* Victor Nogueira
Rumo a Paço de Arcos, em Lisboa resolvi percorrer ao volante do Fiesta II antigos e frequentes percursos da minha juventude, então a pé ou de eléctrico, entre Lisboa, Évora e o Porto, desde o Cais do Sodré, subindo a Rua do Alecrim, virando na Praça Luís de Camões, onde estava a Farmácia Sanitas de que a minha tia avó Esperança, farmacêutica, foi a directora técnica durante décadas, passar pela Rua do Loreto e pela Calçada do Combro, subir e descer a estreitérrima Rua dos Poiais de S. Bento, subir a Calcada da Estrela e, na Praça da Estrela, descer a Avenida Infante Santo, até desembocar na Avenida Brasília, rumo ao poente.
Viajando sozinho, as fotos foram escassas, apenas aquelas que a paragem ao vermelho dos semáforos permitiu. No final textos meus que se referem a esta parte de Lisboa, in illo tempore.
As fotos ...
fotos nos anos '70 e em 2012.07. 27
1968
A janela do meu quarto na Rua de S. João Nepomuceno] tem uma
espécie de varandim, para pôr vasos. Um deles tem uma sardinheira, com uma
linda flor encarnada; numa janela defronte, duas gaiolas com pássaros cujo
melodioso chilrear chega aos meus ouvidos (NSF - 1968.06.01) ([1])
Há umas semanas fui ao Teatro da Trindade ver a ópera "Os
Palhaços" e à saída encontrei o Artur Horta. Como de costume, quando nos
encontramos à noite, encetámos um dos nossos célebres diálogos, nos quais
abordamos os mais variados assuntos, desde os mais transcendentes aos mais
corriqueiros, que se prolongam pela noite fora, até de madrugada. A nossa
deambulação levou‑nos, dessa vez, até à veneranda Rua do Quelhas, onde
discutíamos a metempsicose e o panteísmo. Eram quatro da matina; andávamos uns
passos, parávamos, retomávamos a marcha e assim sucessivamente. Éramos os
senhores da rua, onde não passava viva alma! Às tantas reparámos num guarda nocturno que, atravessando a rua e
dirigindo‑se‑nos, perguntou onde morávamos: "Eu em Campo de Ourique, o meu
colega aqui na Lapa". Fez um comentário acerca do adiantado da hora, que
havia muitos malandros, etc., etc. "Malandros?! Que quer dizer com isso
?" "Ah! os senhores sabem, há muitos ladrões de automóveis!" E,
mirando‑nos de alto a baixo: "Bem, vê‑se que os senhores são bons rapazes,
estão bem vestidos! Desculpem. Boa noite." E foi‑se. E durante algum tempo
o pobre do guarda nocturno foi tema da nossa conversa, ele e a sua teoria de
que o hábito faz o monge.
E lembrar‑me eu que há dias fui ao "Coliseu" ver o
"London Royal Balet" de quedes (sapatos de lona) em mangas de camisa e
com barba de dois dias, por ter sido convidado à última da hora. (NSF -
1968.06.24)
No Jardim da Estrela corre
uma aragem fresca, por vezes desagradável. Está um sol de chuva. Estou
sentado numa das mesas da esplanada do jardim, defronte ao lago de águas
esverdinhadas onde se reflectem as verdes ramagens das árvores. Dois cisnes
pretos, de bico vermelho, vogam nas águas, dos por uma ninhada de cisnezitos de
penas cinzentas e eriçadas.
Alguém atirou para a água restos de comida. Peixes vermelhos e pretos,
estes mais pequenos, acorrem de todos os lados e disputam-nos.
Ouve-se o trânsito na Praça da Estrela, as crianças além no parque
infantil e, para lá das árvores, o vozear das pessoas aqui na esplanada,
pedaços soltos de conversas, o cair da água no lago.
Nas áleas passam as pessoas, em grupos ou não. Defronte de mim, na
outra margem, vários bancos, alguns ocupados. Naquele, à esquerda, um casal
idoso. Ele, contempla quem passa e pensa talvez na vida que já lá vai. Ela, de
vestido azul e botas brancas, com casaco de malha preto, faz tricot. Outro
velhote que ocupava o extremo do banco levantou‑se e foi‑se. Estavam, mas já
não estão, no banco seguinte, dois homens, um dormindo, outro espreguiçando‑se.
Uma pomba pousou agora no gradeamento, ao meu alcance, mas já levantou voo.
(NSF - 1968.09.01)
Custou, mas na camioneta, rumo a
Lisboa, senti‑me renascer, como se tivesse saído dum opressivo ambiente
tumular. Esta Lisboa do miúdo que choraminga. E do velhote, límpidos olhos
azuis, humildemente vestido mas não enxovalhado, que é brutalmente arrastado
para o passeio por um pai rude, exaltado, mal barbeado, que lhe torceria o
nariz, o esmigalharia, lhe daria duas bofetadas,... se ele não estivesse
bêbedo. Enquanto aquele retorquia: "Estavam a maltratar os
pombinhos", sem muita firmeza, de olhos perdidos sabe Deus onde. Ou do
miúdo que me aponta uma pistola: "Mãos ao ar", num Chiado repleto de
gente azafamada. Que é admoestado por uma mãe derretida. Que se perdeu no rio
das gentes que sobem ou descem. Das duas "meninas bem" que, especadas
no passeio qual escolhos, lançam olhares furibundos ao pirralho esfarrapado e
sujo que lhes aponta uma espingarda de lata. Do café Nicola, donde sou
desalojado sem cerimónia, pois um "garoto" e um "croissant"
não permitem a ocupação indefinida de uma mesa para escrever, especialmente à
hora de almoço. Dos vendedores ambulantes, que jogam ao corre‑corre com os
polícias, de tabuleiros cheios de quinquilharia, jogando ao passo‑passa com os
automóveis.(NSM - 1968.12.27)
1971
(…)
obrigado pelas miúdas que encontrei hoje
pela graça marota da Isabel.,
seu sorriso-riso sonoro
que alegra a gente
pelo ar sereno da Noémia
pelo sorriso da garota do
Chiado, aquela que tinha uma
covinha no queixo,
(…) Excerto do meu poema “Obrigado”, escrito em Évora em 1971.04,14
1972
Terminei a minha digressão turística com uma visita às Igrejas de Santa Maria e de S. Julião.
Depois dum lanche frugal, apanhei a camioneta para Cacilhas, depois o
ferry-boat para o Cais do Sodré e o comboio para Paço de Arcos. Só me faltou
andar de avião. Em Setúbal reconheci o Zeca
Afonso. Refreei o impulso de perguntar‑lhe "Você é que é o Zeca Terminei
a minha digressão turística com uma visita às Igrejas de Santa Maria e de S. Julião. (MCG - 1972.12.29)
1973
Olho para o Tejo à minha
frente, cintilante como prata.
Um ferry-boat acostado espera por ninguém, enquanto barcos sulcam o rio e
gaivotas esvoaçam sobre ele. O autocarro vai‑se enchendo, ouço os passos das
pessoas que sobem para o 2º piso, o lugar ao lado do meu é ocupado por uma
senhora idosa, de preto. O cobrador diz que já não há mais lugares e dentro em
pouco o Tejo ficará para trás.(MCG - 1973.01.02)
Às 14:30 apanharei [em Évora] boleia do Pintassilgo (e da miúda) rumo a
Setúbal, onde apanharei a camioneta para Cacilhas, aqui o ferry-boat para o
Cais do Sodré e lá o comboio para Paço de Arcos. Em lá chegando à estação,
olhos para as malfadadas escadas [escadaria], atravesso a linha, subo‑as e ala
pela Rua Conde de Alcáçovas abaixo, por entre as árvores que a ladeiam até ao
fundo, onde viro à esquerda dando de caras com o nº 1 da Rua de Macau. (1973.08.03)
Defronte a mim o Tejo refulge
como um espelho. ([2]) Passa
uma fragata e há barcos ancorados. O ferry-boat prepara-se para acostar. Passam
pessoas ali em baixo na rua e as gaivotas evolucionam sobre o rio. Estou no 2º
piso dum autocarro, aguardando que ele parta. Começou a andar. Até já. Almocei
com a Emília [Dias]. O almoço no "Isaura", ali na Av. Paris, estava
bom e falámos dos nossos velhos companheiros de lides associativas. quantos já
se integraram no sistema? Outros continuam a lutar, alguns mesmo à custa da
própria liberdade. (MCG - 1973.10.02)
Escrevo no antigo laboratório da Farmácia [Sanitas, no Largo Luís de Camões],
no tempo em que as mezinhas eram manipuladas aqui nas traseiras. São cerca de
17:00 e os empregados tomam chazinho com bolos. (...) Ah! o chazinho é porque a
minha tia Esperança faz... 71 anos. (MCG - 1973.10.31)
P'ráqui estou num café no Cais do Sodré. Os autocarros e os eléctricos passam lá fora na rua. O ambiente está ruidoso e o tempo ameaça chuva. A sandes e o galão estavam uma merda. (São 18:30 de sábado) (...) Parece que vai chover. Esperemos que consiga chegar a casa antes do aguaceiro, pois não trouxe guarda chuva. (...) E por aqui me fico hoje. Tenho de ir apanhar o comboio [para Paço de Arcos]. Não avisei que ia jantar e vai haver sermão, pois não contam comigo. (MCG - 1974.10.19)
Uma chuva miudinha caia à saída e no percurso que fiz a pé [da Praça da Figueira] até ao Cais do Sodré
fui vendo "os homens da noite" ou seja, os coladores de cartazes.
Bem... o primeiro "homem da noite" era uma velhota que colava
cartazes manuscritos nas traseiras da Igreja de S. Domingos. Na Praça da
Figueira, um grupo colava cartazes do PS enquanto que na Rua do Carmo os MRPP
anunciavam o comício - que pretendem homenagem nacional - em memória de Ribeiro
dos Santos, estudante [de Economia] assassinado pela PIDE há dois ou três anos.(...)
MCG - (1974.10.21/22)
São quase 19 horas e hoje o meu poiso para escrever é a Praça Luís de Camões, o qual, imponente
no alto de pedestal, rodeado de pombas, "olha" para o movimento dos
carros e pessoas. A base da estátua está enfeitada com faixas bicolores da
bandeira portuguesa. (MCG - 1974.10.23)
A toda a largura da 1ª página a "Capital" anuncia que as "Eleições não serão alteradas".
(...) Estou aqui num cafezito no [Largo de] Camões e pergunto‑me porque está
ali a estátua do autor d´"Os Lusíadas" envolta com as cores da
bandeira portuguesa. ([3])
Pergunta para a qual não encontro resposta. Vim há pouco da Livraria Bertrand
onde comprei alguns livros para o 7º ano. (MCG - 1974.11.21)
Já era tarde para jantar em Paço d'Arcos e dei uma volta, acabando por vir parar a um restaurantezeco aqui no Cais do Sodré, mesmo na rua dos bares e das prostitutas. Na cadeira ao meu lado ronrona um enorme gato. (MCG - 1975.03.25)
Amanhã regresso a Évora com o João Lucas.
Vim ontem com o Viegas e a Violete; chegámos já tarde a Lisboa, onde jantei na
tasca habitual lá para o Cais do Sodré, onde passeia o "bas‑fond" cá
da cidade: prostitutas, chulos, clientes e chuis. (1975.06.29)
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