Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

sábado, 21 de setembro de 2024

José Pacheco Pereira - O que as fotografias não querem dizer, mas dizem

Nas fotografias mais institucionais, cerimónias no Estado Novo, o que mais impressiona é a pompa oficial, a falta de naturalidade seja de que tipo for, as poses e a coreografia estereotipada.

» José Pacheco Pereira

21 de Setembro de 2024 


Eu já vi milhares, muitos milhares de fotografias. Fotografias comuns e pouco comuns entram no Arquivo Ephemera todas as semanas, quer por oferta, quer por aquisição em feiras e velharias, em caixas, sacos ou álbuns familiares ou institucionais. Estamos a falar de fotografias pré-digitais, em negativos e papel, cobrindo o final do século XIX, e todo o século XX. As fotografias mais antigas são na sua maioria tiradas em estúdios fotográficos ou por fotógrafos amadores com equipamento. Depois dos anos 30 do século XIX a maioria das fotografias de que falo são tiradas em máquinas individuais, de qualidade desigual, propriedade de familiares das pessoas fotografadas ou de habitantes, ou viajantes, dos locais que fotografam. São de um modo geral de formatos pequenos, mesmo muito pequenos nas máquinas mais pobres. A dimensão das fotografias, antes do seu conteúdo, também tem uma hierarquia social.


Há nas fotografias comuns, familiares e pessoais, padrões que são reveladores de mentalidade, de práticas sociais, da forma como as pessoas se querem mostrar ou se ver, ou registar eventos pessoais e familiares ou nalguns casos institucionais, de empresas ou eventos públicos. Como estamos a falar de milhares de fotografias, esses padrões envolvem a percepção do que se fotografa. Por exemplo, crianças são uma “praga”, chamemos-lhe assim, bebés nus ou vestidos de marinheiro, em cima de peanhas ou ridiculamente em poses encenadas, as meninas com vestidos de tule, uma panóplia de criancinhas muitas vezes forçados a ficarem quietas por uns minutos para serem fotografadas. Significativo de como olhar mudou, algumas das fotografias de crianças nuas hoje seriam vistas como pedofilia, como sexo em destaque, aliás como também o mesmo aconteceria com a publicidade da Nestlé com bebés.


Como estamos num país católico, há fotografias dos sacramentos, em particular três, baptismo, comunhão e casamento. Os outros sacramentos quase não são fotografados. No caso da comunhão, as fotografias de adolescentes do sexo feminino são muitas vezes difíceis de distinguir das do casamento. E casamentos são milhares, podemos perceber que, naquilo que as pessoas não querem, as fotos de casamento são das primeiras a serem deitadas fora. Toda a coreografia dos casamentos está a ser estudada no Arquivo Ephemera e dará uma exposição que será surpreendente. Como sempre entendemos, o valor da quantidade, que tem pior fama do que a qualidade, permite perceber coisas novas.

Toda a coreografia dos casamentos está a ser estudada no Arquivo Ephemera e dará uma exposição que será surpreendente


ara além das crianças, há bastante menos fotos de adolescentes, ou de jovens adultos, começando em seguida uma série de fotos estereotipadas: praia, junto de um carro novo, em almoços em restaurantes onde há um fotógrafo, reuniões de empresas, viagens. Depois há fotos de adultos mais velhos, muitas vezes de casais, arranjadas em combinações com sentido patriarcal, para presidirem à memória familiar.


Muitos outros aspectos estão presentes nestas fotografias absolutamente comuns, vestuário, posturas, encenações. É possível ver a pobreza, mas só espreitando ocasionalmente. A pobreza não é matéria destes tipos de fotografias.

 

Quanto às fotografias mais institucionais, cerimónias no Estado Novo, desfiles, missas, visitas de ministros, o que mais impressiona em grande número é a pompa oficial, a falta de naturalidade seja de que tipo for, as poses e a coreografia estereotipada. Claro que quando se olha para o detalhe vê-se muita coisa que nestas fotografias que não é para ver, as cortinas puídas, os vasos partidos, os móveis estragados, os tapetes gastos. E, no conjunto das grandes encenações, a miséria política da ditadura, mas também o papel dos militares e da igreja.



O exemplo que ilustra este artigo tem a seguinte legenda: 'Festa da Legião Portuguesa. Prior de Sesimbra falando aos legionários' e é datada de 28 de Maio de 1939


O exemplo que ilustra este artigo tem a seguinte legenda: “Festa da Legião Portuguesa. Prior de Sesimbra falando aos legionários” e é datada de 28 de Maio de 1939. O Prior está a berrar no comício, inflamado pela festa legionária que ocorre em Setúbal, em vésperas da II Guerra Mundial. À sua volta está no palanque a burguesia local vestida a rigor e alguns militares, ao seu lado, um legionário pouco marcial, em baixo um rapaz pobre e um negro. O resto das fotografias deste comício incluem condecorações e marcha dos legionários com as espingardas anacrónicas. Tudo medíocre, provinciano, uma imitação paupérrima dos regimes nazi e fascista. Mas, não nos enganemos, o Prior está lá como padres, bispos e cardeal por todo o lado, mostrando o papel da igreja, mas, no seu conjunto, esta gente engalanada e triste era perigosa.


O poder da fotografia é mostrá-lo demasiado bem.

O autor é colunista do PÚBLICO   

Sem comentários: