Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

domingo, 25 de agosto de 2019

38 MINUTOS COM NUNO CALVET





PASSEIO PÚBLICO38 MINUTOS COM
NUNO CALVET
“CADA FOTOGRAFIA É, EM CERTA MEDIDA, UMA AUTOANÁLISE”
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PASSOU MAIS DE METADE DA VIDA A FOTOGRAFAR PAISAGENS E PESSOAS, ANÓNIMAS OU NO ESTRELATO. PARA AMÁLIA RODRIGUES FEZ A CAPA DE UM DISCO QUE A MEMÓRIA COLETIVA REGISTOU COM BASE NUMA FOTOGRAFIA: “BUSTO”


ENTREVISTA JOÃO DIOGO CORREIA FOTOGRAFIA TIAGO MIRANDA

Fotografou muito, mas fala pouco sobre essas fotografias. Porquê?
Como dizia o ‘nosso amigo’ Cartier-Bresson, se é necessário falar sobre uma fotografia é porque ela não comunica o que pretende. A não ser que seja uma conversa estritamente estética, sobre produção, montagem gráfica. Sobre o que acontece nela, a imagem propriamente dita, as palavras são supérfluas, são espúrias. Olha-se para a fotografia e é ela que tem de nos dizer o que é real e íntimo.
Não lhe chama arte. Soa-lhe pretensioso?
A fotografia é um tipo de expressão gráfica que tem uma génese mecânica, técnica, e a partir daí toda a conversa que se gera sobre o resultado dessa expressão tende a ser ou muito técnica ou cheia de lugares-comuns e de preconceitos de ordem estética. A partir de certa altura, começa a haver uma separação entre fotografia e outros processos artísticos de origem gráfica (a pintura, o desenho), porque a fotografia começa a ser acessível a todo o ‘bicho careta’. Toda a gente quer fotografar e toda a gente tem uma máquina. Julgam as pessoas que é só carregar no botão e sai uma coisa bonita. Então entramos no campo do bonito, que não tem nada que ver com o lado artístico, criativo, que a fotografia pode encerrar. E que a maior parte das vezes até nem encerra: limita-se a reproduzir aspetos ditos bonitos, interessantes, mas que não têm ligação com a intimidade do fotógrafo, com a sua maneira de ser e de estar. São aparências e às aparências, normalmente, não lhes resta mais nada. Entramos no tempo em que a fotografia começa a ser considerada uma arte, mas uma arte menor. Porque é muito fácil fotografar um pôr do sol, as ondinhas do mar a rebentar. É muito fácil fazer essas coisas e começou a misturar-se essa facilidade em reproduzir imagens ditas bonitas do quotidiano com o lado artístico. Esse lado tem que ver com outros mundos, muito pessoais.
Com o olhar do fotógrafo?
Exatamente. Com a personalidade do fotógrafo, no fundo. Quando uma pessoa faz uma fotografia, não é só ela que está a fotografar um determinado assunto. Está a fotografar-se também a si própria. Cada fotografia é, em certa medida, uma autoanálise. Que depois transpira na imagem que retém, que grava.
E aí já é uma arte?
Pode ser, a partir do momento em que exprime um conjunto de dados de ordem estética conhecidos, mas que não são gratuitos, não são coisas supérfluas. São atributos que estão ligados à personalidade e à capacidade expressiva do seu fotógrafo.
E há coisas a dizer sobre ele? Neste caso, sobre si?
Sobre mim, o que lhe posso dizer? Que tive alturas muito bonitas, outras menos. É uma coisa muito subjetiva.
“JULGAM AS PESSOAS QUE É SÓ CARREGAR NO BOTÃO E SAI UMA COISA BONITA”
Como vive com esta ‘altura’?
Tenho um olhar livre para fotografar aquilo que me interessa. Neste momento, fotografo relativamente pouco, porque comecei a perceber que já tinha fotografado aquilo que ia fotografar outra vez. Estava a repetir-me, a copiar-me a mim próprio. A idade também já não me permite viajar como antes.
O Alto Alentejo, onde vive agora, é fotogénico?
Sim, mas a partir de um certo momento, não apetece andar à procura. Já se encontrou, já está registado. O fotógrafo, às vezes, encontra as coisas, não as procura. Eu há 10 anos fiz um livro sobre o Alentejo, e aí percorri-o várias vezes, mas foi diferente, eu não estava à procura de nada. Estava atento ao que me aparecia à frente.
E o que encontrou?
O Alentejo é um mundo. Tem zonas e aspetos extremamente característicos. Há coisas lindíssimas, insubstituíveis do ponto de vista visual. O que agora trabalho é a composição de fotografias que já fiz. Dá-me muito gozo pegar nessas imagens e construir novos mundos, novas situações, completamente fora de cada uma delas. Isso dá-me muito gozo, entretém-me. E já fiz três exposições dessa forma.
Escolhe-as a partir de um algum critério específico?
Não, não. São imagens que eu imagino. Imaginações sobre imagens. Vejo imagens e imagino outros mundos.
Fotografou o Portugal profundo, mas também artistas consagrados. Foi sempre o mesmo?
Fotografar pessoas é um mundo completamente diferente. No fundo, a pessoa fotografada é-o do ponto de vista da sua personalidade, daquilo que faz. E para isso é preciso conhecer o mínimo daquela pessoa.
Era o que mais lhe interessava?
Interessava-me porque eu privava com aquelas pessoas.
Com a Amália, por exemplo?
Com a Amália foi diferente. Eu fui para a Valentim de Carvalho [VC] depois da tropa. Era um melómano, gostava, e gosto, muito de música, tinha muitos discos. Nessa altura, a Amália não tinha relações profissionais com a casa VC, havia um certo distanciamento do velho Valentim [fundador da editora, em 1914]. Não era que ele não gostasse da Amália, mas não simpatizava, porque ela trabalhava para a concorrência. A certa altura, o Rui [sobrinho de Valentim] conheceu a Amália, apaixonou-se por ela em termos quase maternais. Até dizíamos, a brincar, que só faltava a Amália puxá-lo por uma coleira. E foi aí, através de um homem que já morreu e que foi o principal responsável por eu ser fotógrafo, o Gérard Castello-Lopes. De 15 em 15 dias, havia sessões de fotografia em casa dele. Ele perguntou-me se eu tinha fotografias, eu mostrei-lhe e ele disse-me: “Eh, pá, tu tens é de ser fotógrafo.” E comecei a fazer fotografias para a VC. Não fiz muitas, fiz algumas, como a capa do Alfredo Marceneiro, em que ele está com um lenço e uma beata ao canto da boca. Mas não fotografei logo a Amália. Acontece que, finalmente, ela começa a gravar para a VC [1962], numa altura em que estava sempre muito pouco disponível, era muito difícil. Havia um busto de um escultor [Joaquim Valente] e o Rui perguntou-me se eu podia fotografá-lo. Eu fui e, por acaso, saiu bem. É uma vulgar imagem feita com praticamente nenhuns meios. Levei o busto para minha casa, pu-lo em cima de uma mesa, com um pequeno projetor e utilizando uma parede branca para refletir o busto. Mais por acaso do que por intenção, saiu bem. Ainda tenho esses negativos.
Foi dos seus trabalhos mais marcantes? Ou mais conhecidos?
Eu acho que não. O disco teve muito sucesso, talvez por isso a fotografia tenha ficado tão conhecida. Ainda fiz outras para discos. Há um disco do Vinicius de Moraes que também tem uma fotografia minha. Foi feita no próprio edifício da Philips. Havia uma sala de reuniões, onde ele foi dizer poesia. A sala até nem era muito grande, mas tinha boa iluminação, e fiz lá uma fotografia dele a dizer poesia. Depois nos espetáculos fiz várias. Do Chico Buarque também.
Depois deixou de as fazer?
Quando fui para a Philips, já muito embrenhado na fotografia profissional, comecei a fazer trabalhos para publicidade. Tinha de viver, tinha família, três filhos, a minha mulher não trabalhava, tinha de ganhar o pão para a boca da miudagem. Nessa altura ganhava-se bom dinheiro. Mas nunca deu para enriquecer, porque o que se ganhava gastava-se logo em equipamento. Depois uma grande parte da fotografia que se vê na publicidade, nas revistas, passa a ser comprada a estúdios, a grandes bancos de imagem, que antes não existiam. E passa a pagar-se uma ninharia.
Que relação tem agora com esse mundo?
Desinteressei-me completamente. Comecei a fazer fotografia por gosto. Mas a partir de uma certa altura isso acabou.
De onde tira agora prazer?
Tiro sobretudo das exposições. Mas agora não tenho planos nenhuns. Só quero gozar com as imagens que tenho e com a família. Não tenho idade para andar aí de ‘ceca para meca’ com o material às costas. Chegar onde cheguei, assim como estou, já é uma aquisição bastante boa. A maior parte das pessoas da minha idade já cá não está.

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