professando a religião católica, era à Igreja de S. João de Deus, no ano em que estive hospedado na Rua de S. João Nepomuceno, que vinha assistir à missa, pois me entediavam as homilias e prédicas do pároco da Igreja de Santa Isabel, assim como as suas ingénuas respostas e argumentações às minhas dúvidas e questões.


1968

Estou cansado, cheio de calor. Convidei a Milinha [Emília] para irmos à praia, mas não aceitou porque tem duas cadeiras  para Outubro. Raio de miúda, ainda tem um feitio mais complicado e complicativo que o meu. Imaginais um Victor mais fechado na sua concha, mais tímido, mais brusco, mais fechado em si mesmo, mais impenetrável. Aí tendes um retrato a traços largos da Milinhas. E no entanto, eu creio que aquilo é fachada, é máscara. Se eu casasse com uma miúda com aquele feitio, que também é o meu, assim o creio, faríamos uma felicidade a dois, mas provavelmente teria de desistir dos meus projectos de revolucionário prático, de ser alguém importante, notável. Para isso teria de casar com uma moça como, por exemplo, a Teresa P. (NSF - 1968.08.21) 

1969

(...)

Dizem que estou apaixonado

Mas isso não e verdade.

Ou é !?

Estar apaixonado é isto!?

Esta eterna espera pelo incerto?!

Espero -te !

És a voz quente e cordial da Emília

que de repente arrefece e desaparece.

És a Maureen, borboleta esvoaçante e carinhosa.

És a miudinha sorridente da papelaria do Chiado,

essa mesma, que tinha uma covinha no queixo.

Sois todas vós, oh mãos estendidas,

oh lábios sorridentes, oh verdes olhos pretos

ou pretos olhos verdes!

Todas vós.

Ninguém! (...)

(Évora, 1969.03.16)

1973

Almocei com a Emília. O almoço no "Isaura", ali na Avenida de Paris, estava bom e falámos dos nossos velhos companheiros de lides associativas - quantos já se integraram no sistema? Outros continuam a lutar, alguns mesmo à custa da própria liberdade. (MCG - 1973.10.02)

1974

Nunca o meu desencanto por Lisboa foi tão grande. Outrora no outro tempo ... Havia os grandes passeios, os encontros, as idas ao cinema. Era o tempo  da disponibilidade do Luís,  da Emília, do [António] Lampreia, do [Jorge] Zamith, do Martins Pereira, da Luísa Seia, estes [três] de Angola e meus velhos companheiros de Liceu (O Zamith já vinha da escola primária). Mas o tempo casou uns e levou outros e mesmo que ainda os veja, como estão distantes de mim! Passaram todos, e eu fiquei. (MCG - 1974.04.04) 


Já é sábado, ao entardecer. Estou aqui na esplanada da pastelaria "Mexicana" [desenhada pelo arq. Jorge Ferreira Chaves], aqui na  Praça de Londres. As pessoas falam animadamente; todo o comércio, no entanto, está todo fechado: está em vigor a semana de 5 dias de trabalho. Assisti, ao meio da tarde, ao encerramento dos cafés e pastelarias, cujos clientes as abandonaram calmamente - muitos com pacotinhos de bolos - não fossem os manifestantes (que não cheguei a ver) partirem os vidros. Esperemos que a "palavra de ordem" não se tenha esquecido que há muita malta que precisa dos restaurantes para almoçar e jantar; no 1º de Maio, um tipo ainda aguenta, mas agora... Ah! neste preciso momento abrem-se as portas da pastelaria. Talvez o encerramento tenha sido apenas para o tempo da manifestação dos caixeiros, iniciada no Rossio. (Foi mesmo!). (MCG - 1974.05.11)


Sentado aqui no "Copacabana" vejo as pessoas que passam aqui na rua ou que "estacionam" na esplanada. Um velho mal barbeado pede qualquer coisa às pessoas com chávena, pires e copos mais ou menos vazios diante de si, mas ninguém lhe liga. Relanceio o meu olhar ao meu redor e são velhos e velhas que enchem as cadeiras da esplanada. Além, na "Mexicana", a juventude é a nota característica. Que fazem estas pessoas ? De que vivem? Tão ociosas que estão!

Faço horas aqui na Avenida Guerra Junqueiro, junto à Praça de Londres. (...) Levanto o olhar e dou pela papelaria em frente; na montra títulos de livros ou assuntos na "berra": "Sobre o Capitalismo Português", "4 ismos" (uma porcaria!), "O Drama do Chile", "Tarrafal, Aldeia da Morte", "Watergate, o Processo do Século"´ (e eu a pensar nos julgamentos de Nuremberga ou de Estocolmo, respectivamente, sobre os crimes contra a humanidade, dos Nazis e dos Americanos no Vietname!), "O Capital "(Karl Marx), "O Estado e a Revolução" (Lenine), "Como Iludir o Povo" (idem)...(MCG - 1974.09.12)    


Hoje não me apetece ir a Lisboa! Lisboa é o andar dum lado para o outro, a azáfama sem sentido. Outrora era a Associação de Estudantes [de Económicas] e o cinema. Depois, já em Évora, era a Emília e os nossos almoços e as conversas sobre o momento político e o movimento estudantil. A ela se juntou o Luís, que andou comigo no 1º ano de Sociologia Mas... a Emília passou e a sua presença amiga e gentil é a lembrança da mulher e do afecto que não consigo ter. O Luís é a divergência dos caminhos - a minha radicalização (ao menos teórica e intelectual) - e a sua aceitação desta sociedade, revelado no curso [que acabou por tirar], no emprego que arranjou, na vida que levará, que a colecção completa dos Livros RTP/Verbo e de Bolso Europa América e do Círculo de Leitores prenunciam, conjuntamente com um passatempo caro - a fotografia. Os outros amigos? O tempo nos separou. Lisboa seria então, na semana passada, a procura de emprego. (1974. Outono)



Ali as Galerias ITAU, aqui na Alameda D. Afonso Henriques, estão fechadas - e deve ser há muito - pelo que resolvi sentar me na Esplanada do Pão de Açúcar a lanchar e, enquanto faço horas para ir até à Gulbenkian, vou escrevendo. O barulho é muito: dos carros que passam, o roncar dos motores e as buzinadelas, o chiar dos pneus no asfalto e o roçar das cadeiras e mesas de ferro no empedrado da calçada, isto sem falar no homem que varre o passeio e no vozear das pessoas que conversam. Enfim, uma "sinfonia" pouco agradável, mas lá dentro o ar está quente e de cortar à faca. (MCG - 1974.10.17)

1998

Esta zona das Avenidas de Paris, de Londres, do Brasil e dos Estados Unidos, incluindo as Praças de  Londres e do Areeiro, ligadas pela Avenida da Igreja, correspondem ao desenvolvimento dos anos 50/60, aqui se pretendendo então que coexistissem em áreas recatadas e protegidas do bulício diversas classes sociais, espalhadas por vivendas ajardinadas e prédios de andares. Tudo isso ficou para trás e as avenidas de Roma, dos EUA e do Brasil são continuamente ocupadas por automóveis em movimento e atravessadas por viadutos ou por túneis, que facilitam o escoamento do tráfego. Os passeios da avenida de Roma foram parcialmente ocupados pelos automóveis e as ruas já não se atravessam com o descuido de outrora. 

(...) Nunca achei muita piada à nudez da Alameda D. Afonso Henriques, onde se comemoraram alguns 1º de Maio pela CGTP, nem à Fonte Luminosa, que raramente vi trabalhar, nem à minúscula Praça do Chile, com a sua minúscula estátua. Como em muitas outras zonas de Lisboa, por aqui já não se ouve o barulho dos amarelos da Carris, como eram conhecidos os carros eléctricos. Mais simpática era a Avenida Guerra Junqueiro, que ligava a Alameda à Praça de Londres, onde se encontravam alguns cafés, alguns dos quais subsistem, como a Mexicana ou o Roma, este mais acima, já na avenida com o mesmo nome, para já não falar naquele que se situa na cave do antigo cinema Império. Em restaurantes em torno da Praça de Londres almocei ou jantei frequentemente com a Emília ou com a Beatriz. (Notas de Viagem, 1998.Maio)



No verso duma cópia desta foto, em vésperas de regressar a Luanda, a minha mãe escreveu: "Lisboa 11/4/74 Praça de Londres Aquele cansativo e acidentado sábado, entre lágrimas e sorrisos, com um beijo muito amigo e saudoso da mãe M. Emília"

´


Torre desenhada por Cassiano Branco, arquitecto


Houve tempo em que na Praça de Londres em Lisboa foram depositados os gigantescos conjuntos escultóricos provenientes da demolição do Cine-Teatro Monumental. Num deles algum noctívago colocara uma garrafa de cerveja.. As esculturas eram da autoria do escultor Euclides Vaz.





Igreja de S. João de Deus,  em obras, projectada pelo arquitecto António Lino (1909-1961). foi inaugurada em 8 de Março de 1953.
 
VER "Igreja de S. João de Deus" no blog Restos de Colecção  in https://restosdecoleccao.blogspot.com/2015/02/igreja-de-sao-joao-de-deus.html

***

 
A malta de Luanda 
 
1971
Para além disso tenho-me encontrado com a malta conhecida [em Luanda]. Alguns dos meus tempos de menino e moço. O Pedro, o homem das mil e uma ocupações: locutor e produtor radiofónico, futuro controlador de tráfego aéreo do Aeroporto de Luanda, estudante no Instituto Industrial de Luanda. No fundo um miúdo falador e sonhador de 22 anos. Sonhador como a irmã, a Leonor, um ano mais nova. Uma paz de alma cuja indecisão me irrita. Estudante no Instituto Industrial, há três anos queria ir para Engenharia, o ano passado para Medicina, este ano para Arquitectura., se passar agora nos dois exames de 2ª época [Passou!] No fundo ambos querem dar o salto, i.e., saírem de casa, mas não têm coragem, parece-me. Temos depois o João [Coimbra] (tão diferente do miúdo que foi meu vizinho!) e a Estrela [irmã dele]. 

(...)  De todos eles é com a Estrelinha que estou melhor, talvez por termos mais experiências recentes em comum, já que convivemos aí na Metrópole quando estive em Lisboa.  
 
 As idas á praia, as corridas de automóveis em miniatura, os jogos de cartas, "os polícias e ladrões", as zangas, as colecções de autógrafos, tudo isso já está tão para trás, que quase não consegue dar calor e vivacidade às nossas relações de agora.  
 
São estes os da geração antiga, quase desconhecidos; por retraimento, uns (Leonor), ou por falta de convivência (João). Quanto ao Pedro, os nossos interesses são manifestamente diferentes.  
 
Temos depois os novos: o Nuno, licenciado em Económicas, que me aturou algumas neuras nos meus tempos de Lisboa, e a Ana Maria que, minha companheira na cantina de Económicas, á mesa, casou com ele o ano passado. E a Maria Antónia, agora ausente na Metrópole. (...) Gosto de conversar com ela, talvez pela ingenuidade e naturalidade dos seus 18 anos e da cordialidade das nossas relações, embora me aborreça um certo ar de "mais velho" que assumo. Penso que talvez funcione para ela com um - eu diria - irmão mais velho com quem fala á vontade de assuntos ... que normalmente me habituei a não abordar! 
 
Todos estes e tantos outros fazem-me sentir o desconforto do meu exílio em Portugal, mais precisamente em Évora. Estou cansado dele! (NSM - 1971.12.01/03) 

1972 
Hoje estou com uma grande melancolia. Veio-me á memória o passado, esse passado que é apenas memória. Lembrei-me da Fátima Marques, que encontrei ontem no Rossio, em Lisboa, ao fim de quatro anos. Das notícias que me deu da Cristina e do pimpolho que lhe nasceu há dias. Fiquei contente por nos vermos ao fim de tantos anos e falarmos como se nos tivéssemos deixado na véspera. A Fátima e as suas novas trazem-me á consciência a malta do Liceu em Luanda. Que é feito deles? Tantos deles? Alguns que ainda vejo de vez em quando [alguns ao virar duma esquina em Lisboa] - os amigos desde os dez anos; do Liceu (o Jorge Zamith e o João Seabra) ou da vizinhança (o Pedro, a Leonor, o João e a Estrela). Que é feito dos outros: o Rui Branco, o Victor Morgado, o Pepe, o micro Torres, a Isabel Franco, a Teresa Soares, a Teresa Melo, o Barradas Teixeira, o Costinha, o Bustorff ... Tantos eles são! O tempo das "guerras" nos morros junto ao Liceu ou dos polícias e ladrões! Onde está o tempo mais recente das reuniões debaixo da [enorme] árvore, no Liceu de Luanda, junto ao campo de hóquei?  (MCG - 1972.09.06)  


Cinema Londres, na Avenida de Roma


1º de Maio na Alameda D. Afonso Henriques

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