sábado, 17 de outubro de 2020

Entre o Cais do Sodré e a Estrela

 * Victor Nogueira

Rumo a Paço de Arcos, em Lisboa  resolvi percorrer ao volante do Fiesta II antigos e frequentes percursos da minha juventude, então a pé ou de eléctrico, entre Lisboa, Évora e o Porto,  desde o Cais do Sodré, subindo a Rua do Alecrim, virando na Praça Luís de Camões, onde estava a Farmácia Sanitas de que a minha tia avó Esperança, farmacêutica, foi a directora técnica durante décadas, passar pela Rua do Loreto e pela Calçada do Combro, subir e descer a estreitérrima Rua dos Poiais de S. Bento, subir a Calcada da Estrela e, na Praça da Estrela, descer a Avenida Infante Santo, até desembocar na Avenida Brasília, rumo ao poente.

Viajando sozinho, as fotos foram escassas, apenas aquelas que a paragem ao vermelho dos semáforos permitiu. No final textos meus que se referem a esta parte de Lisboa, in illo tempore.  

As fotos ...



Rua do Alecrim e Praça Luís de Camões



Rua dos Poiais de S. Bento



Calçada da Estrela

Muito calcorreei a pé subindo e descendo, esta íngreme calçada, nos meus tempos de "Económicas", morando sucessivamente na Rua de Santo António à  Estrela ena de S. João Nepomuceno.  Nesses tempos morei também nas Picoas, (na Avenida Duque de Loulé e na Rua Andrade Corvo)

O "amarelo da  carris" é o 28, ligando o Martim Moniz a Campo de Ourique, À direita o Palácio de S. Bento, onde funcionaram as Cortes na Monarquia,  o Parlamento na I República, a Assembleia Nacional no Estado Corporativo e, presentemente, a Assembleia da República. À esquerda, o Jardim das Francesinhas. 
 
Mais para cima e à esquerda a Rua Miguel Lupi, que permitia o acesso pelas traseiras ao velho Convento do Quelhas, onde então estava instalado o ISCEF, vulgarmente conhecido por "Económicas".

Ao cimo de tudo fica Campo de Ourique, após a travessia do Largo da Estrela.


Sobre a nudez forte da Verdade  o manto diáfano de Fantasia – Estátua da Verdade nos braços de Eça de Queiroz, da autoria do escultor Teixeira Lopes (1903)  - Foto Victor Nogueira (1973)

... e os textos

fotos nos anos '70 e em 2012.07. 27 


1968

A janela do meu quarto na Rua de S. João Nepomuceno] tem uma espécie de varandim, para pôr vasos. Um deles tem uma sardinheira, com uma linda flor encarnada; numa janela defronte, duas gaiolas com pássaros cujo melodioso chilrear chega aos meus ouvidos (NSF - 1968.06.01) ([1])

 

Há umas semanas fui ao Teatro da Trindade ver a ópera "Os Palhaços" e à saída encontrei o Artur Horta. Como de costume, quando nos encontramos à noite, encetámos um dos nossos célebres diálogos, nos quais abordamos os mais variados assuntos, desde os mais transcendentes aos mais corriqueiros, que se prolongam pela noite fora, até de madrugada. A nossa deambulação levou‑nos, dessa vez, até à veneranda Rua do Quelhas, onde discutíamos a metempsicose e o panteísmo. Eram quatro da matina; andávamos uns passos, parávamos, retomávamos a marcha e assim sucessivamente. Éramos os senhores da rua, onde não passava viva alma! Às tantas reparámos num guarda nocturno que, atravessando a rua e dirigindo‑se‑nos, perguntou onde morávamos: "Eu em Campo de Ourique, o meu colega aqui na Lapa". Fez um comentário acerca do adiantado da hora, que havia muitos malandros, etc., etc. "Malandros?! Que quer dizer com isso ?" "Ah! os senhores sabem, há muitos ladrões de automóveis!" E, mirando‑nos de alto a baixo: "Bem, vê‑se que os senhores são bons rapazes, estão bem vestidos! Desculpem. Boa noite." E foi‑se. E durante algum tempo o pobre do guarda nocturno foi tema da nossa conversa, ele e a sua teoria de que o hábito faz o monge.

E lembrar‑me eu que há dias fui ao "Coliseu" ver o "London Royal Balet" de quedes (sapatos de lona) em mangas de camisa e com barba de dois dias, por ter sido convidado à última da hora. (NSF - 1968.06.24)

 

No Jardim da Estrela corre uma aragem fresca, por vezes desagradável. Está um sol de chuva. Estou sentado numa das mesas da esplanada do jardim, defronte ao lago de águas esverdinhadas onde se reflectem as verdes ramagens das árvores. Dois cisnes pretos, de bico vermelho, vogam nas águas, dos por uma ninhada de cisnezitos de penas cinzentas e eriçadas.

Alguém atirou para a água restos de comida. Peixes vermelhos e pretos, estes mais pequenos, acorrem de todos os lados e disputam-nos.

Ouve-se o trânsito na Praça da Estrela, as crianças além no parque infantil e, para lá das árvores, o vozear das pessoas aqui na esplanada, pedaços soltos de conversas, o cair da água no lago.

Nas áleas passam as pessoas, em grupos ou não. Defronte de mim, na outra margem, vários bancos, alguns ocupados. Naquele, à esquerda, um casal idoso. Ele, contempla quem passa e pensa talvez na vida que já lá vai. Ela, de vestido azul e botas brancas, com casaco de malha preto, faz tricot. Outro velhote que ocupava o extremo do banco levantou‑se e foi‑se. Estavam, mas já não estão, no banco seguinte, dois homens, um dormindo, outro espreguiçando‑se. Uma pomba pousou agora no gradeamento, ao meu alcance, mas já levantou voo. (NSF - 1968.09.01)

 

Custou, mas na camioneta, rumo a Lisboa, senti‑me renascer, como se tivesse saído dum opressivo ambiente tumular. Esta Lisboa do miúdo que choraminga. E do velhote, límpidos olhos azuis, humildemente vestido mas não enxovalhado, que é brutalmente arrastado para o passeio por um pai rude, exaltado, mal barbeado, que lhe torceria o nariz, o esmigalharia, lhe daria duas bofetadas,... se ele não estivesse bêbedo. Enquanto aquele retorquia: "Estavam a maltratar os pombinhos", sem muita firmeza, de olhos perdidos sabe Deus onde. Ou do miúdo que me aponta uma pistola: "Mãos ao ar", num Chiado repleto de gente azafamada. Que é admoestado por uma mãe derretida. Que se perdeu no rio das gentes que sobem ou descem. Das duas "meninas bem" que, especadas no passeio qual escolhos, lançam olhares furibundos ao pirralho esfarrapado e sujo que lhes aponta uma espingarda de lata. Do café Nicola, donde sou desalojado sem cerimónia, pois um "garoto" e um "croissant" não permitem a ocupação indefinida de uma mesa para escrever, especialmente à hora de almoço. Dos vendedores ambulantes, que jogam ao corre‑corre com os polícias, de tabuleiros cheios de quinquilharia, jogando ao passo‑passa com os automóveis.(NSM - 1968.12.27)

 

1971

(…)

obrigado pelas miúdas que encontrei hoje

                pela graça marota da Isabel., seu sorriso-riso sonoro

               que alegra a gente

                pelo ar sereno da Noémia

                pelo sorriso da garota do Chiado, aquela que tinha uma

               covinha no queixo,

(…) Excerto do meu poema “Obrigado”, escrito em Évora em 1971.04,14

 

1972

Terminei a minha digressão turística com uma visita às Igrejas de Santa Maria e de S. Julião. Depois dum lanche frugal, apanhei a camioneta para Cacilhas, depois o ferry-boat para o Cais do Sodré e o comboio para Paço de Arcos. Só me faltou andar de avião. Em Setúbal reconheci o  Zeca Afonso. Refreei o impulso de perguntar‑lhe "Você é que é o Zeca Terminei a minha digressão turística com uma visita às Igrejas de Santa Maria e de S. Julião. (MCG - 1972.12.29)

 

1973

Olho para o Tejo à minha frente, cintilante como prata. Um ferry-boat acostado espera por ninguém, enquanto barcos sulcam o rio e gaivotas esvoaçam sobre ele. O autocarro vai‑se enchendo, ouço os passos das pessoas que sobem para o 2º piso, o lugar ao lado do meu é ocupado por uma senhora idosa, de preto. O cobrador diz que já não há mais lugares e dentro em pouco o Tejo ficará para trás.(MCG - 1973.01.02)

 

Às 14:30 apanharei [em Évora] boleia do Pintassilgo (e da miúda) rumo a Setúbal, onde apanharei a camioneta para Cacilhas, aqui o ferry-boat para o Cais do Sodré e lá o comboio para Paço de Arcos. Em lá chegando à estação, olhos para as malfadadas escadas [escadaria], atravesso a linha, subo‑as e ala pela Rua Conde de Alcáçovas abaixo, por entre as árvores que a ladeiam até ao fundo, onde viro à esquerda dando de caras com o nº 1 da Rua de Macau. (1973.08.03)

 

Defronte a mim o Tejo refulge como um espelho. ([2]) Passa uma fragata e há barcos ancorados. O ferry-boat prepara-se para acostar. Passam pessoas ali em baixo na rua e as gaivotas evolucionam sobre o rio. Estou no 2º piso dum autocarro, aguardando que ele parta. Começou a andar. Até já. Almocei com a Emília [Dias]. O almoço no "Isaura", ali na Av. Paris, estava bom e falámos dos nossos velhos companheiros de lides associativas. quantos já se integraram no sistema? Outros continuam a lutar, alguns mesmo à custa da própria liberdade. (MCG - 1973.10.02)

 

Escrevo no antigo laboratório da  Farmácia [Sanitas, no Largo Luís de Camões], no tempo em que as mezinhas eram manipuladas aqui nas traseiras. São cerca de 17:00 e os empregados tomam chazinho com bolos. (...) Ah! o chazinho é porque a minha tia Esperança faz... 71 anos. (MCG - 1973.10.31) 

 1974

P'ráqui estou num café no Cais do Sodré. Os autocarros e os eléctricos passam lá fora na rua. O ambiente está ruidoso e o tempo ameaça chuva. A sandes e o galão estavam uma merda. (São 18:30 de sábado) (...) Parece que vai chover. Esperemos que consiga chegar a casa antes do aguaceiro, pois não trouxe guarda chuva. (...) E por aqui me fico hoje. Tenho de ir apanhar o comboio [para Paço de Arcos]. Não avisei que ia jantar e vai haver sermão, pois não contam comigo. (MCG - 1974.10.19)


Uma chuva miudinha caia à saída e no percurso que fiz a pé  [da Praça da Figueira] até ao Cais do Sodré fui vendo "os homens da noite" ou seja, os coladores de cartazes. Bem... o primeiro "homem da noite" era uma velhota que colava cartazes manuscritos nas traseiras da Igreja de S. Domingos. Na Praça da Figueira, um grupo colava cartazes do PS enquanto que na Rua do Carmo os MRPP anunciavam o comício - que pretendem homenagem nacional - em memória de Ribeiro dos Santos, estudante [de Economia] assassinado pela PIDE há dois ou três anos.(...) MCG - (1974.10.21/22)

 

São quase 19 horas e hoje o meu poiso para escrever é a Praça Luís de Camões, o qual, imponente no alto de pedestal, rodeado de pombas, "olha" para o movimento dos carros e pessoas. A base da estátua está enfeitada com faixas bicolores da bandeira portuguesa. (MCG - 1974.10.23)

 

A toda a largura da 1ª página a "Capital" anuncia que as "Eleições não serão alteradas". (...) Estou aqui num cafezito no [Largo de] Camões e pergunto‑me porque está ali a estátua do autor d´"Os Lusíadas" envolta com as cores da bandeira portuguesa. ([3]) Pergunta para a qual não encontro resposta. Vim há pouco da Livraria Bertrand onde comprei alguns livros para o 7º ano. (MCG - 1974.11.21)

 

1975

Já era tarde para jantar em Paço d'Arcos e dei uma volta, acabando por vir parar a um restaurantezeco aqui no Cais do Sodré, mesmo na rua dos bares e das prostitutas. Na cadeira ao meu lado ronrona um enorme gato. (MCG - 1975.03.25)

 

Amanhã regresso a Évora com o João Lucas. Vim ontem com o Viegas e a Violete; chegámos já tarde a Lisboa, onde jantei na tasca habitual lá para o Cais do Sodré, onde passeia o "bas‑fond" cá da cidade: prostitutas, chulos, clientes e chuis.  (1975.06.29)

 


[1] - Esta rua situava-se em Santa Isabel, a meio da íngreme encosta que ligava o Largo do Rato a Campo de Ourique. Também aqui, em quarto alugados, se alojavam muitos estudantes. (1998.Maio)

[2] - Será devido a este fulgor que o estuário é conhecido por ... Mar da Palha?

[3] - Já anteriormente referira fenómeno idêntico.


VER Entre Paço de Arcos e a Estrela

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