Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Exposed - Voyeurism, Surveillance & the Camera - As imagens que nunca devíamos ter visto


Ípsilon



Exposed - Voyeurism, Surveillance & the Camera

As imagens que nunca devíamos ter visto

18.08.2010 - Joana Amaral Cardoso, em Londres


Somos todos mirones, acusam as mais de 250 imagens de vigilância e voyeurismo reunidas em "Exposed - Voyeurism, Surveillance & the Camera". Parece a história desta era em que estamos todos expostos no Facebook, mas não: é a história da curiosidade humana tal como ela nos foi sendo contada pelo menos desde a Bíblia. Até 3 de Outubro, a Tate Modern é o buraco da fechadura 
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Há um vínculo qualquer entre a fotografia da criança que corre, corpo franzino queimado pelo napalm, no Vietname de 1972, e a imagem de uma Paris Hilton chorosa a caminho da prisão. Há um vínculo qualquer entre as imagens de um linchamento no final do século XIX nos EUA e os instantâneos digitais de soldados americanos montados em presos iraquianos em Abu Ghraib. Há, decididamente, um vínculo entre as imagens de vigilância dos aviões U2 que desencadearam a crise dos mísseis de Cuba na Baía dos Porcos e o programa de apanhados "Candid Camera".
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No primeiro caso, o vínculo é o fotógrafo, Nick Ut. No segundo, o vínculo é o propósito: a imagem, tal como as vítimas do acto, é um troféu, o símbolo de uma conquista. No terceiro, é tudo uma questão de vigilância.
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"Exposed - Voyeurism, Surveillance & the Camera" está na Tate Modern, em Londres, até 3 de Outubro. Depois, as mais de 250 imagens que varrem a história da vigilância e do voyeurismo do século XIX ao século XXI migram para o Museum of Modern Art de São Francisco, ao encontro da curadora que a concebeu inicialmente, Sandra S. Phillips, responsável pelo departamento de fotografia contemporânea da instituição.
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Esta ponte Reino Unido-América não é só um itinerário casual. Da potente mistura de erotismo, curiosidade, segredo, violência, celebridade, memória, vigilância (e concomitante ausência de privacidade) que resulta destas imagens, uma coisa sobressai: esta é uma realidade muito anglosaxónica, com incursões calculadas na Ásia e na América Latina. A cortina de ferro, o comunismo, o colonialismo, África, pouco disso espreita por entre as frestas de "Exposed".
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Mas "Exposed" conta uma história, uma história de desconforto e de espelhos em todo o lado, "watching you".
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Voyeurs desta história: Cartier-Bresson, Helmut Newton fetichista, Mapplethorpe e Patti Smith, Nan Goldin apaixonada pela sua família de amigos, Weegee excitado com Marilyn, Alison Jackson a forjar rainhas de Inglaterra ou Nicholsons num dia de raiva, Yoko Ono, Guy Bourdin, Robert Frank, Merry Alpern ou Susan Meiselas. E Larry Clark "high on speed culture", Bruce Nauman às escuras no Novo México, Richard Avedon enamorado das cicatrizes de fama de Andy Warhol, Mario Testino bruto num anúncio para a Gucci. Mais a morte de Diana, o oficial vietcong executado, Jacqueline em fase Onassis em fuga no Central Park. Os poços petrolíferos em chamas na primeira Guerra do Golfo. Elizabeth Taylor e Richard Burton apanhados na piscina em férias. O filme Zapruder como prova da horrível morte de JFK.
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Nós?
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É uma sequência de imagens voraz, uma experiência que mistura o prazer com o desconforto de ver coisas que nunca deveriam ter sido vistas. Há as imagens de bisbilhotice, as de titilação erótica, as de projecto, os murros no estômago. Há a brutalidade que fez Susan Sontag, confrontada com imagens da Segunda Guerra Mundial e do Vietname, recordar em "On Photography": "Uma vez vistas estas imagens, encetámos o caminho para ver mais - e mais. As imagens trespassam. As imagens anestesiam".
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Ver "Exposed" é por vezes difícil, pelo menos sem antestesia. Faz-nos pensar, como explica o comissário britânico da exposição, Simon Baker, na moral do espectador, na erosão da privacidade, na inversão do público e do privado na era pós-Habermas e pós-McLuhan, a era do sr. Facebook. Que nos diz que o mundo é melhor se partilharmos tudo: um mundo de paredes transparentes e fotografias para todos.
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Ao telefone, Simon Baker admite que sim, que há elementos desconfortáveis na mostra que marca a sua estreia como comissário de fotografia da Tate. Dá como exemplo "The Park", de Kohei Yoshiyuki, uma série de fotografias nocturnas de casais que escolhiam os parques de Tóquio para fazer sexo rodeados, com ou sem o seu conhecimento, por grupos de mirones. "Nos anos 70, no Japão, eram mostradas no escuro. Davam-nos uma lanterna e encontrávamos assim as imagens, de uma forma muito teatral. Há difíceis questões éticas, e mesmo legais, suscitadas por este material".
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Mas não é só o sexo, nem é só a violência de um homem esborrachado no chão. É a maneira como as vemos. "Habituámo-nos a ver imagens de violência e sexo, mas acho que não nos habituámos a pensar muito sobre elas", diz-nos Sandra Phillips. Sobretudo, não nos habituámos a questionar a nossa participação, até sermos confrontados com imagens como as de Susan Meiselas, que fotografa o público de um espectáculo de "striptease" e não as próprias "strippers". Meiselas, sublinha a curadora, procura ultrapassar "o fetichismo para pensar em quem está a olhar, como está a olhar e o que significa olhar". "Ela faz-nos questionar a nossa participação naquele processo", enfatiza.
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Ou seja, não somos nós no retrato. Mas somos nós como espectadores. "Talvez seja por isso que a exposição faz as pessoas sentirem-se desconfortáveis".
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"Exposed" não é fácil, portanto, embora lhe faltem as imagens difíceis de Abu Ghraib, que o Centro Internacional de Fotografia de Nova Iorque mostrou em 2004. São imagens de um voyeurismo que nada tem de novo. Imagens de tortura, instantâneos de esmagamento cultural, tão marcantes quanto as da crise de mísseis de Cuba, e o verde tremido das imagens nocturnas dessas mesma guerra. Nenhuma dessas imagens está na Tate, explica Sandra Phillips, porque não são "verdadeiramente interessantes enquanto fotografias" e "[porque] as vimos demasiadas vezes": é "provavelmente mais provocador" recuar até algumas fotografias do Vietname que são "francamente mais brutais", e sobretudo mais esquecidas.
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Simon Baker discorda: "Quando faço visitas guiadas, acabo sempre por recorrer a Abu Ghraib para explicar as imagens de linchamentos, porque elas estão cheias de pessoas orgulhosas do que fizeram. As imagens de Abu Ghraib também, e tiveram uma circulação exactamente como elas".
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Afinal, as imagens mais reconhecíveis pelo grande público servem como prancha para fazer ressaltar as fotografias produzidas por artistas com a intenção de nos mostrar tudo: como Nan Goldin, na sua recentemente digitalizada "The Ballad of Sexual Dependency", em que de forma pungente nos mostra, em cerca de 700 imagens, a sua vida através da vida dos amigos. "Há a noção comum de que o fotógrafo é por natureza um voyeur, o último a ser convidado para a festa. Mas eu não estou na festa sem ser convidada, esta é a minha festa. Esta é a minha família, a minha história", explicou a artista.
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Nação paparazzi
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A ligação do voyeurismo com a arte é antiga. Na Tate, imagem de Henri Cartier-Bresson com Charles Henri Ford à saída de um urinol de Paris; 40 anos antes, Degas fotografado por Giuseppe Primoli nos mesmos preparos. Christian Boltanski, lembra-nos a imprensa britânica a propósito de "Exposed", está a transmitir tudo o que faz, em directo, para o bunker de um coleccionador, e continuará a fazê-lo até morrer. Merry Alpern e os seus múltiplos projectos (exemplos vários na Tate Modern): a levar a sua máquina para os provadores de lojas ("Shopping"), a fotografar bordéis em Wall Street a partir de um quarto do outro lado da rua ("Janela Indiscreta", anyone?). Sophie Calle, feita empregada de hotel para fotografar os pertences dos hóspedes na sua ausência.
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E claro, Yoshiyuki e a sua estranha obra no parque: "A minha intenção era captar o que se passava nos parques, por isso eu não era um verdadeiro voyeur. Mas acho, de certa forma, que o acto de tirar fotografias é em sim algo voyeurístico. Por isso talvez seja um voyeur, porque sou fotógrafo".
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Warhol trabalhou a cara assustada de Jaqueline Kennedy e a imagem de mulheres a saltarem de janelas de hotéis em chamas (algum dia alguém se apropriará, do mesmo modo, do homem que caía do World Trade Center a 11 de Setembro de 2001?). Foi também um dos primeiros a adoptar a câmara de filmar portátil da Sony, Portapak (1967). E depois foi fotografado, como num círculo perverso que se completa, por Richard Avedon, exibindo o esplendor das suas cicatrizes na ressaca do ataque de um fã.
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A nação paparazzi (vulgo Califórnia, país com capital em Hollywood) preocupou-se com isto e gerou legislação tonitruante: o Estatuto Anti-Paparazzi tenta dificultar a publicação de fotos furtivas e controlar a pulsão humana do clique. Que entretanto se tornou ainda mais obsessiva graças aos telemóveis com câmara, à Internet.
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A cronologia que abre as portas da exposição (e que reproduzimos parcialmente nestas páginas) diz-nos que está tudo ligado. O panóptico de Bentham e os "Apanhados" de Joaquim Letria. O YouTube e o Google Earth. Orwell, claro. A presença do olhar voyeurista é uma herança cultural desde a Bíblia. Como sociedade, sempre fomos voyeurs - nos "boudoirs", nas cavernas, nos primeiros filmes pornográficos criados logo após a invenção da câmara de cinema.
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Ao levar o nosso olhar, ao longo de 13 salas, de meados do século XIX aos dias de hoje, "Exposed" coloca-nos perante o paradoxo original da fotografia: era inevitável que esta arte servisse estes fins, certo? "Penso que muita fotografia, talvez até o próprio meio, é na verdade uma zona cinzenta, sem moralidade, apesar de presumirmos que diz a verdade", aponta Sandra Phillips.
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"Desde muito cedo a fotografia foi usada para produzir imagens mais negras - controlo estatal, pornografia, ciência, tipificação racial. Assim que se tornou barata, foi usada para [partilhar] quantidades maciças de pornografia. Algo que tem este potencial de massas pode facilmente atingir o mínimo denominador comum", corrobora o comissário da Tate Modern.
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Ver e ser visto
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As imagens de "Exposed" estão organizadas em cinco áreas: fotografia de rua, imagens sexuais, perseguição de celebridades, fotos de morte e violência, vigilância. Conjugamos o verbo fotografar no contexto "Celebrity & the Public Gaze": eu disparo, tu encolhes-te, ele foge; nós espreitamos, vós julgais, eles vêem. Nada mais evidente do que numa situação paparazzi: o caçador e a presa. A imagem de Jacqueline Onassis a correr pelo Central Park, perseguida por Ron Galella, paparazzo obcecado que acabou por ser obrigado judicialmente a deixar a viúva de Kennedy em paz: "What makes Jackie run?", 1971.
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"A fome humana de ver o proibido não mudou [desde os tempos bíblicos]. As tecnologias que o facilitam sim", escreve Sandra Phillips. "Olhamos para sexo e morte com a mesma curiosidade bisbilhoteira, sabendo que outrora foram visões privilegiadas. Fizemos toda uma cultura de celebridade [que começa, em termos fotográficos, no início do século XX] evoluir em torno da ambivalência entre o público e o privado." Mais, lê-se no catálogo de "Exposed": "A fotografia inventou a cultura de celebridades moderna", em que o público e o privado se misturam para construir uma terra de ninguém ambígua em que Angelina Jolie - glamorosa, aborrecidíssima, zangada, feliz, só, acompanhada - está sempre em fuga.
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Hoje, toda a gente tira fotografias, mas nem todos são fotógrafos. "Os fotógrafos sempre se distinguiram da massa, mesmo desde o século XIX. Não é fácil tirar uma boa fotografia, é fácil tirar uma fotografia. A multiplicação de aparelhos pode aumentar o número de imagens tiradas aleatoriamente, mas não vai expandir a fotografia como prática", reflecte Baker.
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E o público? É neutro como a Suíça? "É como se já não visse o espaço público como público. É interessante que, quando as vê num museu, o público se pergunte se é permitido perseguir pessoas nas ruas. Talvez ache que o espaço das celebridades é uma excepção em relação ao espaço público".
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Dizíamos no início que esta exposição é desconfortável. Para alguns, talvez, mas enquanto sociedade vivemos num limbo. Queremos ver tanto quanto queremos ser vistos? Tudo o que mostramos e devoramos sobre o outro indicaria que sim.
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"É uma discussão interessante nesta era das notícias 24 horas - o que precisamos de ver? O que é que nos deve ser mostrado? Esta manhã ouvi uma notícia interessante: um dos problemas da mancha de petróleo [no golfo do México] é não haver imagens suficientes do petróleo [risos]. Fugas muito menores geraram um impacto visual muito maior. Certos eventos parecem desaparecer quando não são acompanhados por imagens", rememora Baker.
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Hoje, escreve Sandra Phillips no catálogo, "a nossa cultura parece estar a acomodar-se à vigilância e já não considera o voyeurismo o perigo que era no passado". Nós? Essa massa, 500 milhões no Facebook, que vê "Exposed" e se fotografa logo a seguir para partilhar o momento online. Um grupo de estudantes espanhóis da Tate Modern. O Ípsilon, furtivamente, segue-os. O varandim com a magnífica vista para a City (a foto já cá canta, no telemóvel) está soalheiro. Quatro raparigas unem-se em torno da quinta, que salta de pernas bem no ar para as máquinas das amigas. Momentos depois, a fotografia estará num qualquer site, numa rede social. O voyeurismo nunca foi tão imediato.
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Uma história de vigilância...
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1785 - Jeremy Bentham cunha o Panóptico, o dispositivo prisional em que o observado não sabe de onde é visto pelo observador
1942 - É instalado,  na Alemanha, o 1º sistema  de CCTV [closed-circuit television]
1948 - O programa de "apanhados" "Candid  Camera" estreia-se nos EUA
1949 - George Orwell  publica o romance distópico "1984"
1954 - Estreia-se "Janela Indiscreta", de Alfred  Hitchcock
1960 - Federico Fellini  cunha o termo "paparazzi"  em "La Dolce Vita"
1962 - Imagens de  vigilância captadas por aviões U2 desencadeiam a crise  de mísseis de Cuba
1963 - Abraham Zapruder filma  o assassinato de John F. Kennedy
1973 - Um dos primeiros exemplos de "reality tv",  "An American Family",  estreia-se nos EUA
... e de voyeurismo
1990 - A Guerra do Golfo inaugura o ciclo noticioso  de 24 horas
1995 - Timothy McVeigh,  o bombista de Oklahoma,  é identificado graças a imagens de CCTV
1997 - Diana morre num acidente de viação quando era perseguida por paparazzi em Paris
1999 - Estreia-se na Holanda  o primeiro "Big Brother"
2001 - Na sequência dos atentados de 11 de Setembro, entra em vigor nos EUA o Patriot Act, que reduz as restrições à vigilância dos cidadãos pelas forças de segurança
2004 - Fotos de soldados  de Abu Ghraib tornam-se  os "souvenirs" da guerra  no Iraque
2005 - O YouTube é lançado
2007 - É lançada a opção  Street View no Google  Earth
2008 - É criada a  câmara Thru Vision,  que filma  através de tecidos e paredes
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