Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

terça-feira, 21 de julho de 2009

Trovas para serem vendidas na Travessa de S. Domingos - António Gedeão

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O repórter fotográfico
foi ver a fuzilaria.
Ganhou o prémio do ano
da melhor fotografia.

Notícias não confirmadas
informam, de origens várias,
que as tropas revolucionárias
recentemente cercadas
acabam de ser esmagadas
com perdas extraordinárias.

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Na redacção do jornal
corre tudo em sobressalto.
A hora é sensacional.
Toda a gente dormiu mal,
gesticula e fala alto.

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Passageiros recém-chegados
do lugar da revolução
viram dúzias de soldados
prontos a ser fuzilados
e muitos já arrumados
e amontoados no chão.

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Agora que se anuncia
já estar regulado o tráfico,
inda mal rompera o dia
foi ver a fuzilaria
o repórter fotográfico.

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Vá lá, vá lá, felizmente,
felizmente que ao chegar
inda havia muita gente
que estava por fuzilar.

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Numa ridente campina
de papoilas salpicada,
um sol de lâmina fina
cortava a densa neblina
da metralha disparada.

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Berrando como vitelos
a malta dos condenados
avançava aos atropelos
e arrepanhava os cabelos
com gestos alucinados.

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O repórter já suava,
não tinha mãos a medir;
ora a máquina carregava,
apontava e disparava,
ora no chão se agachava,
pulava e gesticulava
com afanosa presteza.

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Há empregos, com franqueza,
nem haviam de existir.
A um tipo de mãos nojentas
que aos berros sobressaía
gritando frases violentas,
focou-o mesmo nas ventas
no momento em que caía.

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Mas o melhor não foi isso.
O melhor foi uma velhota
que pôs tudo em rebuliço.
Rápida como um rastilho,
em convulsivos soluços,
foi estatelar-se de bruços
sobre o corpo do seu filho.

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«Meu menino, meu menino!
Valha-me a Virgem Maria!
Que vai ser o meu destino
sem a tua companhia?!

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Mataram-me o meu menino!
Filho do meu coração!
Que vai ser o meu destino
sem a tua protecção?!»

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Nunca uma cena de horror,
Uma tragédia tão viva,
tão grande e expressiva dor,
alguém teve ao seu dispor
defronte duma objectiva.

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Era uma face crispada,
um olhar perdido e louco,
uma boca de xarroco
em lágrimas ensopada.

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Foi uma sorte, realmente.
Um desses casos notáveis,
bestiais e formidáveis
que acontecem raramente.

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Aquelas faces crispadas
correram pelo mundo inteiro
nas revistas ilustradas,
em tiragens esgotadas
que deram muito dinheiro.

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Com aquele sentido humano
da justiça e da harmonia,
o repórter todo ufano,
ganhou o prémio do ano
da melhor fotografia.

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Máquina de fogo, 1961

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