Um pescador de Viana do Castelo no século XX - Foto Roriz
O centenário estúdio passou de geração em geração, tal como o amor por uma arte cada vez menos minuciosa e mais digital
21 de Agosto de 2011 às 00:00
"Toda a vida foi "fotógrafo de fato, gravata e lenço no bolso". E ao dizê-lo, Joaquim Roriz dá-lhe ênfase de ‘herói de capa e espada’, com direito a código de honra e traje a condizer, já lá vão 64 anos de ‘métier’. Naquele tempo "era assim". E Joaquim Roriz honrou o seu tempo quando, órfão de pai, começou a trabalhar com 10 anos no estúdio de fotografia do tio-avó, a Fotografia Roriz, a mais antiga de Viana do Castelo e uma das lojas míticas do País dentro do ramo. Abriu as portas há cem anos e mantém-se às custas da dedicação, senão verdadeiro amor, de três gerações (a caminho da quarta) da mesma família.
A Fotografia Roriz fica em pleno centro histórico de Viana do Castelo, num prédio antigo da rua Gago Coutinho, outrora a mais chique e movimentada da cidade das noivas. Há 100 anos o edifício foi alugado por Domingos Duarte Roriz, o seu fundador, por 1$50, que era "muito dinheiro para a época". O rés-do-chão era reservado ao negócio e nos dois pisos superiores vivia o imenso clã Roriz. Foi numa dessas janelas que poucos anos antes Domingos Roriz pôs a vista em cima da "mais bela moça de Viana" e do outro lado do passeio jurou casar com ela. Assim o fez, pouco antes de inaugurar a loja, que à época era um dos raros estúdios de fotografia do Minho.
NEGÓCIO DE FAMÍLIA
"A loja ‘do Roriz’ sempre foi um negócio familiar e foi assim que as pessoas se habituaram a ele. Antigamente, quando estavam todos a almoçar, quase que o cliente entrava pela sala adentro. Interrompia-se então a refeição para ir atender o cliente e depois voltava-se ao prato", recorda agora o sobrinho-neto, Joaquim, também ele já com uns avançados 74 anos. Mas como faz o que gosta, continua a trabalhar. Com a cumplicidade da tecnologia que, hoje em dia, torna tudo mais fácil.
Poucos se podem gabar de tamanha longevidade no meio. E a proeza dos Roriz talvez só conheça ‘rival’ na história da fotografia em Portugal na madeirense Photographia Vicentes, estúdio de fotografia fundado por Vicente Gomes da Silva em 1848, que também pertenceu à mesma família durante quatro gerações. Hoje está convertida num museu. Ou a Foto Lisboa, que por acaso se situa em Ovar, distrito de Aveiro, fundada em 1892, e que continua igualmente nas mãos da mesma família.
ARTE MINUCIOSA
Joaquim ainda é do tempo em que o processo que levava à cristalização da imagem em fotografia era todo feito à mão e exigia alma de artista. "Comecei a fotografar com máquina de pau e lentes de vidro. Os trabalhos eram muito demorados. Tudo era feito à mão. As fotografias para um documento, por exemplo, podiam demorar dois meses a ficar prontas. Os retoques demoravam também muito e eram trabalhos extremamente minuciosos e complicados, sobretudo se atendermos que estamos a falar de um tempo em que não havia luz nem água. Trabalhava-se com a claridade que vinha da clarabóia do prédio durante o dia e, à noite, à luz da vela...", relembra.
SINAIS DOS TEMPOS
Nos últimos 64 anos muita coisa evoluiu nesta arte e a todas as mudanças Joaquim se adaptou com facilidade. "Nunca tirei um curso de fotografia mas nunca tive qualquer dificuldade em lidar com o progresso, nem mesmo quando chegou o digital", afiança.
Com a técnica muita coisa mudou na profissão. São já raros os que recorrem a um serviço profissional de fotografia para fazer as tradicionais fotos "tipo passe" ou os postais para enviar à família no Natal ou nos aniversários. "O governo, ao acabar com as fotos nas escolas, ao introduzir as imagens digitalizadas na documentação, foi tornando este negócio difícil. Além disso, nos dias de hoje, qualquer amador faz as fotos e descarrega num computador. Só em 2008 fecharam 760 estúdios dos 2800 que então existiam. O negócio não está fácil. Recorre-se a um serviço profissional sobretudo para eventos, casamentos e baptizados", confidencia.
Mas Joaquim não se pode queixar, logo ele que é um fotógrafo de eventos sociais e casamentos por excelência, nos quais nunca tira a tal gravata nem o casaco, "mesmo que façam 40 graus à sombra", e que vive e exerce na cidade das noivas. "Fiz milhares de casamentos", conta. E à conta disso até recebeu o prémio Kodak para Melhor Fotógrafo Noivas do mês.
Desses dias tão especiais para quem o contrata, guarda um manancial de histórias para contar. Como aquele dia em que o noivo, "um emigrante", não apareceu na igreja. "Fui a casa da noiva fotografá-la e depois segui para a igreja. Esperei, esperei e esperei pelo noivo e este nada de aparecer. Comecei a sentir as pessoas a agitarem-se, a andarem para a frente e para trás, a falarem umas com as outras. Mas nada perguntei. Até que finalmente alguém me veio dizer que ele fugira para França, talvez assustado com a responsabilidade que iria assumir".
Joaquim ficou obviamente tocado pela notícia e voltou a casa da noiva, que "chorava copiosamente, agarrada às alianças". O pai resolveu logo a questão. "Virou-se para os presentes e, num espírito louvável para a situação, disse: ‘Como agora já está tudo pago, vamos todos almoçar’. E assim foi. Quatro dias depois, o rapaz, arrependido, voltou a Viana e consumou-se o casamento. De manhã, para 20 pessoas. Mas casaram, isso é o que interessa", lembra com um sorriso.
ACERVO HISTÓRICO
Mas a história da Fotografia Roriz – que já está a ser continuada pelo filho de Joaquim Duarte – não se faz apenas de celebrações familiares.
Aos Roriz se deve também uma boa parte do registo histórico fotográfico de Viana do Castelo e das suas rápidas transformações ao longo do último século.
No mesmo prédio da Gago Coutinho guarda-se um arquivo em negativo de vidro de vários formatos com mais de 22 mil fotografias. Mas se a estes juntarmos a película, a preto e branco ou a cores, ultrapassam as 160 mil imagens que documentam a história de um País e de um povo.
Neste acervo fotográfico estão, por exemplo, registadas as manobras de construção nos anos 70 do mítico e polémico Prédio Coutinho, cuja demolição está iminente, ou os primeiros trabalhos nos estaleiros de construção naval e, sobretudo, a transformação de um lugar predominantemente rural num dos mais importantes centros urbanos e económicos do Norte do País.
Muitas outras fotografias destacam as ruas e vielas do centro histórico, das mais belas e bem preservadas do País, cujas fachadas trabalhadas ou embutidas por painéis de azulejos ricos em traço e cor constituem um verdadeiro compêndio da história da arquitectura portuguesa, com destaque para os estilos manuelino, barroco, renascimento e Art Déco.
A 20 de Janeiro de 2012, no aniversário da elevação de Viana a cidade, o município irá entregar aos descendentes de Domingos Roriz a Medalha de Instituição de Mérito.
Entre os vários fotógrafos da família, uma sobrinha de Joaquim fugiu à regra: é a coreógrafa e bailarina Olga Roriz, que viveu sobre a loja da rua Gago Coutinho até se mudar com a mãe e a irmã para Lisboa, aos 4 anos (para ingressar na escola de balé de Margarida Abreu), mas à qual voltava todas as férias de Verão.
"Lembro-me de ficar horas a fio no quarto escuro com o meu avó Domingos, a ver nascer as fotografias, pois para uma criança ver um bocado de papel transformar-se numa imagem era algo mágico. Ou de o ver retocar chapas e fotografias, algo que eu própria fiz quando era um pouco mais velha para me entreter", recordou a coreógrafa sobre as doces memórias de infância.
VIANA DO CASTELO EM FESTA PARA ASSINALAR CENTENÁRIO
Como deveria acontecer em todas as histórias com final feliz, a riqueza documental que o fundador e os seus sucessores ofereceram ao município de Viana resultou num sentimento de gratidão oficial. A festa desceu à rua Gago Coutinho e, tal como faziam os clientes no início do século XIX, entrou pelo estúdio adentro.
A Câmara Municipal de Viana assinalou o centenário com a oferta de uma placa comemorativa de 80 centímetros, descerrada à porta do edifício no início do mês, e que agora faz Joaquim contemplar a entrada da loja à qual dedicou uma vida inteira com "orgulho redobrado". O resto da sensibilidade guarda-a para a fotografia, pois "não é por acaso que tanto se assemelha à Sétima Arte".
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