Jorge Molder, da série La Reine nous salue: o tamanho da memória, 2001
© Jorge Molder
“Não escrevo muito sobre as fotografias de Jorge Molder. Talvez porque obedeça à contrição do conceptualismo evidente, talvez porque saiba, como todos sabemos, que ele considera todos os discursos demasiado paralelos às suas intenções e formalização.
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Claro que, apesar destas precauções e deste distanciamento há todo um corpo discursivo que se foi acumulando com o disparar da sua projecção a partir daquelas narrativas literárias que nos faziam identificar cenários que apenas a ficção inventara para nós, como o “Secret Agent”, “Zerlina” ou “Cabinet d’amateur”. Exposições que indiciavam as mitificações com que fazemos os nossos dias. Aí, todos os clichés literários ganhavam, (como o nº 10 de Baker Street esclarece sobre Sherlock Holmes), a positividade do real.
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O tempo habituou-nos a que cada série sua não é apenas o que aparenta, embora também o seja. Cientes deste paradoxo amigável, foi-nos mais difícil lidar com as suas longuíssimas séries de auto-representação que entusiasmaram os pós-modernos e que nos enviavam para a apropriação do discurso sobre o corpo, sobre a expressão, sobre o gesto e a sua sequente banalização interpretativa. Com essas séries também aprendemos que não há aí uma foto a mais, uma foto mais imperfeita; são todas as necessárias, são todas fotograficamente perfeitas na sua glória do preto e branco extremado. E, mesmo quando há saturação do motivo, a saturação é o objectivo.
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Mas cada um escolhe a sua imagem-fetiche, aquela que fica indelével na memória dos dias. A obsessão é da história pessoal e eu evoco sempre um drácula tenso e adormecido, muito branco e muito belo, jazendo num movimento de quase-erguer que fazia parte da sua série que inaugurou as instalações do Centro Português de Fotografia na Cadeia de Relação. Talvez porque gosto da serenidade que oculta a paixão e a misturei com as lendas vivas do final de século.
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Esta imagem fotográfica da série La reine vous salue… foi retirada do pequeno catálogo que trouxe comigo, em 2001, do Museu de História Natural, em Lisboa. A exposição mostrava-se na Sala do Veado e já então considerei que o arrepio das imagens se casavam bem com o sortilégio do mistério da Festa do Veado dos ritos celtas, onde tudo não é o que parece pois tudo se passa em Avalon. No texto introdutório, fazendo uma citação, Molder evoca o movimento da memória quando “recordamos coisas que nunca nos aconteceram”. Coisas que nos desviam da realidade e nos saturam a memória. O que se tornou bem claro na minha própria impressão sobre as imagens. Considerei que esta imagem congregava em si toda a intenção da mostra, que envolvi no mistério da aliança do veado com a virgem eleita: a alucinação, as sombras, a indeterminação das formas, a incapacidade de reter a realidade, de a isolar dos medos e das suas roupagens. O que fica da memória que se não viveu, como a minha, que apenas a tenho da literatura é a ferida de uma impressão vaga. O autor das imagens mostra a moldagem inacabada de um rosto, desvirtuada nas suas formas pelas sombras que a escondem, pelos traços que a alteram. Há qualquer coisa de construção inacabada, de forma que só se definirá através da acção. É como uma suspensão do que poderá vir a ser um fenómeno.
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Mas fica o olhar; e o olhar é uma impressão. Sentimo-lo, forte e inquietante, porque incompleto; em vão procuramos os olhos, há apenas uma imprecisa pupila, sombras negras e disformes. Mesmo no distanciamento da análise, o olhar persegue-nos e observa-nos. É como sempre diz Molder: um aqui é o que as fotografias nos podem dar e essa deve ser a sua sedução. E este olhar, que é apenas a indeterminação do olhar, devia ser o dos deuses severos que regulavam o lado esquerdo da vida, para sempre nos lembrar que estão aí, na memória do que se não viveu, mas que existe mais do tudo o que se pode ver. São eles afinal, que nos forneceram o fruto do conhecimento.”
Maria do Carmo Serén
Post de Sérgio B. Gomes
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