PASSEIO PÚBLICO38
MINUTOS COM
NUNO CALVET
“CADA
FOTOGRAFIA É, EM CERTA MEDIDA, UMA AUTOANÁLISE”
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PASSOU MAIS DE
METADE DA VIDA A FOTOGRAFAR PAISAGENS E PESSOAS, ANÓNIMAS OU NO ESTRELATO. PARA
AMÁLIA RODRIGUES FEZ A CAPA DE UM DISCO QUE A MEMÓRIA COLETIVA REGISTOU COM
BASE NUMA FOTOGRAFIA: “BUSTO”
ENTREVISTA JOÃO DIOGO CORREIA FOTOGRAFIA TIAGO MIRANDA
Fotografou
muito, mas fala pouco sobre essas fotografias. Porquê?
Como dizia o ‘nosso amigo’
Cartier-Bresson, se é necessário falar sobre uma fotografia é porque ela não
comunica o que pretende. A não ser que seja uma conversa estritamente estética,
sobre produção, montagem gráfica. Sobre o que acontece nela, a imagem propriamente
dita, as palavras são supérfluas, são espúrias. Olha-se para a fotografia e é
ela que tem de nos dizer o que é real e íntimo.
Não
lhe chama arte. Soa-lhe pretensioso?
A fotografia é um tipo de expressão
gráfica que tem uma génese mecânica, técnica, e a partir daí toda a conversa
que se gera sobre o resultado dessa expressão tende a ser ou muito técnica ou
cheia de lugares-comuns e de preconceitos de ordem estética. A partir de certa
altura, começa a haver uma separação entre fotografia e outros processos
artísticos de origem gráfica (a pintura, o desenho), porque a fotografia começa
a ser acessível a todo o ‘bicho careta’. Toda a gente quer fotografar e toda a
gente tem uma máquina. Julgam as pessoas que é só carregar no botão e sai uma
coisa bonita. Então entramos no campo do bonito, que não tem nada que ver com o
lado artístico, criativo, que a fotografia pode encerrar. E que a maior parte
das vezes até nem encerra: limita-se a reproduzir aspetos ditos bonitos,
interessantes, mas que não têm ligação com a intimidade do fotógrafo, com a sua
maneira de ser e de estar. São aparências e às aparências, normalmente, não
lhes resta mais nada. Entramos no tempo em que a fotografia começa a ser
considerada uma arte, mas uma arte menor. Porque é muito fácil fotografar um
pôr do sol, as ondinhas do mar a rebentar. É muito fácil fazer essas coisas e
começou a misturar-se essa facilidade em reproduzir imagens ditas bonitas do
quotidiano com o lado artístico. Esse lado tem que ver com outros mundos, muito
pessoais.
Com
o olhar do fotógrafo?
Exatamente. Com a personalidade do
fotógrafo, no fundo. Quando uma pessoa faz uma fotografia, não é só ela que
está a fotografar um determinado assunto. Está a fotografar-se também a si
própria. Cada fotografia é, em certa medida, uma autoanálise. Que depois
transpira na imagem que retém, que grava.
E
aí já é uma arte?
Pode ser, a partir do momento em que
exprime um conjunto de dados de ordem estética conhecidos, mas que não são
gratuitos, não são coisas supérfluas. São atributos que estão ligados à
personalidade e à capacidade expressiva do seu fotógrafo.
E
há coisas a dizer sobre ele? Neste caso, sobre si?
Sobre mim, o que lhe posso dizer? Que tive
alturas muito bonitas, outras menos. É uma coisa muito subjetiva.
“JULGAM
AS PESSOAS QUE É SÓ CARREGAR NO BOTÃO E SAI UMA COISA BONITA”
Como
vive com esta ‘altura’?
Tenho um olhar livre para fotografar
aquilo que me interessa. Neste momento, fotografo relativamente pouco, porque
comecei a perceber que já tinha fotografado aquilo que ia fotografar outra vez.
Estava a repetir-me, a copiar-me a mim próprio. A idade também já não me
permite viajar como antes.
O
Alto Alentejo, onde vive agora, é fotogénico?
Sim, mas a partir de um certo momento, não
apetece andar à procura. Já se encontrou, já está registado. O fotógrafo, às
vezes, encontra as coisas, não as procura. Eu há 10 anos fiz um livro sobre o
Alentejo, e aí percorri-o várias vezes, mas foi diferente, eu não estava à
procura de nada. Estava atento ao que me aparecia à frente.
E o
que encontrou?
O Alentejo é um mundo. Tem zonas e aspetos
extremamente característicos. Há coisas lindíssimas, insubstituíveis do ponto
de vista visual. O que agora trabalho é a composição de fotografias que já fiz.
Dá-me muito gozo pegar nessas imagens e construir novos mundos, novas
situações, completamente fora de cada uma delas. Isso dá-me muito gozo,
entretém-me. E já fiz três exposições dessa forma.
Escolhe-as
a partir de um algum critério específico?
Não, não. São imagens que eu imagino.
Imaginações sobre imagens. Vejo imagens e imagino outros mundos.
Fotografou
o Portugal profundo, mas também artistas consagrados. Foi sempre o mesmo?
Fotografar pessoas é um mundo completamente
diferente. No fundo, a pessoa fotografada é-o do ponto de vista da sua
personalidade, daquilo que faz. E para isso é preciso conhecer o mínimo daquela
pessoa.
Era
o que mais lhe interessava?
Interessava-me porque eu privava com
aquelas pessoas.
Com
a Amália, por exemplo?
Com a Amália foi diferente. Eu fui para a
Valentim de Carvalho [VC] depois da tropa. Era um melómano, gostava, e gosto,
muito de música, tinha muitos discos. Nessa altura, a Amália não tinha relações
profissionais com a casa VC, havia um certo distanciamento do velho Valentim
[fundador da editora, em 1914]. Não era que ele não gostasse da Amália, mas não
simpatizava, porque ela trabalhava para a concorrência. A certa altura, o Rui
[sobrinho de Valentim] conheceu a Amália, apaixonou-se por ela em termos quase
maternais. Até dizíamos, a brincar, que só faltava a Amália puxá-lo por uma
coleira. E foi aí, através de um homem que já morreu e que foi o principal
responsável por eu ser fotógrafo, o Gérard Castello-Lopes. De 15 em 15 dias,
havia sessões de fotografia em casa dele. Ele perguntou-me se eu tinha
fotografias, eu mostrei-lhe e ele disse-me: “Eh, pá, tu tens é de ser
fotógrafo.” E comecei a fazer fotografias para a VC. Não fiz muitas, fiz
algumas, como a capa do Alfredo Marceneiro, em que ele está com um lenço e uma
beata ao canto da boca. Mas não fotografei logo a Amália. Acontece que,
finalmente, ela começa a gravar para a VC [1962], numa altura em que estava
sempre muito pouco disponível, era muito difícil. Havia um busto de um escultor
[Joaquim Valente] e o Rui perguntou-me se eu podia fotografá-lo. Eu fui e, por
acaso, saiu bem. É uma vulgar imagem feita com praticamente nenhuns meios.
Levei o busto para minha casa, pu-lo em cima de uma mesa, com um pequeno
projetor e utilizando uma parede branca para refletir o busto. Mais por acaso
do que por intenção, saiu bem. Ainda tenho esses negativos.
Foi
dos seus trabalhos mais marcantes? Ou mais conhecidos?
Eu acho que não. O disco teve muito
sucesso, talvez por isso a fotografia tenha ficado tão conhecida. Ainda fiz
outras para discos. Há um disco do Vinicius de Moraes que também tem uma
fotografia minha. Foi feita no próprio edifício da Philips. Havia uma sala de
reuniões, onde ele foi dizer poesia. A sala até nem era muito grande, mas tinha
boa iluminação, e fiz lá uma fotografia dele a dizer poesia. Depois nos
espetáculos fiz várias. Do Chico Buarque também.
Depois
deixou de as fazer?
Quando fui para a Philips, já muito
embrenhado na fotografia profissional, comecei a fazer trabalhos para
publicidade. Tinha de viver, tinha família, três filhos, a minha mulher não
trabalhava, tinha de ganhar o pão para a boca da miudagem. Nessa altura
ganhava-se bom dinheiro. Mas nunca deu para enriquecer, porque o que se ganhava
gastava-se logo em equipamento. Depois uma grande parte da fotografia que se vê
na publicidade, nas revistas, passa a ser comprada a estúdios, a grandes bancos
de imagem, que antes não existiam. E passa a pagar-se uma ninharia.
Que
relação tem agora com esse mundo?
Desinteressei-me completamente. Comecei a
fazer fotografia por gosto. Mas a partir de uma certa altura isso acabou.
De
onde tira agora prazer?
Tiro sobretudo das exposições. Mas agora
não tenho planos nenhuns. Só quero gozar com as imagens que tenho e com a
família. Não tenho idade para andar aí de ‘ceca para meca’ com o material às
costas. Chegar onde cheguei, assim como estou, já é uma aquisição bastante boa.
A maior parte das pessoas da minha idade já cá não está.