* Victor Nogueira
Outrora, enquanto estudante, viajava muito de comboio, nas minhas deslocações entre Évora, Beja, Lisboa, Porto e Setúbal ou Paço de Arcos. Depois, durante anos, nas minhas deslocações para o Barreiro, onde trabalhei. Dalgumas dessas viagens ficaram registos epistolares, como os que no final transcrevo.
Mas o motivo principal deste meu post ´foi a estação ferroviária de Setúbal, para fotografar os painéis de azulejos que afinal já não existem. Toda a graciosidade da velha estação perdeu-se com as obras dissonantes de recuperação e modernização. Na fachada do novo edifício, no átrio e nos corredores ascéticos novos azulejos da autoria de Joana da Motta Guedes (2010), com outro traço, adornam as paredes.
O antigo edifício, sem os azulejos nas paredes, que caracterizavam as estações ferroviárias
as bilheteiras
fotos em 2017.09.18
Viagens ferroviárias no Alentejo
1. - A CHEGADA A ÉVORA - Ao fim duns vinte minutos foi a chegada a Évora. Após alguns infrutíferos telefonemas feitos dum barzeco existente junto à estação, consegui arranjar um quarto na Pensão Eborense. Começara pelas pensões de 2ª classe e estava a ver que terminava no hotel de luxo. Mas Deus Nosso Senhor teve pena da minha bolsa! Entretanto os táxis tinham debandado. Sabendo que a pensão ficava a cerca de 1 km e porque a noite estava amena, pus o saco da TAP a tiracolo e pés a caminho. (...) . (NSF - 1968.09.09)
2. - Apanhei o barco para o Barreiro
às 19 h 30 m e depois de meia hora de secagem na outra margem, o trem lá partiu
às 20 h 30 m. Na carruagem, além
de mim, uma rapariga magra com um chapéu de palha roxa ou lilás, de feitio
esquisito (parecia um outeiro circundado por uma vala, pois as abas estavam
viradas para cima; muito vagamente assemelhava‑se ao barrete dos marinheiros
rasos), um padre (que saiu a meio do percurso) e um rapaz de camisola branca
(que seguiu para além da Casa Branca). O comboio parou em tudo o que era
estação ou apeadeiro. A luz na carruagem era para alumiar mortos, pelo que nem
ler pude. Só quase no fim da viagem descobri como acender as lâmpadas
individuais, por cima de cada poltrona. Chegámos a Casa Branca cerca das 23 h
15 m. Aí tivemos de mudar para a automotora, pois o comboio seguia para Beja.
Que transição entre a carruagem deste e o compartimento daquela (viajava em 1ª
classe). Um forte e incomodativo cheiro a gasóleo, as poltronas cobertas com
panos sujos, amarfanhados, mal colocados. Ao fim duns vinte minutos foi a
chegada a Évora.(NSF - 1968.09.09)
3. - Tac tac - tac tac - tac tac, cá vou eu a caminho de [Évora] num comboio ronceiro que espero chegue à tabela. Ao chegar, às 21:30, a falta de táxis e o excesso de "chegantes" fizeram com que o Régua e eu pegássemos nos respectivos sacos e mochilas rumo, um ao fim da Rua dos Mercadores, outro ao princípio da do Raimundo. Embora os sacos não fossem pesados, são incómodos de transportar, pelo que a meio do caminho eu protestava contra as minhas brilhantes ideias e murmurasse para com os meus botões acerca da minha fartura de mim e da muita paciência que eu tenho para aturar me. (MCG - 1973.01.04)
3. - Tac tac - tac tac - tac tac, cá vou eu a caminho de [Évora] num comboio ronceiro que espero chegue à tabela. Ao chegar, às 21:30, a falta de táxis e o excesso de "chegantes" fizeram com que o Régua e eu pegássemos nos respectivos sacos e mochilas rumo, um ao fim da Rua dos Mercadores, outro ao princípio da do Raimundo. Embora os sacos não fossem pesados, são incómodos de transportar, pelo que a meio do caminho eu protestava contra as minhas brilhantes ideias e murmurasse para com os meus botões acerca da minha fartura de mim e da muita paciência que eu tenho para aturar me. (MCG - 1973.01.04)
4. - "Atenção, senhores
passageiros, o comboio estacionado na linha nº 2, com destino ao Alentejo, vai
partir dentro de momentos."A voz no alto-falante cala‑se. Devem ser quase
19:05. Ei‑las. Um, sacão, um rolar suave, cada vez mais rápido e [compassado], tac-tac, paredes, comboios, postes, linhas
e luzes deslizando pela janela. O cobrador vem "revisar" os bilhetes
(ena, que rapidez!). Mudo de lugar, pois o revisor diz‑me que não pode ligar a
luz por cima de mim; entretanto dois passageiros foram recambiados para a 2ª
classe. Perto de mim um homem lê um livro de histórias aos quadrinhos, tira o
casaco e dá‑me uma ideia que aproveitarei daqui a pouco, pois está calor. Estou
com sede e é pena o comboio não ter bar. A luz da carruagem - que sacoleja
muito - é fraca, quase de velório.
(...) Apitam comboios
e ouvem‑se vozes altas. São 21:05 em
Casa Branca, onde acaba de chegar o comboio de Beja. As carruagens para Évora já
estão separadas das que seguirão para aquela cidade. O cais está molhado e deve
ter chovido para estas bandas. O bar da estação continua a mesma confusão no atender dos clientes, que sempre lhe
conheci: a malta amontoada ao balcão corrido de mármore, molhado do pano
gorduroso que o "limpou" O homem afadiga‑se a vender bifanas,
cervejas, refrigerantes e cafés. Atende‑nos sem critério, na sua calma
fleumática, atropelando a ordem de chegada. Os fregueses impacientam‑se,
nervosos, um olho no patrão, outro no comboio, não vá este desandar
inopinadamente. Finalmente o comboio põe‑se em marcha e balança mais que navio
em mar tempestuoso (NID - 1974.01.09 - ?) ([1])
5. - Entre Beja e Évora - Tudo já está para trás por enquanto O comboio chegou com quarenta minutos de atraso e foi tomado de assalto pela mini-multidão. Uma senhora abusava da sua condição feminina e furava e empurrava à busca de um lugar. Fiquei sentado junto a um rapaz magro, alto e barbudo, muito preocupado com o casaco (novo ?) que as irrequietas miúditas da frente teriam sujado com os pés. Numa estação qualquer [a caminho de Évora] entrou uma rapariga de ar assustado, carregada de cestos, que ajudei a colocar no comboio; em vez de sorrir-me e/ou agradecer‑me pediu‑me desculpa com um ar tímido e assustado, que a não largou o resto da viagem. [Como sempre] fiz a viagem debruçado na porta escancarada, como adoro, o vento a bater‑me na cara. (MCG - 1972.08.02)
5. - Entre Beja e Évora - Tudo já está para trás por enquanto O comboio chegou com quarenta minutos de atraso e foi tomado de assalto pela mini-multidão. Uma senhora abusava da sua condição feminina e furava e empurrava à busca de um lugar. Fiquei sentado junto a um rapaz magro, alto e barbudo, muito preocupado com o casaco (novo ?) que as irrequietas miúditas da frente teriam sujado com os pés. Numa estação qualquer [a caminho de Évora] entrou uma rapariga de ar assustado, carregada de cestos, que ajudei a colocar no comboio; em vez de sorrir-me e/ou agradecer‑me pediu‑me desculpa com um ar tímido e assustado, que a não largou o resto da viagem. [Como sempre] fiz a viagem debruçado na porta escancarada, como adoro, o vento a bater‑me na cara. (MCG - 1972.08.02)
[1] - As viagens faziam‑se em
carruagens velhíssimas, como refiro a propósito doutra viagem (MCG -
41973.01.04). Carruagens sem aquecimento, com bancos corridos, cada um com portas laterais nos extremos, como se vê nos filmes dos anos 40. Havia dessas carruagens também na linha Barreiro - Setúbal. Quando a viagem para Évora era nocturna, na Casa Branca havia apenas uma sala gélida à espera para recostar o corpo e um bar fechado para aconchegar o estômago.
A automotora do troço Évora-Casa Branca tresandava sempre a gasóleo, com luz nocturna de velório, e os bancos primavam pela sujidade, incluindo as poltronas da 1ª classe, com uns panos para recostar a cabeça outrora brancos mas encardidos por falta de lavagem.
41973.01.04). Carruagens sem aquecimento, com bancos corridos, cada um com portas laterais nos extremos, como se vê nos filmes dos anos 40. Havia dessas carruagens também na linha Barreiro - Setúbal. Quando a viagem para Évora era nocturna, na Casa Branca havia apenas uma sala gélida à espera para recostar o corpo e um bar fechado para aconchegar o estômago.
A automotora do troço Évora-Casa Branca tresandava sempre a gasóleo, com luz nocturna de velório, e os bancos primavam pela sujidade, incluindo as poltronas da 1ª classe, com uns panos para recostar a cabeça outrora brancos mas encardidos por falta de lavagem.
Do Lobito a Nova Lisboa, em Angola
Embarcámos no comboio na 4ª feira à tarde. A carruagem estava reservada aos estudantes do Porto [Orfeão Universitário] e tivemos de procurar outra. Por fim tudo se arranjou. Os estudantes ocuparam o refeitório fazendo dele, alguns, sala de estar. Só conseguimos jantar às 10. (...) A paisagem até Nova Lisboa é encantadora. Como 500 metros para cada lado da linha pertencem aos CFB [Caminhos de Ferro de Benguela] ( ) quase todo o percurso até à fronteira está ladeado de eucaliptos [que servem de combustível aos comboios e para fabrico de pasta de papel], segundo o que me disse o revisor da carruagem que durante a viagem me prestou muitos esclarecimentos. Antigamente a linha passava por florestas que foram abatidas para combustível às locomotivas de maneira que a Companhia fez o repovoamento florestal com eucaliptos. (MNS - 1962.08.24)
NOTAS À VIAGEM DE COMBOIO - Foi uma pena a viagem ter sido feita de noite. Como a linha férrea é a subir, abrangem se grandes distâncias. À noite as fagulhas oferecem nos um aspecto curioso. O pessoal dos C.F.B. é muito atencioso e correcto. No Lépi há um rochedo com a forma duma cabeça de elefante, daí lhe vindo o nome de “TROMBA DE ELEFANTE”. O ponto mais alto da linha férrea fica a 1894 metros de altitude. (...) (Diário III - pag. 17/18 )
Não estou de acordo com o que disse acerca das fagulhas do comboio. Eu fiz a viagem quase toda ou na varanda da carruagem ou à janela. (Eu gosto de ver por onde ando). Tirando a cara e a camisa cheia de fuligem, nada me sucedeu. fiquei encantado com a paisagem., como já lhe devo ter dito. Na verdade, esta é muito melhor que as do Norte [de Angola], que eu conheço. (ASV - 1962.09.24)
de comboio: pela
linha do Norte
No comboio, a caminho
de Lisboa, pedi a um dos meus companheiros de viagem que me emprestasse as
"Modas e Bordados" para folhear, pausa na conversa que mantínhamos
desde o Porto. Agora o dia está maravilhoso e cheio de sol. (No Porto chovia a
cântaros) Há já um bom bocado que deixámos Coimbra. O comboio desliza rápido, tac-tac, tac-tac. deixando para trás campos
verdejantes, olivais e vinhedos, pinhais, alguns deles alagados, e casas
dispersas na paisagem. Os meus vizinhos de compartimento dormitam, enquanto a
sineta toca para o almoço. Daqui a uma hora chegaremos a Lisboa. (...) Os
companheiros de viagem: a sra. D. Alice, ar aristocrático, minha velha
conhecida do Porto, cheia de vivacidade, apesar da idade, rosto quadrado,
sanguínea. O outro, desconhecido, deve ser um homem ligado à actividade
comercial, pelo modo como veste e pelos apetrechos: óculos e lapiseira no bolso
do lenço no casaco, pasta. Veste com pouca elegância, fato de um tecido
acastanhado mesclado de azul e vermelho, colete cinzento de malha, gravata
preta com duas listas - uma encarnada e amarela, estreita, outra mais larga,
verde, junto ao nó. Sapatos castanhos, mal engraxados. Afinal a pasta continha
um farnel embrulhado num guardanapo dentro dum saquito de plástico, que ele
come, e que me ofereceu. (Isto faz‑me lembrar que tenho de ir ao bar comer uma
sandes.
A D. Alice, o
[jornal] "O 1º de Janeiro" nos
joelhos, dormita, a cabeça apoiada na mão. Queixa‑se do frio, mas aqui para nós
ainda bem que desligaram o aquecimento, pois isto já era um forno.
Chegamos ao Entroncamento - são 12:40. Por causa das obras na linha, penso eu, o comboio vem
atrasado. As casas, blocos uniformes, regularmente monótonos, as linhas,
cruzando‑se e divergindo, cheias de carruagens, vagões e locomotivas, são uma
nota diferente na paisagem, que desde há uns bons quilómetros é mais árida que
no princípio da viagem. A linha férrea é uma ponte nos campos alagados, com
água barrenta, levemente ondulada. Solitariamente, pequenas ilhas, renques de
árvores de ramos desfolhados, cujos nomes desconheço. Já não se vêm no entanto
árvores cortadas e oliveiras deitadas no solo, raízes desentranhadas pela força
dos ventos, que no Porto e nos últimos dias sibilaram noites seguidas,
infiltrando‑se pelas frestas das portas e janelas. Gostaria de andar num
barquito por esses campos alagados. (NOT - s/data 1972/73 ?)
A viagem decorreu bem,
embora maçadora. No compartimento, além de mim, viajavam dois rapazes sisudos e
calados e uma rapariga, que não tinha culpa de ser feiosa e fortezita! Ia mesmo
sentada à minha frente mas, contra o meu costume, não trocámos uma única
palavra. Pensando bem, ela não era tão feiosa como isso, até tinha uns lindos
olhos azuis e um sorriso bonito. Só sorriu uma vez, quando eu, com um ar muito
circunspecto, fingia admirar a paisagem; eis senão quando aparece um malandro
dum comboio, sem avisar, às apitadelas, que me fez dar um salto na poltrona. A
muito custo lá consegui assumir um ar de dignidade ofendida, embora a vontade
de rir fosse grande. Bem, lá chegámos a Lisboa, onde chovia a potes. Táxis, nem
sombra; os que apareciam eram logo anexados. Mas... enquanto há vida há
esperança e sempre apanhei um! (ASB - 1968.04.19)
Na linha do Estoril
O tempo está húmido e frio e
quando cheguei de Lisboa estava farto da viagem e da constipação (...) No comboio duas raparigas - especialmente a
que se chamava Nani - tentaram provocar conversa - as deixas foram muitas -
mas sem grande resultado. Não sei o que seriam: empregadas de escritório,
operárias ou qualquer outra coisa. A máquina de discos aqui doutro café da rua
principal de Paço de Arcos transmite qualquer coisa barulhenta e desconchavada
cujo estribilho é "Oh Mary". Não vale a pena a troca, pois aqui
também não há pregos nem leite. Tenho mesmo de ficar mal jantado. (1974.12.26)
P'ráqui estou num café
no Cais do Sodré. Os autocarros e os
eléctricos passam lá fora na rua. O ambiente está ruidoso e o tempo ameaça
chuva. A sandes e o galão estavam uma merda. (São 18:30 de sábado) (...) Parece
que vai chover. Esperemos que consiga chegar a casa antes do aguaceiro, pois
não trouxe guarda‑chuva. (...) E por aqui me fico hoje. Tenho de ir apanhar o
comboio [para Paço de Arcos]. Não
avisei que ia jantar e vai haver sermão, pois não contam comigo. (MCG -
1974.10.19)
A caminho de Sintra
Uff!
Que calor! Até parece o Abril em Luanda!
Hoje a temperatura baixou um pouco mais, em relação aos dias anteriores. Mas
mesmo assim... O ar está seco e quente; sinto-me pegajoso, indisposto. Calor,
só calor; nem uma leve brisa para refrescar; quando corre não é senão um bafo
quente. As engrenagens cerebrais estão emperradas, o raciocínio faz-se ao
retardador! A casa é um forno, a rua um inferno. Nem sequer tenho tido coragem
de ir à praia, não obstante a sedução dum mergulho infindável nas águas do
oceano, melhor, do Tejo.
Ontem
fui com o Manel até Sintra A viagem de comboio, na ida e na volta, foi um
suplício. Mas lá, meu Deus, que paraíso! Um parque aprazível, o rumorejar da
brisa por entre as ramagens, a quietude, o sossego! Por lá ficamos largos
momentos, eu com a "História da Música Europeia", O Manel com "O
Pequeno Lorde" (NSF - 1968.07.24)
Aqui atrás de mim duas velhotas filosofam sobre as misérias
dos católicos (parecem‑me beatas e quando entrámos [no café à beira da estrada] estava uma desabafando: "o que nós fomos e ao que chegámos!
" (...) O comboio de Sintra desliza lentamente lá em baixo no vale. A
sandes de presunto e queijo estava saborosa. (1974.01.02)
Do Barreiro a
Setúbal
corre o comboio
sobre os carris
faz que anda mas
não anda
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
chiam as rodas
na estação
Sai
gente
entra
soa o apito
estremece o comboio
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
É de inverno
entra o frio
É de verão
abafa o calor
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
Faça
chuva
calor
o tempo que for
escorre a paisagem
seja
noite
dia
a hora que for
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
de pé ou sentadas
xe "companheiros de viagem" §vão as
pessoas
as pessoas
caladas
faladas
falando
sisudas
risonhas
lendo
meditando
caras cerradas no
olhar ausente
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
tatatata-tatatata-tatatata
Poema - História de Todos os Dias - escrito no comboio Barreiro - Setúbal em 1982.03.18
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