Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

sábado, 30 de setembro de 2017

o puzzle sem solução à vista ?




* Victor Nogueira

Está pois João Bimbelo sentado no alto da madrugada, uma vez mais a maldita espertina, o negrume da noite para lá da vidraça, os pirilampos refulgindo em terra até ao horizonte, o silêncio rompido apenas pela desagradável zoeira no ouvidos, como se mil cigarras fossem, o bate seco e apressado das batidas no teclado que vão enchendo de signos o alvo monitor defronte de si, a luz do candeeiro lançando luz e sombras sobre a mesa de trabalho. Nada há de novo, nada para lá da vulgaridade em que se encontra.

Passando a mão pelo rosto sente a barba como se fosse lixa, a boca seca, as dores no estômago. João, que é um razoável analista e retratista de pessoas, falha rotundamente e não poucas vezes na correcta  leitura e consequente interpretação dos sinais quando é o seu enamoramento por outrem que está em causa. 
Que interessa pois falar em Penélopes ou Miquelinas, se nunca serão um para o outro como José e Pilar, se os caminhos de ambos parecem divergentes, ocasional e acidentalmente coincidentes,  se durante estes anos todos – um lustro sem lustre nem lustro - como aina hoje sucede, é João que fica no cais e Penélope, a do coletinho de lã, que parte para Tróia, para aqui e para ali, num constante cirandar, sem lugar para ele na preenchida agenda dela.

Entra a vã esperança e a realidade, qual prevalecerá ?

Nesta CANTILENA COM MAU GOSTO
.
Quem quer ver a moça bela
Que na rua vai passando,
Florida, com sentinela,
0 meu sossego roubando?
.
0 meu sossego roubando
Sem leveza d'andorinha,
Em má prisão esvoaçando
Não te vendo, Oh! sinházinha!
.
Não te vendo, oh! sinházinha,
Um deserto vai nascendo;
Bem longe da minha vinha
Por ti mal, vou fenecendo,
.
Por ti mal, vou fenecendo
Nesta casa sem calor;
Não quero ficar sofrendo
Como trigal sem verdor,
.
Como trigal sem verdor
Não me deixes tu ficar;
É bom ter calma d'amor
No mar alto a navegar,
.
No mar alto a navegar
Remando àquele porto,
Com roussinol a cantar
Mui cantante, sem desgosto.
.
Mal cantante, com desgosto,
Vou deixando de cantar;
Ficando mal, mal disposto,
Pela companh'a a fugar!
(1992)

Será mesmo verdade que O AMOR É BEM QUE SUAVIZA?

A tua presença na minha casa
Enche o ar de color e alegria,
Arte, doce, terna, bela magia;
Assim meu coração ganha outra asa.

Cozinhamos o pão que não esfria,
Brincando, procuramos boa vaza
P'ra espantar a tristeza, que arrasa
Rio, danço, com tua cantoria.

Com tua feição nos vasos pões flor
A tudo dando vida e bom sabor;
Caricio teu corpo, os teus lábios,

Afago teu rosto, aparto as dores;
A rua, plena de sol e louvor,
É verde planura com riso dos sábios.(Setúbal 89.09.05)

Pois a verdade é que
  1. Na tua mão
                                               bate estrangulado
                                               o meu coração.
                                               Preso no teu olhar
                                               bate suave
                                               muito leve
                                               com desejo de voar.
                                               Onde o riso e a palavra
                                               que o façam sossegar?

 2.                                          Com os meu dedos
                                               sigo lentamente o teu olhar
                                               Uma leve brisa agita o teu rosto
                                               e não sei bem se é um pássaro
                                                                             ou uma flor
                                               o sorriso que nasce nos teus lábios.
                                               Será noite
                                               ou uma criança  a navegar?

3.   Nas minhas mãos
         o dia escurece
         e não ouço nelas
         o calor da tua voz a cantar.
         Uma gota cai lentamente no
                                         [ horizonte
         E outra
         E outra
         E mais outra ...
         E as minhas palavras são
                         um novelo em busca do mar!
         O teu rosto,
         o teu rosto é uma linha  a navegar
         onde loucas gaivotas
         querem mergulhar.
         Quem as recolherá
         como um cristal  a brilhar?
(1995)

Ou de tudo isto ficará apenas e mais uma vez um rasto amargo e seco de flores esmaecidas, do rapaz à beira do cais de que fala António Reis nos seus Poemas Quotidianos ?

070. HÁ SEMPRE UM RAPAZ TRISTE

Há sempre um rapaz triste
em frente a um barco

(a água é sempre azul
e sempre fresca)

Em que país encontraria
um emprego e esquecimento

em que país encontraria
amor e compreensão

Em que país
sentiriam
a sua vida e a sua morte

Não respondem as gaivotas
porque voam

Há sempre um rapaz triste
com lágrimas nos olhos
em frente a um barco

António Reis - Poemas Quotidianos, [1957].

Mas que interessa tudo isto, este mero e paupérrimo rosário de palavras desfeitas pelo silêncio do alto da madrugada ? Fecho as palavras, meto-me na mala e prossigo a peregrinação em busca de portos e marés onde não reine esta desolação, este encanto sem canto, desencantado e desencontrado ? Mas que interessa este retorno ao passado se é no presente que se constrói o futuro ?

Meto os papéis ao bolso, amarfanhdos  pelos dedos de ambos, de Ulisses e de Penélope. O horizonte, esse daqui a pouco passará do negro ao vermelho e, daqui a umas horas, regressará o negrume para dele siurdir novo horizonte vermelho e assim ciclicamente até ao suspiro final.


setúbal, no alto da madrugada em 2017.09.30


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