Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Tiago Rebelo ~ A fotografia, a rapariga e o fotógrafo


Correio da Manhã

Breves histórias

“Ela vira-se para trás, ele baixa a máquina, encolhe os ombros (...) Não resisti, diz.”
01 Abril 2012 
Por:Tiago Rebelo, Escritor (breveshistorias@hotmail.com)

Ela tira uma foto a uma foto de uma mulher em tamanho natural.

Ele deambula pelos corredores da galeria. Não é dia de vernissage, é somente um dia qualquer e tem de fazer uma reportagem da exposição de fotografia para o jornal onde trabalha.

Nisto, dá com ela à sua frente. Desloca-se no espaço em redor da fotografia que a interessa analisando--lhe os ângulos com uma câmara à frente do rosto. A roupa que ela usa é desportiva, uma saia comprida, ténis. A roupa da mulher do retrato que ela observa é um vestido comprido. A figura física das duas é semelhante, a posição também. Ele pára a observá-las, a mulher real e a foto. Fascinado com as similitudes, levanta a máquina, tira-lhes uma fotografia. Ela vira-se para trás, ele baixa a máquina, encolhe os ombros, faz uma expressão comprometida. Não resisti, diz. Ela ri-se, não faz mal, responde.

No dia seguinte ela sai de casa, passa pelo quiosque, compra o jornal. Dali a pouco senta-se numa esplanada e pede um café, folheia o jornal e, ao virar a página, surpreende-se com uma grande fotografia sua a tirar uma fotografia a uma fotografia. Leva a palma da mão à boca, espantada, olha instintivamente em redor, passa a página depressa quando a empregada se aproxima, embaraçada. Não saberia o que dizer se a mulher a reconhecesse no jornal. A empregada deixa-lhe o café, vai-se embora. Ela volta atrás a página para se ver melhor. Sente-se corar, envergonhando-se sozinha. É tímida, nunca tinha aparecido no jornal, não percebera que era para isso que o fotógrafo desconhecido a retratara.

Passou mais de um ano. Ela volta à galeria e percorre uma exposição de foto-reportagens e, de repente, vê novamente a fotografia do jornal, agora em tamanho natural. Fica ali especada, perplexa, sem palavras. Vê-se que o fotógrafo a achou muito bonita, diz alguém atrás de si. Ela vira-se para ver quem é o desconhecido que fez o comentário. Abana a cabeça a rir-se, desconcertada. Foi um fotógrafo que me apanhou à socapa, diz, nem sei quem é. Mas olhe que ficou muito bem, diz ele, e é uma fotografia premiada. Tem uma máquina na mão direita, segura-a com descontracção, como se estivesse habituado a transportá-la. Não resisto, diz, tenho de lhe tirar uma fotografia a ver a sua própria foto. Posso? Ela solta uma gargalhada fugaz, divertida, encolhe os ombros, por que não? Tire, é mais uma.

Na manhã seguinte, cumpre a sua rotina diária: compra o jornal e vai lê-lo a tomar o café. Vira a página e não quer acreditar no que vê. Lá está ela de novo, fotografada na véspera. Só então percebe que estivera a falar com o autor da primeira fotografia e nem o reconhecera.

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