COLUNAS Terça-feira, 16/12/2008 Recortes da paisagem: a fotografia de Rei Santos Jardel Dias Cavalcanti "Talvez ele ame o edifício apenas à distância e nunca de perto; talvez ele ame apenas criá-lo, e não viver nele." (Dostoiévski) A arte moderna esfacelou a realidade quebrando o espelho que buscava refleti-la para mostrar que, se existe a possibilidade de alguma forma de composição, que esta seja montada com os cacos que sobraram do espelho destruído. Exemplos desse tipo de arte se encontram nas obras de Picasso (Guernica), Stravinsky (A sagração da primavera), James Joyce (Finnegans Wake), Man Ray (foto-montagens), Gertrude Stein (romances cubistas), Eisenstein (O encouraçado Potenkin), para ficar apenas com alguns nobres exemplos. A famosa frase de Marx "Tudo o que é sólido desmancha no ar" se tornou pedra de toque para se entender a modernidade. A idéia da totalidade tornou-se conceitualmente inviável e com ela também qualquer tentativa de construção metafísica a partir da investigação do "real". O que há de mais radial do que pôr em xeque aquilo que funda a própria existência da linguagem da arte, isto é, o mecanismo analógico de vinculação entre imagem e realidade? Entre artista e realidade circunstancial interpõe-se a partir das experiências modernistas a própria estrutura da linguagem, sendo esta a única forma de realidade que importa ao criador. A obra de Rei Santos, uma coleção de fotos que ele chama de Recortes da paisagem, talvez nos faça pensar no tipo de imagem que um artista pode ainda fazer da cidade a partir de uma experiência artística moderna. A palavra "Recortes" funciona como "cortar", no sentido mesmo de separar uma parte do todo através de incisões; no caso da fotografia, de enquadramento de partes. E é partindo dessa noção que o artista constrói um espaço em que a linguagem não oferece transparência imediata: o significado das fotos talvez resida justamente no obscurecimento das relações entre imagem e referentes circunstanciais. Rei tem um olhar particularmente fértil quando se trata de cortar pedaços da cidade e encontrar nestes cortes um grau máximo de relações possíveis. Relações formais, diga-se de passagem. São linhas que se encontram com volumes, são cores que se interligam a desenhos espaço-geométricos e são luzes que dialogam com todas as possibilidades formais de objetos ou estruturas arquitetônicas. A importância atribuída às relações concretas mensuráveis que existem entre os objetos aparentemente distanciados e estranhos uns aos outros, o saber que as linhas não definem apenas o limite das superfícies contínuas, mas que a interseção dos planos se prolonga e projeta no vazio, dando-lhe forma, constitui, decerto, o princípio dessa fotografia. O motivo inicial das fotografias de Rei Santos é a cidade. Mas apenas inicialmente. A transfiguração fotográfica, definida pelas escolhas dos cortes, anula qualquer idéia de retrato da cidade. Não há dúvida nesse sentido: se existe uma arquitetura nestas fotos é a arquitetura das formas relacionadas entre si, numa busca de um equilíbrio bem diferente e indiferente ao desequilíbrio da própria cidade. A ausência conquistada da cidade pela linguagem é sua presença exilada na forma da geometria. A cidade se perdeu (desapareceu da obra), mas foi conquistada pela cidadania da arte, tornando-se, através dos recortes, forma pura. Segundo Paulo César Boni, "se engana quem pensa que ele é apenas mais um 'fotógrafo de prédios'. Rei é um misto de ciência e poesia. Para seu lado ciência, busca embasamento teórico em estudiosos de cidades, como Gordon Cullen, Italo Calvino, Kevin Lynch e Nelson Brissac Peixoto, e em fotógrafos da paisagem urbana, como Cristiano Mascaro, Eugène Atget, José Yalenti e Paulo Pires. Para o lado poesia, faz flâneurs pela cidade, olhando para o alto, para os lados, para frente e para trás, num exercício constante de novos olhares. A sisudez da pesquisa e a leveza do flâneur contribuíram, respectivamente, para a seriedade e a criatividade de seu trabalho: 'Confesso que, quando comecei a desviar o meu olhar fora do eixo visual comum (horizontal/vertical), deparei-me com um mundo riquíssimo de formas e perspectivas incontempláveis ao modo cartesiano de ver'.". Ficamos imaginando como o fotógrafo andarilho percorre a cidade em busca de uma coisa quase que invisível aos olhos dos passantes distraídos. Só ele, o artista, como um flâneur, livre do tempo do trabalho, no ócio criativo de sua contemplação, passeia os olhos sobre os detalhes mínimos que configuram geometrias insuspeitadas, percebidas através das relações entre ferro, cimento, cor, linhas e luz. Só seu olhar corre vertiginoso como a própria geometria que observa. E o registro desta espacialidade virtual é, enfim, revelada para o espectador pelas lentes de sua seletiva câmera. Da tranqüilidade de uma linha reta que se firma sobre um muro ao desvario de sinais de trânsito que dialogam com um céu profundo cortado por fios elétricos, da abertura de janelas até as cores de paredes que modulam composições geométricas de rara beleza, de jogos de cores captados em paredes que mais parecem telas de Mondrian, de sínteses minimalistas e traços singelos de estruturas de ferro... de tais elementos se compõem as fotos que são possibilidades de encontros entre espectador e imagens registradas/recolhidas pela sensibilidade de Rei Santos. Na contracorrente de uma arte desnorteada, assimétrica, angustiada, como a dos primeiros modernistas, Rei Santos elabora uma utopia da forma equilibrada, harmônica, único lugar onde a cidade pode ser ainda percebida como possibilidade de segurança. A cidade moderna é um grande labirinto e "o que denominamos caminho dentro dessa cidade não passa de vacilação" (Kafka). Contra essa cidade, Rei Santos estabelece outra, virtualmente organizada, segundo regras de relações possíveis entre formas e objetos, cidade ancorada na linguagem da arte, lugar máximo da experiência universal. Para ir além Rei Santos mantém uma exposição virtual de Recortes da paisagem no seu Orkut. Vale a pena conferir. Jardel Dias Cavalcanti Londrina, 16/12/2008 |
Castro Barroso Gato Nogueira - Blog Photographico - lembrança da moça do Alentejo
Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui
“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)
«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973
Sem comentários:
Enviar um comentário