de comboio: pela
linha do Norte
No comboio, a caminho
de Lisboa, pedi a um dos meus companheiros de viagem que me emprestasse as
"Modas e Bordados" para folhear, pausa na conversa que mantínhamos
desde o Porto. Agora o dia está maravilhoso e cheio de sol. (No Porto chovia a
cântaros) Há já um bom bocado que deixámos Coimbra. O comboio desliza rápido, tac-tac, tac-tac. deixando para trás campos
verdejantes, olivais e vinhedos, pinhais, alguns deles alagados, e casas
dispersas na paisagem. Os meus vizinhos de compartimento dormitam, enquanto a
sineta toca para o almoço. Daqui a uma hora chegaremos a Lisboa. (...) Os
companheiros de viagem: a sra. D. Alice, ar aristocrático, minha velha
conhecida do Porto, cheia de vivacidade, apesar da idade, rosto quadrado,
sanguínea. O outro, desconhecido, deve ser um homem ligado à actividade
comercial, pelo modo como veste e pelos apetrechos: óculos e lapiseira no bolso
do lenço no casaco, pasta. Veste com pouca elegância, fato de um tecido
acastanhado mesclado de azul e vermelho, colete cinzento de malha, gravata
preta com duas listas - uma encarnada e amarela, estreita, outra mais larga,
verde, junto ao nó. Sapatos castanhos, mal engraxados. Afinal a pasta continha
um farnel embrulhado num guardanapo dentro dum saquito de plástico, que ele
come, e que me ofereceu. (Isto faz‑me lembrar que tenho de ir ao bar comer uma
sandes.
A D. Alice, o
[jornal] "O 1º de Janeiro" nos
joelhos, dormita, a cabeça apoiada na mão. Queixa‑se do frio, mas aqui para nós
ainda bem que desligaram o aquecimento, pois isto já era um forno.
Chegamos ao Entroncamento - são 12:40. Por causa das obras na linha, penso eu, o comboio vem
atrasado. As casas, blocos uniformes, regularmente monótonos, as linhas,
cruzando‑se e divergindo, cheias de carruagens, vagões e locomotivas, são uma
nota diferente na paisagem, que desde há uns bons quilómetros é mais árida que
no princípio da viagem. A linha férrea é uma ponte nos campos alagados, com
água barrenta, levemente ondulada. Solitariamente, pequenas ilhas, renques de
árvores de ramos desfolhados, cujos nomes desconheço. Já não se vêm no entanto
árvores cortadas e oliveiras deitadas no solo, raízes desentranhadas pela força
dos ventos, que no Porto e nos últimos dias sibilaram noites seguidas,
infiltrando‑se pelas frestas das portas e janelas. Gostaria de andar num
barquito por esses campos alagados. (NOT - s/data 1972/73 ?)
A viagem decorreu bem,
embora maçadora. No compartimento, além de mim, viajavam dois rapazes sisudos e
calados e uma rapariga, que não tinha culpa de ser feiosa e fortezita! Ia mesmo
sentada à minha frente mas, contra o meu costume, não trocámos uma única
palavra. Pensando bem, ela não era tão feiosa como isso, até tinha uns lindos
olhos azuis e um sorriso bonito. Só sorriu uma vez, quando eu, com um ar muito
circunspecto, fingia admirar a paisagem; eis senão quando aparece um malandro
dum comboio, sem avisar, às apitadelas, que me fez dar um salto na poltrona. A
muito custo lá consegui assumir um ar de dignidade ofendida, embora a vontade
de rir fosse grande. Bem, lá chegámos a Lisboa, onde chovia a potes. Táxis, nem
sombra; os que apareciam eram logo anexados. Mas... enquanto há vida há
esperança e sempre apanhei um! (ASB - 1968.04.19)
Na linha do Estoril
O tempo está húmido e frio e
quando cheguei de Lisboa estava farto da viagem e da constipação (...) No comboio duas raparigas - especialmente a
que se chamava Nani - tentaram provocar conversa - as deixas foram muitas -
mas sem grande resultado. Não sei o que seriam: empregadas de escritório,
operárias ou qualquer outra coisa. A máquina de discos aqui doutro café da rua
principal de Paço de Arcos transmite qualquer coisa barulhenta e desconchavada
cujo estribilho é "Oh Mary". Não vale a pena a troca, pois aqui
também não há pregos nem leite. Tenho mesmo de ficar mal jantado. (1974.12.26)
P'ráqui estou num café
no Cais do Sodré. Os autocarros e os
eléctricos passam lá fora na rua. O ambiente está ruidoso e o tempo ameaça
chuva. A sandes e o galão estavam uma merda. (São 18:30 de sábado) (...) Parece
que vai chover. Esperemos que consiga chegar a casa antes do aguaceiro, pois
não trouxe guarda‑chuva. (...) E por aqui me fico hoje. Tenho de ir apanhar o
comboio [para Paço de Arcos].
Não
avisei que ia jantar e vai haver sermão, pois não contam comigo. (MCG -
1974.10.19)
A caminho de Sintra
Uff!
Que calor! Até parece o Abril em Luanda!
Hoje a temperatura baixou um pouco mais, em relação aos dias anteriores. Mas
mesmo assim... O ar está seco e quente; sinto-me pegajoso, indisposto. Calor,
só calor; nem uma leve brisa para refrescar; quando corre não é senão um bafo
quente. As engrenagens cerebrais estão emperradas, o raciocínio faz-se ao
retardador! A casa é um forno, a rua um inferno. Nem sequer tenho tido coragem
de ir à praia, não obstante a sedução dum mergulho infindável nas águas do
oceano, melhor, do Tejo.
Ontem
fui com o Manel até Sintra A viagem de comboio, na ida e na volta, foi um
suplício. Mas lá, meu Deus, que paraíso! Um parque aprazível, o rumorejar da
brisa por entre as ramagens, a quietude, o sossego! Por lá ficamos largos
momentos, eu com a "História da Música Europeia", O Manel com "O
Pequeno Lorde" (NSF - 1968.07.24)
Aqui atrás de mim duas velhotas filosofam sobre as misérias
dos católicos (parecem‑me beatas e quando entrámos [no café à beira da estrada] estava uma desabafando: "o que nós fomos e ao que chegámos!
" (...) O comboio de Sintra desliza lentamente lá em baixo no vale. A
sandes de presunto e queijo estava saborosa. (1974.01.02)
Do Barreiro a
Setúbal
corre o comboio
sobre os carris
faz que anda mas
não anda
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
chiam as rodas
na estação
Sai
gente
entra
soa o apito
estremece o comboio
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
É de inverno
entra o frio
É de verão
abafa o calor
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
Faça
chuva
calor
o tempo que for
escorre a paisagem
seja
noite
dia
a hora que for
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
de pé ou sentadas
xe "companheiros de viagem" §vão as
pessoas
as pessoas
caladas
faladas
falando
sisudas
risonhas
lendo
meditando
caras cerradas no
olhar ausente
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
Poema - História de Todos os Dias - escrito no comboio Barreiro - Setúbal em 1982.03.18
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