Tempo Social
Print version ISSN 0103-2070
Tempo soc. vol.21 no.1 São Paulo 2009
doi: 10.1590/S0103-20702009000100014
RESENHAS
Luiz Armando BagolinI; Magali dos ReisII
IProfessor doutor do IEB - USP
IIProfessora doutora da PUC-MG
José de Souza Martins, Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo, Contexto, 2008, 208 pp.
José de Souza Martins, José de Souza Martins. São Paulo, Edusp (coleção Artistas da USP), 2008, 184 pp.
As fotografias de José de Souza Martins, recentemente publicadas em livro da Edusp (2008), colimam o seu discurso sobre sociologia da imagem apresentado em Sociologia da fotografia e da imagem (2008), fazendo da fotografia assim chamada "estética", e não a documental, objeto de representação de imaginários socialmente partilhados. Distante da sociologia e da antropologia que tem na fotografia um amparo ou suporte metodológico para a investigação de caráter cientificista, tão somente, Martins, fotógrafo, amplifica a busca do sociólogo, a exemplo de Gisèle Freund e outros, que a entendem como encenação de mitologias cotidianas. O "ato fotográfico" envolve múltiplas relações e a muitos: o fotógrafo, o fotografado, um terceiro, o observador eventual da imagem revelada, sem que possa comunicar um único sentido ou um que ao menos prevaleça sobre todos os outros. Por meio daquele, o homem comum pode ficcionalizar-se a si mesmo como recurso à autoidentificação ou para a manutenção de ritos supérstites, pré-modernos, à sociedade industrializada, moderna.
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Para Martins, seguindo Durkheim, o homem comum é incapaz de interpretar conscientemente as relações sociais, assim como a situação de que participa. A "anomia", conceito durkheimiano, atesta o momento de abstração, de desencontro entre a consciência social desse homem e as realidades sociais nas quais se insere. Por isso, para Martins, a fotografia, muito mais do que a palavra (ou a palavra positivada), e contra a ideia de verossimilhança em que normalmente vem embalada, é instrumento capaz de tornar visíveis esses desencontros, de pôr em evidência os descompassos ou os momentos de separação da referida consciência.
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Em Sociologia da fotografia e da imagem, Martins pensa a fotografia indicial e subjetiva, na medida em que esta permite compartilhar os resíduos de uma humanidade, já extinta muitas vezes, convidando-nos a pensar sobre o que foi a sociedade a qual pertencera. As suas fotos sobre o Carandiru não ilustram, antes demonstram esse sentimento de dupla pertença que comparece a todo ato fotográfico. De um lado, as imagens permitem que adentremos num lugar abandonado, cheio de escombros, lixo e rastros de seus antigos ocupantes. De outro, faz-nos indagar sobre quem foram aqueles homens, como viveram, como e por que sofreram e, além de tudo, como nos comportaríamos naquela situação, se ali estivéssemos ou se ali tivéssemos vivido como companheiros ou inimigos. Além ou aquém das ruínas, os vestígios, invisíveis, daquela humanidade sondam o imaginário do fotógrafo assim como de qualquer outro espectador. Não se trata, porém, de subjetividade piegas ou de uma leitura psicológica daquilo que na imagem ofereça-se possivelmente à introjeção. A fotografia não nos dá a ver senão aquilo que já não é, ou "o isso foi", segundo Roland Barthes, revelando pelas ausências, segundo Martins, aquilo que se oculta no trato, ou no travo social. A fotografia como "representação social" só o é na medida em que contempla a "memória do fragmentário", como propõe o autor, ou no momento em que o fotógrafo se conscientiza da impossibilidade de retratar ou "congelar" a realidade, "aquilo que lá está" ou que "ali esteve". Talvez, por isso, em francês, a expressão "revelar uma fotografia" seja mais adequada do que em português, pois se escreve développer une photo, quer dizer, literalmente, "desenvolver uma foto", como acusou Castañon Guimarães, tradutor de Barthes para a língua portuguesa. Desnecessário pensá-la, entretanto, tão somente como imagem "codificada", subordinada aos procedimentos inerentes à ciência sobre o funcionamento da câmera escura, segundo Barthes, uma vez que genericamente se propõe como imago lucis opera expressa (imagem expressa por ação da luz); além de sua natureza como código visual, a fotografia revela, desenvolve a suposição de personagens por parte das pessoas que comparecem diante de uma objetiva, que se deixam, ou não, capturar pela abertura do diafragma. Tal abertura se dá simultaneamente para uma espécie de "dramaturgia social" ou para a "sociabilidade como dramaturgia", segundo Martins, uma vez que as pessoas "representam-se" e "representam para a sociedade" quando posam para uma fotografia.
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Inútil como documento ou vestígio constitutivo da história do fotografado, a fotografia como representação interdita à biografia o biografado, pois se desenvolve, por contingência, em torno do biografável. Contingente, a fotografia só pode ser afeita à memória como estranhamento das perdas, das oposições, das rupturas e do abandono, como construto do momento irreconciliável do presente com o passado. Não estranha, portanto, que o autor chame a atenção para o conceito de "momento decisivo", de Henri Cartier-Bresson, interpretando-o como censura à fotografia casual, tirada a esmo e tão somente documental, em prol de uma outra que, a partir da imagem devindo, permanece como síntese imagética graças à sua razão compositiva e ao apuro da estesia e do olhar. Para Martins, a fotografia aliada ao conceito "momento decisivo" opõe-se à fotografia, antissociológica, do flagrante e da técnica documentarista a serviço do congelamento da banalidade. Coincide, assim, o seu discurso ainda com o de Barthes quando este censura a imagem fotográfica "unária", ou seja, aquela que elogia a busca de unidade a fim de reportar "de uma só vez" aquilo que simplesmente se propõe a reportar. Martins, no entanto, interpreta como verdadeira, ou especialmente mais significativa, a fotografia de caráter "estético", ou a que é feita conforme as premissas bressonianas, uma vez que a entende portadora de sentido remissivo à situação cotidiana que representa. Ao aceitá-la como uma "ideia sociologicamente mais densa", o autor também a assume como atitude para as suas próprias operações como fotógrafo, não casuais ou documentaristas, fazendo da elaboração e da construção representativa, assim como da reflexão, que acompanham o ato fotográfico, instrumentos que, recursivamente, operam a sua reflexão como sociólogo sobre a imagem e a cotidianidade do homem comum.
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No livro da Edusp, já referido, Martins expõe ensaios fotográficos de sua autoria acompanhados de anotações em poemas, de três situações álibis para se pensar as emanações, ficcionais, das lidas com o cotidiano: "Paranapiacaba", "Fábrica de Linhas Pavão", "Cerâmica São Caetano" remetem à ruína como evidência das transformações por que passaram aquelas comunidades que testemunharam a transformação de seu modo simples de existência pela industrialização, aparentemente consubstanciadora da modernidade. Há nesses ensaios um jogo de aparências que se move, a par do real, pelo imaginário do fotógrafo, porquanto nas tramas de luzes e sombras, de grades e portões, máquinas, escombros e silhuetas humanas, se entrevê o entretecimento de relações humanas passadas ou daquelas que ainda persistem nostálgicas, graças aos afetos. Pois o olhar que o mantém interessado nesses escombros industriais, sobretudo, é de natureza afetiva, buscando na figuração de seu passado, enquanto menino, critérios para a escolha do "momento decisivo" na recolha das referidas imagens.
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Realistas, essas fotografias o são tão somente como experiência ficcional fortemente identificada com os princípios compositivos da fotografia produzida entre o final do século XIX e a primeira metade do XX, e particularmente com as obras de Doisneau, Kertész, Henri Cartier-Bresson, Gisèle Freund e outros. O modo como Martins opera a seleção de seus motivos, quase sempre baixos, riparográficos, ou comuns, o enquadramento, o tratamento conferido à captação da luz, enevoada, a escolha pela granulação fina que na imagem em preto e branco gera contrastes com contornos menos duros, além de outros detalhes de natureza técnica, faz dessas imagens análogos remissivos à história recente da fotografia, sobretudo a da primeira metade do século XX. De algum modo, na obra de Martins, essas imagens não apenas iconizam, pela representação das ruínas, a modernidade e o seu declínio, simultaneamente ao aparecimento "de uma nova humanidade, juridicamente livre", mas a comentam pela manutenção de uma forma específica de discurso quanto à singularidade do olhar e do fotografar.
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Tal relação ainda é evidente nas fotografias coloridas, que, ao final do livro, saturam de cores intensivamente artificiais as superfícies de objetos e máquinas arruinadas, de aspecto ferruginoso. A composição de algumas dessas fotos, assim como de seus títulos, alude às diversas tendências da arte abstrata, que, no Brasil, estiveram em voga na década de 1950. Plenamente operante na fotografia do período, os princípios construtivos de uma arte não representativa grassaram por aqui, na esteira de Rodchenko ou Lázló Moholy-Nagy, por exemplo, na obra, entre outros, de Geraldo de Barros, que Martins parece emular pela cor. A cor ajuda a desfazer completamente qualquer possibilidade de uso dessas imagens como registros documentais, pois até mesmo a pátina desses objetos é alterada de modo a não permitir qualquer outro comentário ou impressão que não aquele que os remeta à sua estranha aparição na página branca do papel. Enaltecendo pela cor a pigmentação das superfícies em corrosão, as últimas imagens presentes no livro de Souza Martins nomeiam-se "pós-modernidades", menos talvez porque testemunharam o ocaso da modernidade, mas porque tomam por empréstimo, como apropriação ou arte combinatória, procedimentos de experimentação da imagem análogos aos de outros artistas que, outrora, agiram sob a égide daquela categoria.
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