segunda-feira, 15 de março de 2021

em évora, o quarto do estudante, a rua do raimundo e a vida quotidiana

* Victor Nogueira

fotos VN  e MENS em 1974

A RUA DO RAIMUNDO NO ANTIGAMENTE DE OUTRORA



Rua do Raimundo, em Évora, a long time ago, vista do 2º andar do nº 44

O meu quarto, nas traseiras, dava para telhados e para um pequeno pátio e as paredes que o circundavam. Habituado a espaços amplos e ao horizonte longínquo, aquela vista da janela foi um tormento nos anos em que estive hospedado no 44; sentia-me como que emparedado. 

Mais tarde poderia ter mudado para outro, no 1º andar e com vista para a rua, mas o incómodo do barulho dos carros e das carroças no empedrado, o vozear dos transeuntes e dos clientes da taberna dos pais do Cachatra na porta ao lado, foram importantes óbices face ao confortável silêncio daquele em que vivi durante esses largos  tempos.

Defronte ficavam a Pensão os Manuéis e a caótica tabacaria do Zé Gonçalves; com uma cabine telefónica pública. Um pouco mais para cima era o Café Alentejo, onde por vezes via televisão, designadamente as chamadas "Conversas em Família", i.e., as charlas do Marcelo Caetano, e, quase junto ao Giraldo a tabacaria com cinco cabines telefónicas, as que eu utilizava mais frequentemente. Raramente utilizava a do Zé da Casarão.



Vista aérea - Nesta foto de 1974 a mancha verde é o Jardim Público, e a via sinuosa à direita, até à Praça do Giraldo, é a Rua do Raimundo


 Á porta de casa, com alguém a espreitar numa das janelas do 2º andar

 





O pátio da casa

Fotos Rui Pedro (2018)




Café Alentejo



Google Earth (2021)





A tabacaria com cabines telefónicas públicas. Ao fundo a Praça do Giraldo


A tabacaria com cabines telefónicas públicas


Aqui era a tabacaria Zé do Casarão, com uma cabine telefónica pública


A casa de hóspedes da D. Vitória Prates

1968

Ao fim duns vinte minutos foi a chegada a Évora. Após alguns infrutíferos telefonemas feitos dum barzeco existente junto à estação, consegui arranjar um quarto na Pensão Eborense. Começara pelas pensões de 2ª classe e estava a ver que terminava no hotel de luxo. Mas Deus Nosso Senhor teve pena da minha bolsa! Entretanto os táxis tinham debandado. Sabendo que a pensão ficava a cerca de 1 km e porque a noite estava amena, pus o saco da TAP a tiracolo e pés a caminho. (...) (NSF - 1968.09.09) 


Está a custar-me um pouco abandonar a Lisboa e a sua luminosidade e trocá-la por um provinciano burgo, mesmo que seja a cidade museu. (...) Évora é uma cidade pacata, de ruas estreitas e tortuosas, casas caiadas de branco, piso incomodamente calcetado, nada de cosmopolitismo. O edifício do Instituto, que foi Palácio da Inquisição, é amplo e arejado. Gostei dele. (AH - 1968.09.30)


Hospedei‑me numa pensão (Pensão Restaurante "Os Manuéis"), a dois passos da Praça do Giraldo. O edifício foi construído com essa finalidade, o quarto é bom, o mobiliário obedece a um único estilo - rústico, ao contrário do bric‑à‑brac doutras pensões por onde tenho andado, como a Distinta ou as Zitas [em Lisboa]. A comida, dois pratos, é variada, à lista e abundante. A diária oficial é de 88$00 (safa!) É uma hipótese não a considerar, já que a mensalidade (com banhos e tratamentos de roupa) atingiria os 2 000$00. As casas particulares são mais em conta. (NSF - 1968.10.27)


Brevemente escreverei. Já saí da pensão. O meu endereço actual é R. Raimundo, 44 - Évora (...) (MNS 1968.11.04)


Imaginem uma ilha de pedra escura ou casas irritantemente brancas no meio de uma infindável planície. Imaginem umas muralhas que encerrem umas relíquias sagradas, mais intocáveis que os "intocáveis". Imaginem umas igrejas velhas, escuras, uma delas cheia de tíbias e caveiras e dois esqueletos pendurados na parede [capela dos Ossos na Igreja de S. Francisco]. E a encorajadora frase "Homem, lembra-te que és pó e em pó te hás-de tornar". Uma janela manuelina, num canto, num dos muitos cantos escusos, e que foi do Garcia de Resende. Um templo romano, vulgarmente denominado de Diana.  Muralhas medievais e seicentistas. Um aqueduto [da Prata] ou o que dele resta. E casas, muitas casas, dolorosamente caiadas de branco, um branco frequentemente maculado por umas escuras pedras graníticas, restos duma janela, duma porta, duma parede, duma muralha... E ruas estreitas e tortuosas, onde passam pessoas e carros. Évora, ei-la, cidade sem presente nem futuro, com passado, um passado que se pretende preservar a todo o custo. Aqui, se não fossem os automóveis e as antenas de televisão, poder-se-ia dizer que o tempo parou. Algumas décadas ou mesmo séculos atrás. 

Que mais tem ela? Meia dúzia de jardins. As melhores piscinas da Península. Um Salão Central Eborense". Que dá sessões cinematográficas diariamente (à 6ª feira o filme é português)  Um teatro (o Garcia de Resende) que em dois meses abriu para apresentar um concerto, uma peça de teatro ("D. Quixote", pelo Teatro Experimental de Cascais) e uma ópera ("Rigoletto", pela Companhia do Trindade). Um espectáculo de cada.

Cinema, café, Praça do Giraldo, casas e pouco mais. O que há para fazer. As perspectivas para as miúdas são mais negras. (JCF - 1968.12.26)


1969

Manhã clara, cheia de sol. Um céu azul, sujo de fiapos brancos - nem por isso menos belo. Telhados cor de tijolo. Com ervas verdes, pequenas florestas correndo ao longo de profundos vales ou galgando montanhas. Paredes brancas, sujas. Sólidas chaminés, umas aninhadas junto às paredes (buscando nelas protecção ou protegendo-as?), outras erguendo-se altaneiras, por cima dos telhados e das casas, mas pesadas demais para juntarem a sua alvura suja aos fiapos azul claro que juncam o céu. (NSM - 1969.01.01)


Andei a deambular pelas ruas de Évora armado em explorador. Cruzes em esquinas assinalam o local onde foi assassinado, largos anos atrás, um homem qualquer, ruas desertas, miúdos, roupa estendida nas janelas, um gatito que roça nas minhas botas, o miúdo que me pede dinheiro, já não sei para quê. Por fim o regresso ao Giraldo. Rumo ao Mercado, onde se vendem animais embalsamados, artigos de barro, caça, peixe, brinquedos... esses brinquedos de lata ou de madeira que eu reconheci como já tendo sido meus numa longínqua infância que já não reconheço como minha. Seguiu‑se a habitual passagem pelo Jardim Público. Onde está uma oliveira com uma lápide que reza assim: "Oliveira plantada em 14 de Julho de 1919 comemorando a Paz Universal após a Guerra dos Povos Aliados contra a Alemanha" (NSM - 1969.01.26)


Que tenho feito? Andado por aí. Ir ao  Instituto ouvir uns tipos a vomitarem sabedoria, uns, ignorância, outros, presunção, alguns. Vender folhas atrás do balcão da Associação de Estudantes. Ir bissemanalmente às piscinas [cobertas] nadar. Ouvir música, de rádio, pois o gira discos avariou-se. Andar por aí. Ler. Aborrecer-me. Desesperar-me. Angustiar-me. Mas,... que interessa isto?! Respiro, como, ando. Estou vivo! O resto, hum! o resto são cantigas. (MLF - 1969.02.23)


Finalmente e já não era sem tempo, parece ter chegado o verão. Embora não esteja calor, o céu está azul, com alvos flocos de núvens aqui e além. As piscinas, uma das coisas boas que esta terreola possui, serão uma tentação na época de exames que atravessamos. (...) Dentro de cinco dias abre a Feira de S. João, ao que sei muito apreciada pelo povo de Évora. A tal ponto que o cinemazeco cá do burgo aproveita os quinze dias para férias do pessoal. ( ) (MLF - 1969.06.17)


1970
Fui há pouco ao cinema ver um filme de desenhos animados. "Asterix e Cleópatra", interessante mas inferior á banda desenhada. Foi um dia de festa para a petizada, nesta cidade [de Évora] onde raramente as crianças são lembradas. (NSF - 1970.05.17)


1971
Está um domingo agradável, estival. A noite está fresca. Tencionava escrever-vos mas não se proporcionou. Gostaria que as mesadas fossem depositadas o mais cedo possível. Vou emprestar a TV á tia Esperança. (NSF 1971.04.16)


Hoje, em Évoraburgomedieval é terça feira e, para além dos turistas habituais, a Praça do Giraldo e o Café Arcada encontram-se cheios de forasteiros, solidamente especados, indiferentes a quem passa e no estorvo provocado. É dia de S. Porco, i.e., dia de mercado, em que os homens vêm à cidade para o negócio do gado, enfiados nos seus fatos escuros, de mau corte, botas enlameadas e chapéu na cabeça. Detesto a sua falta de maneiras, embora por vezes seja uma distracção observar as suas atitudes. O mais interessante neles é o modo como se escarrancham nas cadeiras, à mesa do café, solidamente instalados, o chapéu na cabeça atirado para trás. 

Mas para além deles e quotidianamente há outras figuras curiosas no café, figuras de todos os dias nas mesmas posições. Todo um mundo parado, parecendo indiferente à passagem do tempo. 

(...) Évora é uma cidade morta, a que o começo das aulas dá um certo movimento que se transformará na monotonia do café, casa, instituto, com o cinema (estreias diárias) e as mesmas caras e os mesmos rostos. (MAF - 1971.10.09)


1972
Fui ao Núcleo Juvenil de Cinema de Évora ver pela 3ª vez "Sentimento", de Luchino Visconti. Uma fotografia bela, expressionista, um tema interessante, algumas cenas chatas. Daqui a pouco talvez volte novamente ao cinema para ver um filme com Peter Sellers. (MCG - 1972.12.05)


 1973

Tac tac - tac tac - tac tac, cá vou eu a caminho de [Évora] num comboio ronceiro que espero chegue à tabela. Ao chegar, às 21:30, a falta de táxis e o excesso de "chegantes" fizeram com que o Régua e eu pegássemos nos respectivos sacos e mochilas rumo, um ao fim da Rua dos Mercadores, outro ao princípio da do Raimundo. Embora os sacos não fossem pesados, são incómodos de transportar, pelo que a meio do caminho eu protestava contra as minhas brilhantes ideias e murmurasse para com os meus botões acerca da minha fartura de mim e da muita paciência que eu tenho para aturar-me. (MCG - 1973.01.04)


A BELA E O MONSTRO - Falta falar do enxovalho (que não foi meu). Bem, eu conto. Hoje antes do almoço tive de telefonar (...)  por causa de informações sobre o pretendido emprego na CP. Pois as pessoas que pretendiam telefonar eram mais que muitas na tabacaria do cimo da Rua [do Raimundo]. As cabines estavam todas ocupadas e alguns dos "aguardantes" impacientes e apressados. Eis senão quando ... Bem, mas ainda um esclarecimento. Um dos ocupantes duma das cabines era uma tal Bia, prostituta cá da praça. É gorda como um batoque e, para a minha vista, simplesmente asquerosa.  Ora a Bia, quando eu entrei, esperava vez e, entretanto, chegado o momento, ocupava uma das cabines. Cinco pessoas a falarem, outras tantas cabines ocupadas. Eis senão quando a dona do posto abre a cabine nº 1, com a maior sem cerimónia, e diz lhe: "Vamos a sair depressa que há mais gente à espera." Ó céus, o que foste fazer! A mulherzinha, com toda a razão, diga-se de passagem, disparatou - Que ela também tinha esperado e que os outros fizessem o mesmo. Muito cordatamente, como deves imaginar, a dona retorquiu-lhe "Vamos lá a fazer pouco barulho e a despachar", o que provocou nova onda de regateirice da outra (de resto estavam uma para a outra, só que a dona não tinha razão!). Enfim .. a Bia julgava-se na praça, a vender peixe e vai daí a dona diz-lhe que ela até fazia bem se não pusesse ali os pés para telefonar. O que tu foste dizer! Completamente entornado o caldo, a Bia respondeu que aquilo é um posto público, que podia telefonar o tempo que quisesse e que agora é que continuava; que chamassem a polícia se quisesse! A dona não teve outro remédio senão ir tomar ares para a porta, enquanto as empregadas conciliabulavam entre si e os clientes brilhavam pelo silêncio. Quando me vim embora, o "namoro" ao telefone continuava. A afirmação dos seus direitos não lhe deve ter ficado cara e talvez para a próxima a "burguesa" de cabelos brancos e pretensões (a não sei bem quê) pense duas vezes antes de estalar-lhe o verniz. (MCG - 1973.01.10)


Pois o discurso do 1º Ministro foi atentamente escutado pela audiência ali do Café [Alentejo] onde vejo o pouco que me interessa na TV. Escutado atentamente mas não reverentemente. Um discurso notável pela sua construção, pelo encadeamento (embora falacioso) das ideias e factos, pela sua poesia ("Que bom poder ser moralista...", faz-me lembrar um dos poemas dum dos heterónimos do Fernando  Pessoa), pela deturpação dos factos e pela demagogia. Nem o tom nem o tema me surpreenderam. Parece-me um facto que o Governo Português procura uma solução política para o problema colonial. (MCG - 1973.01.16)


Fui ontem ao cinema ver "Nossa Senhora de Paris",  baseado num romance de Victor Hugo. Uma tragédia ... Morre tudo, minha gente: a cigana Esmeralda (que amava a vida), o padre (que desejava a  cigana inacessível - que odiava a vida), o sineiro corcunda (que descobrira a vida graças à cigana) e muitos mendigos que a queriam libertar. Gramei o filme, pelo modo como retratava (fielmente ?) o ambiente medieval e a sua miséria (que são de todos os tempos, afinal).  (MCG - 1973.03.09)


Abril não foi este ano, seguramente, o das águas mil. Maio é assim o da chuva a cântaros. Só que o excesso da água nas ruas - que aguaceiro o de hoje! - é contrabalançado pela secura completa das torneiras aqui em casa. Há três dias rebentou um cano na rua, mesmo à porta. O jorro de água ontem parecia que nem o fragor das cataratas do Duque de Bragança, em Angola. Só que as cataratas seriam, neste caso, cataratazinhas, que jorravam para cima em leque e não corriam para baixo em denso lençol! Fecharam a água na rua, por tempo indeterminado e sem pressas. Estou furioso: preciso de tomar banho e já me sinto mal disposto. (1973.05.03)


A Rua do Raimundo está linda. Da Rua do Lagar dos Dízimos para baixo arrancaram o calcetamento. Agora é só "covaria" e terra batida. Gosto mais assim. Palavra. Também andam para aí a deitar prédios abaixo que até chateia. Pena não os deitarem todos e plantarem árvores e relvado que não fosse proibido pisar. (MCG - 1973.06.03)


No Giraldo Square erguem-se bancadas e toldos, que vedavam ao trânsito automóvel a rua da Selaria  (ou 5 de Outubro). O Giraldo é uma "bancadaria" para [comemorações d]o 10 de Junho, que este ano deve ser comemorado em grande, para compensar os desastres que se vão averbando na Guiné e no Norte de Moçambique. (...) Domingo próximo, em Portugal de lés a lés, viver-se-ão jornadas de fervor patriótico! (MCG - 1973.06.07)


Évora, à noite, ainda é comestível. Para mim, não é senão um monte de pedras, que anseio ver pelas costas para nunca mais. (MCG - 1973.06.12)


Isto, nesta terra, é o fim da macacada. Aqui há umas semanas, à hora do almoço, a Domingas foi com o Carlos [Nunes da Ponte] ao restaurante Fialho, onde o dr. Vasco Caetano nos marcara encontro para proceder ao pagamento dos inquéritos [de Arraiolos]. Pois o amigo Valentim foi diligentemente informado, por um tipo que até nem é das relações dele, que a "sua mais que tudo" tinha ido e vindo do Fialho... acompanhada! Deu-se ao trabalho de segui-los, para conveniente informação a quem de direito! Isto é o fim! (MCG - 1973.07.03)


Cada dia que passa, destes  últimos, aumenta o empestamento dos ares de Évora. É um cheiro que enche a atmosfera, infiltra-se pelos interstícios, sobe-nos pelas narinas rumo aos pulmões, irritando de passagem as pituitárias. E eu estou constipado mas sinto-o. Mesmo aqui em casa o "air freshner" não consegue sobrepor-se-lhe por muito tempo. A Rua do Raimundo... ah! a rua do Raimundo é uma vala enorme a céu aberto, começando aqui junto à do Lagar dos Dízimos e prolongando-se lá para baixo, até às Portas do Raimundo  A rua está esventrada e pontezinhas (ai, que giras!) ligam as portas pares ao outro lado, dos ímpares, por onde circulam já não automóveis mas peões, saltitando às vezes de montículo em montículo de terra. Ao longo da vala trabalham operários, enquanto no fundo daquela, em canos abertos ao vento, corre um líquido escuro, talvez brilhante. É ele o responsável por este cheiro oloroso que me enche a pituitária algo adormecida pela constipação. Finalmente mudam-se os canos de esgoto. Évora está empestada. (MCG - 1973.08.01)


Gostei da interpretação da actriz que interpretava o personagem da "Maria Papoila". O filme teve para mim um valor documental; apreciei as máquinas de lavar roupa e os aspiradores, bem como aquela menina bem que metia o namorado em casa às três da matina. E ainda falam dos tempos de hoje! Antes "O Pátio das Cantigas". (1973.09.05)


O filme de ontem, "A Vizinha do Lado" tinha as suas cenas com piada, mas nada valia. Não sabia era que já naquele tempo os filmes portugueses mostravam aquelas mulheres desavergonhadas, como diria a D.Vitória [minha hospedeira em Évora] a irem para a cama com os amantes. Ai que escândalo! (MCG - 1973.09.20)


Escrevo-te aqui nos "Manuéis" [Restaurante na R. Raimundo] enquanto espero o peixe grelhado. Vamos lá ver que tal o GORAZ. Em frente a mim o [Luís] Carmelo aguarda também o seu almoço. O dia está chuvinhante. Vou para Lisboa daqui a pouco no comboio das 14.45. Cerca das 18 lá estarei. O entusiasmo não é grande, pois tenho presente o sossego que não tenho. Estarei de volta 5ª feira. (MCG 1973.10.30)


A mesa do café não é propriamente um local de recolhimento e, em sentando -se o primeiro, logo chegam os outros. Resultado: muitas vezes os trabalhos têm de ser interrompidos. (MCG - 1973.11.12)


Na pequena salinha do café  [Parque] do senhor Gonçalves (é outro que não o da Raymond Street) alguns clientes assistem à televisão ali por cima do balcão: o Jorge Alves apresenta o programa da próxima semana. O [Emídio] Guerreiro queixa-se que a sopa está quente (...). Comecei hoje a comer aqui neste café, junto ao jardim infantil, entre a Praça de Touros e o Rossio [de S. Brás]. O almoço estava saboroso. Esperemos que assim continue. Ali numa mesa ao lado um grupo de jovens vê uma colecção de fotografias pornográficas, que de vez em quando mostram a outros noutra mesa, cruzando o meu campo de visão. Entretanto a TV transmite um documentário sobre a guerra israelo-árabe, prendendo a atenção dos clientes. (...) Na televisão sereias soam numa cidade síria, sobrevoada por aviões israelitas que a bombardeiam. Escombros e feridos enchem o ecrã.

Nas obras que se fazem no novo edifício do Instituto, ao deitar-se uma parede abaixo, descobriu-se uma capela quinhentista. Fomos lá hoje para visitá-la mas já estava novamente emparedada. O edifício deve ter sido reconstruído sobre as ruínas de outro (fenómeno normal em Évora) e a capela fica abaixo do solo, na rua que passa nas traseiras do Instituto (Travessa das Casas Pintadas) (MCG - 1973.11.21)


A FÚRIA DO ZÉ DO CASARÃO -  Hoje à tarde o dono do Zé do Casarão estava furioso, telefonando quando por lá passei a comprar o "Comércio do Funchal" (agora gastando páginas numa inútil polémica com a "República"; uma guerra de alecrim e manjerona!). E o senhor desabafou comigo. Estava furioso com o chefe da PIDE. Que mandou lá buscar o último fascículo da "Enciclopédia do Vilhena", que foi devolvido meia hora depois, por um contínuo, que disse: "O senhor chefe diz que pode vender!"  Ah! Ah! Ah! Porque, dizia o Zé, isto é um abuso. Se queria ler, pedia-mo emprestado. Porque ele não tem competência para decidir ou não da apreensão de revistas e livros, sem autorização do Ministro do Interior." Ah! Ah! Ah! E acrescento-lhe eu: "E de qualquer modo não podia levá-lo sem levantar um auto de apreensão" E lá deixei o Zé, furioso, telefonando não sei para quem." (MCG - 1973.11.27)


 Em 1998 voltei a Évora e onde era a tabacaria do Zé do Casarão havia outra que nada tem a ver com a desta história, atafulhada de papeis e jornais amontoados e impregnada do cheiro a mijo de gato e uma cabine telefónica não tão concorrida como a que havia ao cimo da Rua do Raimundo. Na tabacaria do Zé do Casarão parava uma prostituta de grandes óculos e alguma timidez que, sem provocação,  me saudava sempre que nos cruzávamos e a que faço referência no meu poema Obrigado


São 20:30; aqui estou [em Évora] no café Parque, um bocadinho contigo, a televisão trabalhando e homens ao balcão conversando e bebendo a bica. Ali a minha mãe faz as contas com a sra. D. Alice [Quaresma], das refeições na messe [dos oficiais]. Estava eu aqui muito bem acabando o meu jantar com o João Luís Garcia e o Emídio Guerreiro quando elas irromperam por aqui adentro. A Maria Antónia - penso que é o nome da cozinheira - muito delicada e sorridente, "recebe as ordens". Sou levado a concluir que tem qualquer preconceito contra os homens, pois nunca lhe ouvimos nem saudação ou vislumbrámos um sorriso. (MCG - 1973.12.04)


1974

Ao entardecer a Rua do Raimundo é um espectáculo ao descê-la. Não gosto de Évora, porque não se vê o mar, nem a relva, nem as árvores, mas só pedras. Évora é um círculo que nos esmaga e constrange. Mas o espectáculo da Rua do Raimundo, quando a descemos ao entardecer!... O sol põe-se mas o céu ainda é azul, com dois luzeiros brancos cintilando. Um arco vaporoso tingido de encarnado - rasto dum avião - cruza o céu da rua, de casa a casa. O horizonte é um encarnado pálido e as ruas são brancas e as pessoas passando quase fantasmagóricas.  (MCG - 1974.01.03)


(...) Por cá também, o nevoeiro (e o frio) dão aos dias características verdadeiramente invernais. Ontem à noite o frio era tal que ao entrar no Arcada fiquei subitamente sem visão. Mas não haja cuidado, pois foram as lentes que se embaciaram [repentinamente]. (MCG - 1974.01.23)


Á noite fui ver o filme da TV - "O Fugitivo", do John Ford [1]. Aquelas audiências lá em baixo são muito comentadas. Então com o filme de ontem! Um filme exemplar, não haja dúvidas. Lá estava dito porque eram perseguidos os padres (pregavam a resignação e a humildade, com a promessa dum reino melhor ... no outro mundo. Claro que tal "resignação" favorecia os latifundiários lá do sítio, mas isso o legendador não escreveu, talvez porque lá não fosse dito ou mostrado). Mas o que a Isabel e a A. retinham era o comportamento do tenente da polícia, matando tantos inocentinhos, um patife que seduzira e abandonara uma rapariguinha tão girinha como era a Maria Dolores, de resto vítima da soldadesca, na cantina; por isso a A. se revoltava contra as revoluções e o derramamento de sangue (como na Rússia, onde não há liberdade e são materialistas, segundo ela) Enfim ... assim se vai vai prevenindo a revolução - que a PIDE e a Polícia poderiam, doutro modo, não chegar para as "encomendas". E o assaltante americano, coitadinho, que ladrão, sim, castigado, sim, mas ... protector da religião. (MCG - 1974.01.23)

[1] Rodado em 1947 e baseado no romance homónimo de Graham Green, durante a Revolução Mexicana.


O soalho está molhado e chove, um homem, eufórico, está com uma conversa parva ali ao telefone (deve ser com uma rapariga). O Luís entra e cumprimenta-me. Escrevo  nos joelhos, aqui na tabacaria da esquina, pois a escrivaninha está ocupada. Acabei de jantar no Arcada, com o João Luís e a Filomena. Desteto comer naquela cave abominável, sem janelas. Também estou farto de gabardines e casacos que prendem os movimentos.  (MCG 1974.01.28)


O sol tenta romper o cinzento carregado de chuva, mas em vão. Acordei hoje ao som de catadupas de água [à tarde o sol descobriu e o céu azulou]. Quase um dilúvio que encherá ali a barragem do Divor, livrando-nos da água sabendo a peixe. Já não era sem tempo. Chegámos pouco antes das 22 horas. No Arcada o João [Garcia], a Filomena, o Camilo, o Zé Pinto, o Ribeiro, o "Chinês" e o irmão cantavam em coro desde as cantiguinhas da primária ("Ó Rosa, arredonda a saia", "Tia Anica de Loulé"...) às excursionistas ("Santa Catarina", "Rapsódia Portuguesa"...) passando por cânticos gregorianos e pelos coros alentejanos e canções da Beira Baixa. Enfim, uma grande audição, no café cheio e entretido com outros assuntos. (MCG - 1974.02.11)


O dia hoje está soalheiro. Regressei há pouco a casa; os jornais esgotaram. A RTP noticiou que na madrugada de ontem houve um levantamento militar nas Caldas da Rainha, após uma semana de grande confusão. (...) Segundo a BBC o Movimento das Caldas [16 de MARÇO] pretendia exigir a demissão do Presidente da República [Almirante Américo Tomás] (1974.03.17)


Com um ar grave e solene o locutor de serviço na Televisão comunica à hora do noticiário que a emissão prossegue com um concerto de Freitas Branco, até que sejam transmitidos os comunicados do Movimento das Forças Armadas. O emissor do Rádio Clube Português transmite música portuguesa. Aguardo que retransmitam o comunicado da prisão do Presidente do Conselho de Ministros, refugiado no Quartel da GNR, no Largo do Carmo em Lisboa. 

A Rua do Raimundo, os carros nela  estacionados, o pátio, o terraço, a casa de banho, estão juncados de restos de papéis queimados. Grande actividade vai ali na sede da Acção Nacional Popular onde devem procurar livrar-se de papéis comprometedores. São já quase 20 horas e um novo comunicado informa que "Sua Excelência o ex-Presidente do Conselho de Ministros [rendeu-se] incondicionalmente a Sua Excelência o General António de Spínola, juntamente com os ex-Ministros do Interior e dos Negócios Estrangeiros" O Pai Tomás [almirante Américo Tomás} ainda não se rendeu. Penso que os regimentos de Évora ainda não aderiram ao pronunciamento militar. Pelo menos nenhum dos jornais que li hoje fala em Évora, sede de uma das quatro Regiões Militares. (...)

Foram pancadas secas as que me acordaram cerca das 8 h 30 m desta manhã, seguidas dum jorro de luz sobre os olhos e da visão do Diogo [Guerreiro] em pijama, o rádio na mão: "Ouve lá isto e vê se percebes alguma coisa!" Meio a dormir ouço, pelo rádio, um apelo aos médicos e falar nas operações iniciadas na madrugada de hoje. Estou baralhado e nada sei sobre o que estou a ouvir. A Emissora Nacional está silenciosa. Ouve-se música portuguesa, especialmente do Zeca Afonso. Durante o resto do dia segue-se a audição dos comunicados do Comando das Forças Armadas. No Instituto a malta aglomerase junto aos automóveis com rádio. A Filomena está assustada (Tem muito medo das revoluções!) e diz que é um golpe das esquerdas. Mas nada se sabe de concreto sobre a finalidade e orientação do Movimento. 

(...) Nas ruas de Évora, durante o dia, a malta sorria-se, euforicamente, numa euforia um pouco contida. (MCG – 1974.04.25) 


Afinal o filme de ontem era um grande barrete. A "cowboyada" do dia anterior ("Chamavam lhe Aleluia") tinha mais piada. A sessão de anteontem tinha 2 filmes; o outro era um "policial" do Claude Chabrol ("O Carniceiro") como sempre metendo sádicos, assassinatos e tarados sexuais. A professorinha primária do filme - uma lourinha gira com olhos azuis tinha um  Citroen 2 cavalos e ia passear para o campo com o apaixonado - que era o assassino - que ia jantar com ela ou fazer serão. Sozinhos em casa, imaginem. E todos gramavam a professora na aldeia. (MCG - 1974.09.09)


a vida quotidiana


1968

Brevemente escreverei. Já saí da pensão. O meu endereço actual é R. Raimundo, 44 - Évora (...) (MNS 1968.11.04)


Desde há 24 dias que assentei arraiais com armas e bagagens num segundo andar da Rua do Raimundo, mais precisamente no nº 44. A dois passos da Praça do Giraldo e a quatro do ex-Palácio da Inquisição, actualmente ISESE. O quarto é grande, enorme. Deve ser o maior quarto que jamais tive. Uma cama que vai ser substituída por dois divãs. Uma mesa de cabeceira. Duas cadeiras. Com um candeeiro. Uma escrivaninha. Com outro candeeiro. Um guarda-fatos com porta de pano. Isto é, uma cortina. Um armário transformado em estante e roupeiro. Uma mesa semi circular, encostada a uma parede. Com uma saia de pano púrpura. Junto a um espelho de moldura dourada. Algo estragada. Os [meus] caixotes serrados e amontoados transformados em prateleiras. Interessante. Ou não fosse eu estudante! Um cesto de papéis. Indispensável. Pois rasgo muitos ditos cujos. A mala de porão a fazer de banco. E de arca da velharia e lixarada. Aquela lixarada que não serve para nada, que só estorva, mas de que não conseguimos separar nos nem sabemos onde guardar. O mesmo que o sótão das casas grandes e antigas como esta (que não tem sótão mas tem terraço). Pelas paredes gravuras, fotografias ou reproduções de quadros. A maioria trágicos. Para o que me havia de dar. E, imprescindível, uma janela! Vale mais que uma porta. Esta dá para um corredor. Aquela para um patiozito interior. O contrário seria mais assombroso, não seria?


O aquecedor da casa de banho é a petróleo. Lá em casa, em Luanda, temos um arrumado a um canto. Este avariou se há dias. Fez greve! Provisoriamente utilizamos um balde chuveiro. Também temos um lá para um canto, em Luanda. Aqui aquecemos a água num panelão, num fogãozito a gás. Despeja se a água no balde, içando-o seguidamente. Puxa se uma coisa qualquer (não sei o nome) e a água cai em chuveiro. Mas no fim do mês a sra. D. Vitória [Prates] também comprará um aquecedor a gás. Lá em Luanda também temos um. Creio que não está arrumado a um canto. Há uns dois anos e uns dias não estava!


Além da minha pessoa outras mais existem aqui em casa. É natural.  A sra. D. Vitória. A dona da casa. (...) Creio que é boa pessoa. De resto todos para mim são boas pessoas... até ver. Às vezes continuam mesmo a ser! A Ermelinda. Que é sobrinha. Que anda no 2º ano do Magistério Primário. Minha adversária ao "crapaud" e parceira à "sueca". Nem sempre. Uma colega: a Ana Maria. A sra. D. Cacilda, mãe da sra. D. Noémia [(Simas) Mendes. Que foi há dias para Leitora de Português da Facultad de Filosofia y Letras de Santiago de Compostela. Com quem gostava imenso de conversar. Que via poesia, algo de valor, nas coisas simples e banais. Nas quais não reparo por não poder não saber ou não querer. Por demasiado perdido nos meandros das minhas introspecções filosóficas. A sra. D. Cacilda deixar nos à no fim deste mês de Novembro. Dois colegas meus do 3º ano de Economia de Empresas: O Alexandre [Vaz] - alto e de ombros curvados - e o Jorge [Carvalheiro] - alto e direito (ou não fosse tenente da Guarda Nacional Republicana). E um terceiro, finalista do mesmo curso. O "fantasma" cá de casa. Aparece e desaparece quando muito bem entende. Para terminar, a Leolinda - afilhada e criada da dona da casa. E a filha - uma miúdinha de sua graça Ana Maria, de seis risonhas primaveras.

(...) Pago mensalmente 1 150$00, incluindo cama, mesa, banhos e roupa lavada. Muito menos do que gastava nessa multi tentadora Lisboa. (ELF - 1968.11.24)


 1969

Temos um novo hóspede. Ainda não o vi. Deveria ter vindo hoje. Sei unicamente que está empregado no Banco Espírito Santo. Veio para o nosso andar [2º], do "tribunal" cá de cima, constituído por mim e pelo Alexandre [Vaz]. Estou vagamente aborrecido com a vinda deste que é, pelo menos por enquanto, um estranho. De resto para o ano devo apanhar mais intrusos, pois as duas miúdas devem terminar o curso este ano. (NSM - 1969.02.11)


Já aprendi, ou melhor, dou assim uns passitos de dança, consequência dos bailinhos familiares que até ao Carnaval se realizaram cá em casa. (NSF - 1969.03.08)


Estou saturado de Évora: casa, instituto, café Giraldo, casa, instituto, café Giraldo, casa, instituto, café Giraldo ... Sempre as mesmas caras, sempre as mesmas conversas, sempre a mesma água gotejando sobre mim, os nervos tensos, explosivos, e este maldito juiz que é a minha consciência, a massacrar‑me com coisas insignificantes ou irremediáveis. O receio de falhar, sempre este maldito receio ao falhanço, ao ridículo e incompreensão das minhas atitudes, conduzem‑me ao malogro. (...) E eu não consigo segurar as rédeas dos cavalos correndo à desfilada, que são os meus sentimentos, as minhas emoções, as minhas recordações. E apetece‑me fazer uma enorme fogueira disto tudo, das minhas malas e bagagens, e partir, uma vez mais. Porque eu não tenho nem casa, nem família, nem amigos. Ah! mas eu necessito uma casa, uma família, amigos. Se eu pudesse passar sem isso! Se eu pudesse amar todos sem amar ninguém! Mas não!


(...) É possível que no próximo Verão eu vá a Luanda. A minha Mãe, esquecendo‑se da minha face má, sonha ansiosamente com essas férias, para tentar juntar uma família que nunca esteve junta (embora vivendo sob o mesmo tecto), pelo menos até onde a minha memória alcança. E eu também lá quero ir, para tentar enterrar definitivamente alguns "fantasmas" e encerrar páginas do livro da minha vida. Para que desapareçam dois ídolos esboroados, de pés de barro, e nasçam finalmente dois Amigos: O Manuel e a Maria Emília. (NSM - 1969 Páscoa)


Aproveito a frescura da noite, que entra pela janela entreaberta, para escrever. Daqui a cerca de uma hora irei até ao Largo da Sé, em cujas escadarias se fará uma récita, integrada nas Festas dos Finalistas do ISESE, que têm brilhado pela falta de brilho e pela improvisação. Ontem estive a fazer o serviço de bar durante o torneio de tiro aos pratos, organizada por aqueles. Uma experiência nova, que me fez sair de lá com a cabeça aguada, perguntando me qual a piada que a fina flor da "nobreza" cá do Alentejo encontra no "pratopumpumzero" (Alguns lá conseguiam acertar mesmo). (...) A cidade mais bela do mundo tornar-se-á insuportável, muitas vezes, para os desenraizados. (NSM - 1969.05.22) 


Manhã de um segundo dia de férias, véspera do começo de exames. Os dias de sol alternam com os de chuva fria. Hoje o céu está azul, quase limpo; andorinhas volteiam pelos ares, o branco das casas fere impiedosamente o olhar, os jardins (Ah! a única coisa aproveitável nesta vilória!) multicoloram-se de flores e as árvores enverdecem. Mas no telhado e junto à minha janela, o musgo secou, deixando apenas manchas escuras. A erva que corria por entre as telhas está castanha e coberta de mini flores brancas. Já não parecem árvores correndo por entre vales e galgando montanhas. (NSM - 1969.06.03)


O verão chegou finalmente, envolvendo a cidade num bafo quente e opressivo (NSF - 1969.06.28) 


Terminei há pouco um torneio de basquetepilha, cujos dois "rounds" ganhei ao Luís. Basquetepilha é um jogo há pouco descoberto por nós e que consiste em tentar enfiar uma pilha velha no cesto dos papéis. O ano passado o jogo era outro, com o Alexandre, e chamava-se "handalmofada" .Os torneios terminaram no dia em que um de nós deixou a almofada passar pela janela e estilhaçar um dos vasos do pátio, para desgosto da sra. D. Vitória, nossa ilustre hospedeira. (NSF - 1969.12.12)


1970

O tempo hoje arrefeceu muito, estando verdadeiramente invernal. Daqui a pouco vou ao médico. Desde 3ª feira passada que estava de quarentena. Não sei bem porquê, pois o médico é pouco falador. Só sei que já não tenho temperatura e que tenho-me encharcado em antibióticos. Continuo com tosse. Vamos ver se consigo uma 2ª chamada especial, pois amanhã não vou ao exame (prática) mas talvez vá na 6ª à teórica. Depois escreverei. (NSF 1970.03.08)


À "Rapsódia Húngara" de Liszt (o piano é maravilhoso!) junta se o chilrear dos pássaros no telhado, o ronronar duma avioneta pelos ares e o ruído abafado do trânsito na Praça do Giraldo, aqui a dois passos. (NSF - 1970.05.17)


O calor chegou. E no Verão Évora é mais insuportável. Daqui a pouco talvez vá até ao Arcada meter uns líquidos. É quase meia noite. Anteontem estive em Lisboa. (...)  Já estou desabituado daquele bulício e das longas distâncias. Aqui está tudo ao alcance da mão. Tive de fechar a janela, pois o quarto foi invadido por umas mosquitas incómodas. Música pop ouve-se no gira-discos. (NSF - 1970.05.23)


É depois do jantar. Pela janela aberta entram a brisa da noite, vozes de pessoas e dum e outro carro que passa na rua. (...) A D. Vitória pintou-me o quarto de verde, como lhe pedira. A princípio gostei, mas estou a sentir-me mal com tanto verde. Como as paredes são muito duras, terei de fixar as gravuras com cola, pois os "punaises" não entram. (NSF - 1970.10.06)


1971

Cheguei há pouco, vindo de Lisboa. É bom encontrar de novo as paredes e as caras familiares, até que o aborrecimento de Évora nos faça esquecê-lo. Dizem que está frio; não o tenho sentido, e a brisa da noite que entra pela janela escancarada é repousante e refrescante. Vou pôr este no marco [do correio] para apanhar a tiragem da uma da madrugada, e comer qualquer coisa, pois não tive tempo de jantar em Lisboa. Em cima da mesa estava um bilhete da Mãe, já do ano passado. Creio ter recebido todas as cartas. Além da "broas" e da massa de Dezembro. Em Lisboa e no Porto todos ficaram bem. (NSF 1971.01.02/03)


Preparo a frequência de Sociologia II enquanto ouço a "Valsa" de Ravel. É uma tarde de domingo, dum inverno já não rigoroso, aprazível. Sentado numa cadeira, os pés noutra, rodeado de livros, papéis e apontamentos. Daqui a pouco vou até ao café lanchar e ler o jornal. A dona da casa ainda não veio arrumar o quarto. A "Pedra Filosofal" é para o Zeca Jones (NSF 1971.01.24)


É um domingo indefinido, um começo de tarde. Três novos hóspedes entrarão hoje lá para casa. Somos agora oito (para além da hospedeira, irmão [Ambrósio Prates] e sobrinho [Manuel]: duas miúdas [Celeste Gato e Bia Almeida], estudantes no Magistério Primário, como este, e a mãe duma delas [D.Maria],  e o Diogo [Guerreiro] (6º ano liceal e futuro economista). Os novos são um velhote, [o sr. Marquês], empregado comercial, uma assistente social [D.Teresinha] e a ilustre mãe [D.Ilda]. Sou este, o mais antigo. Todos os outros entraram este ano. (NSF - 1971.01.31)


Hoje ao subir as escadas lembrei-me que há muito estava no frigorífico uma caixa de bombons enviada pela Mãe em tempos. Houve uma fraterna distribuição por todos os que estavam na cozinha. Gostaria de passar o Carnaval fora de Évora, mas as finanças não o permitem. Praticamente desde hoje não tenho aulas. Não irei ao exame de Teorias Sociológicas, depois de amanhã. Seria improcedente prepará-lo agora, pelo que fica em princípio para Outubro. O outro exame de que falei foi adiado para depois do Carnaval. Com a Reforma [Educativa] ficou em suspenso a duração (4 ou 5 anos).(NSF 1971.02.16)


São quase 20 horas.  Como sempre, o meu quarto está transformado em sala de reunião. Eu escrevo, dois jogam à batalha naval, outro estuda e a D. Teresinha ouve música. (NSF - 1971.03.21)


Quanto aos graúdos, temos tido umas grandes conversas, especialmente às refeições. A sra.D.Ilda ouve -se com agrado, parece-me uma pessoa que vive muito sozinha. Quanto à filha, desde que nos fiquemos pelas banalidades e conversas de chacha ou desconversadas, por vezes, a coisa vai correndo ... 

... como os dias de férias nesta cidade provinciana, muito boa  para isso mesmo - férias. A maior parte da malta foi para casa e o café, embora cheio de gente, não é muito convidativo por não se poderem dar dois dedos de conversa. Não fora o Camilo [Monteiro] e a Margarida [Morgado] e então seria o fim. 

A cidade está cheia de forasteiros, especialmente miúdas. No entanto, o frio e a chuva não convidam muito à apreciação do desfile das belezas naturais.

Como sempre ouço música. Desta feita o meu amigo Vivaldi e os seus concertos, que têm algo de primaveril, recordando bosques e pássaros e riachos. 

Regressei agora a casa. A chuva continua a cair dum céu cinzento e esbranquiçado. Mas hoje não estou disposto a "sentir" a chuva. Noto que algures chilreia um pássaro. Mas isto começa a cheirar me a poesia barata. (NID - 1971.04.05)


Inaugurei hoje a minha época de piscinas. O tempo está quente e a água, embora fria, é agradável. (NSF 1971.06.17)


A solidão,  mais ou menos sentida, acompanha‑nos durante toda a vida. Os outros e as coisas, a nossa acção, ajudam‑nos, a muitos, a preencher esse vazio, a evitar que a solidão nos esterilize. Mas devemos encontrar um justo equilíbrio entre os outros, as coisas e nós. Para não sermos absorvidos pelas coisas ou pelos outros e, sobretudo, para que não tentemos absorver o outro, querendo transformá‑lo à nossa imagem, qual espelho enganador. É um equilíbrio difícil de alcançar, reconheço‑o. Mas temos de estar atentos e vigilantes. (NSF - 1971.07.13)


A D.Teresinha lá ficou. "Entrou de férias", tendo ido contrariada para Barrancos. Não sei se regressará. Depois de vocês partirem e como fora vaticinado, passou a visitar‑me. Mas o respeitinho é muito lindo e ficava muito caladinha sentada numa cadeira, ouvindo música. (MCG - 1971.08.14)


Tirando a Margarida [Morgado] não se vêm mais caras conhecidas (para um bate-papo) no café. Mas a malta irá chegando. Tenho para aí umas folhas manuscritas para enviar-vos, mas ainda não é desta. (NSF 1971.09.19)


O tempo está quente e à noite anda-se bem sem casaco. O cinema ainda é na esplanada. Cá de casa a D. Teresinha foi, com a mãe, para casa. Dos restantes, só um ainda não regressou de férias. (NSF 1971.10.01)


Sábado, estava eu no café, com a malta, quando dou com uma miúda a passar e a fixar-me. Era a Vitória, que com o Engº Araújo e duas colegas tinham chegado a Évora para seguirem amanhã para Beja. O senhor Araújo disse-me quando regressava a Luanda, mas não fixei. Creio ser na próxima semana. Andei com eles aí pela cidade.

Como era de prever os exames têm corrido mal. Agora nada há a fazer e é deixar andar, até ver.  (NSF 1971.10.09)


(...) Verdadeiramente Évora é uma cidade morta, a que o começo das aulas dá um certo movimento que se transformará na monotonia do café, casa, instituto, com o cinema (estreias diárias) e as mesmas caras e os mesmos rostos. (MAF - 1971.10.09)


Pronto. Lá arrefeceu tudo ao pegar na caneta para dizer do meu espírito, do que nele se passa. Esvai-se-me por entre os dedos e nas mãos apenas o resto do que não é. No gira discos, Stravinsky. É ao lusco fusco, o candeeiro aceso defronte a mim, enquanto o Rocha tira apontamentos do "Rapport Sur la Situation Sociale dans le Monde en 1963", edição da ONU. Apesar do aquecedor, tenho os pés gelados. Estou enfiado no roupão. O silêncio é perturbado apenas pelo leve respirar, os ruídos das canetas deslizando rápidas pelas folhas, o roçar das mangas nas mesas. (...) O Rocha pôs outro disco: Bach, uma cantata. (NSM - 1971.12.01)


(...) É depois do jantar. Um enorme cansaço, desolador, entorpecedor, tem-se estado apoderando da minha cabeça. Completamente alheio enfiei a comida, acabando primeiro que os outros, uma grande irritação pela barulheira do rádio na cozinha (sempre a merda ruidosa do rádio), um enfado pelas desajeitadas tentativas do sr. Marquês para tirar-me do meu alheamento, do meu mutismo, a despedida brusca. Todo este cansaço, todo este desalento, pelo clarão súbito da última página, pela consciência de que todas as nossas relações são um jogo cujas regras (subconscientemente) sabemos (mas não queremos admitir), que toda a vida é uma enorme representação teatral, um palco mundano. (Lembras te, Shakespeare? Lembras-te, Stau Monteiro da "Angústia para o Jantar"?)   (NSM - 1971.12.01/03


O meu fiel amigo permite que o Luís Góis cante para mim, neste momento, a "Toada Beirã" Ontem à noite o Carlos [Nunes da Pont] esteve cá em casa. Tencionava ir ao cinema para ver "Sete Noivas para Sete Irmãos", mas atrasei‑me a escrever, mudando por isso de planos, o que permitiu‑lhe encontrar‑me. Estivemos a conversar até às tantas. (NSM - 1971.12.02)


1972

Cá estou novamente em Évora, depois dumas horas de camioneta e um bate-papo com a malta amiga no café. No regresso a casa passei na tabacaria para um aceno e dizer que estou bem. (NSF 1972.02.10)


[Foi] o tempo de ter visto a D.Vitória e lhe ter dito uns piropos até ao próximo chá. Tempo de travar conhecimento, ao jantar, com duas novas hóspedes - temporárias - cá de casa. Ambas de Montemor: uma é velhota, professora primária, de sua graça Maria Inocência, outra auxiliar social, a menina Maria do Céu, em breve senhora de não sei quem. Enfim, se eu não conseguir "controlar" as conversas à mesa terei de ouvir conversas de chacha - Porque será que há pessoas tão chatas?!  (...) [Esta] minha falta de jeito para conversar em qualquer circunstância e sobre qualquer assunto! (MCG - 1972.06.07


O silêncio que substituiu as discussões políticas à mesa após a partida da sra. D. Ilda e do sr. Marquês tem sido agora substituído por "importantíssimas" discussões entre o Diogo da Amareleja e o Victor [Dordio] do Cano sobre as altas percentagens de reprovações no Liceu e, sobretudo, como hoje, [por] questões automobilísticas. Enfim, se todos gostassem do mesmo era esta vida uma sensaboria, como diria a sabedoria popular. (MCG - 1972.06.30)


Estirado no divã, [do meu quarto] olhos fechados, o Carlos [Nunes da Ponte] ouve as gravações [de órgão] que efectuou no sábado - algumas composições de sua autoria, outras de Bach. Está contente com a sua genialidade. (MCG - 1972.07.10 - ?) 


O senhor Marquês escreveu-me [de Aveiro], uma carta muito formal. Está bem. Da Bia [Almeida, de Safara] não há notícias; escrevi-lhe meia dúzia de linhas pelo aniversário. O Diogo Fialho [de Santo Aleixo da Restauração] foi-se embora sem dizer água vai nem a mim nem ao seu homónimo. O Diogo Guerreiro [da Amareleja] - agora mais sorridente e falador - fez hoje oral de Inglês [e passou com 13] (MCG - 1972.07.21)


Resolvi passar à máquina o manuscrito escrito antes do jantar, enquanto o Aristides dormia ali no divã e, lá em baixo no pátio, alguém lavava a roupa. Ouvia-se a água escorrendo e o barulho dum balde ou bacia de plástico. Alguém fala aí numa das casas e o relógio da torre [da Igreja de Santo Antão] batia, então, a sua badalada do quarto de hora. (MCG - s/data 1972. 09/10 ?)


O Diogo Guerreiro fica cá em casa. O Diogo Fialho ainda não deu notícias. Comigo devemos ser os únicos hóspedes este  ano, que a D. Vitória está cansada.  O quarto do sr. Marquês [e que fora do Jorge Carvalheira] agora é sala de visitas e o que foi vosso [com escadas para o terraço] é agora do sr. Prates e do Orlando - sobrinho - que vem estudar para Évora.  (MCG - 1972.09.22)


Ouço o Zeca Afonso e daqui a pouco vou até ao Arcada, dar dois dedos de conversa ao Camilo, lanchar a sandes de fiambre, galão claro e iogurte habituais, e dar uma vista de olhos pelos jornais da tarde. (MCG - 1972.09.22)


Sabes quem apareceu por Évora, hoje? O Aristides! Vem fazer quatro exames, regressando aos Açores no fim de Outubro. Até lá será hóspede da D. Vitória, a quem pagará ... 50$00 diários. Safa! (MCG - 1972.09.29)


Isto aqui em casa são umas correrias escada acima,  escada abaixo, que nem calculas. Sim, que o amigo Orlando anda alvoroçado com a escola e um mundo novo para ele, de que me não fala mas pressinto. Os cuidados com os livros, todos bem arranjadinhos,  o ar tímido quando com ele falo! (...) O sr. Prates já foi largando a bisca para um explicador ... À borla, pois então. Só que o coração já me caíra aos pés quando na véspera a D. Vitória me comunicara que a minha pensão aumentara de 200 $ 00 mensais, isto é, para 1 600 $ 00. (MCG - 1972.10.04)


Estava eu para aqui alinhavando estas linhas (...) quando o Carlos me entrou pelo quarto dentro, com um "Ah! Estou muito cansado. Imagina lá que andei com o Camilo a ver monumentos; pela milésima vez fui ao Museu e à Sé". Sabes, por causa do Camilo andar na fase cultural! ( O menino agora anda a estudar latim, não conseguiu convencer qualquer de nós - eu e o Carlos - a acompanhá-lo em tão profundos estudos, mas nem por isso consegui escapar às longas dissertações ali à mesa do Arcada, especialmente quando descobriu um interlocutor: o Régua, que também estudou latim! (MCG - 1972.10.07)


O Diogo Fialho regressou ontem, mas não foi colocado na mesa dos hóspedes [sala de jantar] mas sim "adoptado" pela família Prates [mesa da cozinha]. (MCG - 1972.10.10)


Livros lápis folhas anotadas lápis canetas um cheque dois meses atrasado no pagamento da "Seara Nova" no divã mais livros dois casacos o rádio silenciado a viola do Zé Manuel para as cantorias do Aristides as pantufas aparecendo pela colcha e mais livros dezenas deles e de revistas para qualquer lado que me volte! Se não forem livros são paredes onde esbarra o meu espírito, parede do meu quarto e da casa em frente, pela janela avista-se uma nesgazinha do céu de cinzento nublado. Pela janela entram as vozes do Orlando e da D. Vitória mais o barulho dos fritos - novamente batatas? - e o ruído distanciado dos automóveis e motorizadas com o seu acelerar e buzinar. (MCG - 1972.10.10)


É ao entardecer dum dia gelidamente outonal. Ali no divã o Aristides e o Zé Manel cantam e tocam do Zeca Afonso "Traz outro amigo também" (MCG - 1972.10.11)


Ali o José Emílio pergunta‑me se estou escrevendo as minhas memórias, entre uma garfada de arroz e outra de carne. (...) É depois do jantar. Chove e as pingas caiem descompassadamente no cimento, lá em baixo no pátio. O rádio transmite uma música solene e majestosa que não identifico.

O Aristides vai folheando um livro de poesia e divido a minha atenção entre o que escrevo e o que ele me diz. - lá vou dando conta do recado (O Aristides comenta o Fernando Pessoa dizendo que é poesia de salão). (MCG - 1972.10.12) 


Tenho de interromper que a D. Vitória já me chamou pela 3ª vez - com inflexões de zangada - e o Aristides deve ir no 2º prato. De resto o coraçãozinho deve estar em trevas, pois hoje uma miúda amiga veio visitar o Aristides e ele mandou-a subir. E como era uma miúda toda alegre, nova e de mini saia ... bem, imagino a tempestade que deve ser o sentido de honra e decência da recatada senhora! Se  a coisa me não tocasse também dar me ia vontade de rir de tudo isto. Raio de gente que só vê pernas abertas e "poucas vergonhas!" (MCG - 1972.10.17)


Antão, essa saúdinha, como vai? O S. Pedro sempre foi um tipo "bacana": só há pouco começou a  chover. Apetecia-me ficar pacatamente em casa, mas vou arrostar a chuva que cai em grossas bátegas, até ao café, escala para o cinema com o Camilo e o Carlos. (MCG 1972.10.23)


A D. Vitória arranjou uma ajudante, que chegou hoje de manhã. Não conheço ainda a sua graça: é uma rapariguinha - 12/13 anos - de negros e revoltos cabelos e um ar de bicho de mato. Enfim, mais uma pessoa que entra para a vida, possivelmente para servir os outros. (MCG - 1972.10.26)


O tempo já convida a vestir‑se o roupão, acender o aquecedor e ficar‑se pacatamente em casa, ouvindo música ou conversando, quando não se joga uma partida de cartas (MCG - 1972.10.30) 


De que vou falar te, eu que neste momento consideraria a felicidade suprema chegar a casa e sentar-me numa poltrona confortável, com Bach ou Mozart no ar e talvez amigos - ou amigas - o corpo sereno sem dentes cerrados! Mas não tenho dinheiro nem livre curso ao meu dinamismo em algo que me entusiasme! (MCG - 1972.11.20)


Sábado, ao fim da tarde, resolvi fazer uma das minhas "experiências". Desta vez resolvi analisar a evolução duma bebedeira, pelo que emborquei conscienciosamente meia garrafa de uísque. Infelizmente não tinha o gravador à mão e não pude registar as minhas observações, que ficaram assim soterradas nos subterrâneos da minha memória. Lembro-me apenas de duas coisas importantes: a primeira é que a partir de certa altura é impossível coordenar ideias, pensar. O ecrã da nossa consciência nada mais regista. Já não pensamos no que quer que seja. A segunda, quando parece ser a cabeça uma enorme bola enchendo-se cada vez mais, esvaziamo-la com a mão na testa. A cabeça reduz-se a uma bola pequenina, com um ponto doloroso algures nela. (NOT s/data - 1972/73)


 Não reencontrei a carta em que descrevia aquela que seria a experiência nº 1. Uma tarde, fartos da pasmaceira de Évora, eu e o João Luís [Garcia] resolvemos andar pelas ruas sorrindo  de orelha a orelha para toda a gente com que nos cruzávamos, o que deu origem a algumas cenas retributórias caricatas, que não fixei.


 1973

Daqui a pouco vou sair - à chuva, ao vento, desafiando as intempéries e o furor das divindades - para meter esta presença de mim no marco do correio. (MCG - 1973.01.16)


Disse-me a D. Vitória que a "menina" Celeste telefonara. (ah! Este tratamento!) Não sei se haveria "festinha familiar" [pelo meu 27 º aniversário], mas sabes como as não aprecio por nada me dizerem. Jantar fora e chegar de madrugada foi um pretexto para malográ-la e, simultaneamente, estar com amigos. (MCG - 1973.01.06)


É sem grande prazer que daqui a pouco vou até ao café perder mais tempo. Aborrece-me, no entanto, este enorme quarto, vazio de pessoas. A casa da D. Vitória, por motivos óbvios, não oferece condições para convívio. E este ano é o fim. O Diogo [Guerreiro] passa a vida fora de casa. As miúdas, enfiadas no quarto. De resto as nossas relações agora estão muito desagradáveis para mim. Como não sou tipo de salão e como as condições de convívio são praticamente nulas, limito-me ás minhas secas e distantes saudações, a que nem sequer correspondem. Mas já antes disso passavam pela sala [vindas da cozinha], quais bichos do mato, sem nos saudarem. (...) Ouço subir as escadas. A propósito, sabes que estas miúdas não vêm cá acima senão duas a duas !? Que reles! Imaginar-me-ão e ao Diogo, ali atrás da porta de olhos brilhantes  e respiração opressa prontos a "saltarmos-lhes ao espinhaço", como se diz na gíria?! Já o sr. Prates não se enfia no quarto dele sem dar duas voltas à chave! Ah! Ah! Ah! [os rapazes nunca fechávamos à chave a porta dos respectivos quartos]  (...) Daqui a pouco vou sair - à chuva, ao vento, desafiando as intempéries e o furor das divindades - para meter esta presença de mim no marco do correio. (MCG - 1973.01.16)


Ontem o Diogo Fialho fez anos e fui apanhado para a festinha do costume. Como não podia deixar de ser, alguém tinha de entrar pelos copos em mistura. Quem estava mais à mão de semear e convencer foi a Eglantina (com dois cálices a alegria extrovertida natural dela aumentou) mas a brincadeira saiu-me cara que ela só bebia se eu acompanhasse, e o cretino do Diogo Guerreiro (agora muito loquaz) enchia também o meu copo, em vez de disfarçar. Resultado: o estômago a arder - estou mesmo velho - e toda a ceia fora. O riso saiu-me, pois, caro. (MCG - 1973.01.23)


Ora, recolhi ontem a vale de lençóis, com temperatura elevada, que assim como veio, assim se foi, durante a noite. De qualquer modo resolvi hoje manter me encafuado no quarto, mal-grado a minha impaciência ...

Por toda a casa soam estalidos, consequência do irrequietismo do Orlando. Não descortino bem qual o gozo daquilo, mas enfim ...

Volto a página e pergunto-me que mais vou eu escrever? Levanto-me, dou uma volta pelo quarto, remexo numas quantas coisas e torno a sentar-me para escrever isto.

Entretanto a D. Vitória regressa, para levantar a bandeja do lanche e despejar o cinzeiro (o João, o Carlos, o Tobias e a Lídia empestaram-me o quarto com cigarros). Há cinco anos que lido diariamente com a D. Vitória e nunca as nossas relações foram muito cordiais nem estreitas!

Acendo o candeeiro, não porque seja absolutamente necessário, mas num gesto algo inconsciente ou automatizado. 

Olho para a minha direita e vejo um enorme calhamaço: "Os Macondes de Moçambique", vol III - "Vida Social e Ritual". Terei de consultar este e os dois primeiros para redigir a monografia de Antropologia Cultural. (MCG - 1973.01.26)


A Bia [Almeida] esteve em Évora, com umas amigas. Visita-relâmpago que nem deu para aceitar o meu convite para jantar (suspiro!) Recebi um cartão da tua prima Mariana. Chama-me ... Victor Ramos. Enfim! (MCG 1973.02.02)


Chove. Está cinzento. A chuva faz barulho no pátio. Amanhã é 3ª feira, o meu dia negro, pois a cidade - e o café - enchem-se de alentejanos corpulentos, solidamente parados no meio do caminho, de chapéu na cabeça e fatos escuros, como se nada mais existisse no mundo senão as suas irritantes pessoas! Embora cheia de gente, a cidade, para mim, está despovoada. Quando não estou na minha torre (cela, como diz a D. Ilda) ando por aí, pelo café, pelas livrarias, pelo Instituto [ISESE], quase sempre (fingindo me ) muito atarefado. (NID - 1973 ?)


O sino de Santo Antão bate as 9 horas e a chuva bate nos vidros da janela como areia pisada. Tempo bom para a quentura da braseira ou... Mas espera! Assomo à janela e, bem me parecia. Cai granizo em cataratas! Vou dar uma volta, apanhar ar para refrescar - e daí não sei, o vento é violento – parece-me. (MCG - 1973.02.14)


O quarto é ainda uma enorme desarrumação, especialmente por causa daqueles montes de papéis e resíduos para os quais não se encontra encaixe. Tudo isto porque eu e o João Luís resolvemos dar outra disposição aos móveis. Sempre está melhor e houve variação, embora um pouco marceliana, isto é, estilo "renovação na continuidade" (abrenúncio, o diabo seja cego, surdo e mudo!) Tenho mesmo muito lixo aqui no quarto; amanhã ou depois tenho de fazer uma grande limpeza despejatória. Reparo que o verde das paredes é mortiço e doentio.  Mas além dos aumentos anuais, a D. Vitória não se preocupa com melhoramentos e renovações. (MCG - 1973.03.12)


Verdadeiramente o quarto até parece outro, mesmo atendendo à evolução na continuidade. Quem não gostou muito da brincadeira foi a D.Vitória, que ficou enxofrada por eu ter posto no corredor a abominável moldura do espelho da cómoda. Ao regressar a casa hoje aquilo estava de novo no meu quarto, arrumado embora num canto. Quando desci a ilustre senhora começou a mandar vir, que aquilo ficava no meu quarto e mais blá blá que me ia enchendo as medidas. Enfim, disse me que me alugou o quarto para dormir e se eu queria uma sala de convívio que alugasse um apartamento.  (!) Ah! Ah! Ah! ... e este até tem sido um ano sossegado: pouca gente vem para cá para o paleio e para ouvir música ou estudar como nos primeiros anos, nem as meninas ainda cá puseram os pés, como algumas de outrora, muito menos tendo eu feito qualquer tentativa nesse sentido. Enfim, a gente tem de desculpar os nervos dos outros! (Aquilo deve também ser por causa das fotografias e posters "imorais e contra os bons costumes". " Porcarias e palhaçadas", como doutras vezes desabafou. Mas o problema é que o monstro acima referido não ficará no meu quarto. Vamos deixar arrefecer o copo de água e quando a vozinha estiver menos agreste e o olhar menos sofredor atacarei novamente, desta vez com um sorriso Pepsodent, que doutro modo não vai a ilustre senhora. (MCG - 1973.03.13)


Os ares lá por casa andam tempestuosos. Começou já não sei bem porquê, continuou no dia em que paguei a pensão e deve ter piorado ontem: o João Luís e a Maria Antónia estiveram no meu quarto, à tarde, ouvindo música. A D. Vitória não grama o João Luís e uma rapariga lá em cima - ai Jesus, credo, que lá se vai o bom nome da minha casa!  Para além disso o João Luís não tem o mínimo sentido das conveniências, o que de modo algum serve para lançar água na fervura. (MCG - 1973.03.20)


Um dia maravilhoso, o de hoje: cheio de sol, embora haja núvens acinzentadas nos intervalos do céu azul e o ar esteja gélido.  Ali na sacada a Eglantina - com os seus longos cabelos louros e os bonitos olhos verdes - secava aqueles enquanto estudava Geografia Económica. (...) A Vicência aprimaverou‑se no vestuário mas eu é que não abandono a gabardina enquanto não vierem melhores dias. (MCG - 1973.03.22)


A F. veio cá este fim de semana, agora com o cabelo castanho fulvo e ondulado, mais o seu ar imponente, majestoso, de quem se julga e sabe boa (ou "sexy", que é o mesmo), de gato que brinca com o rato. Tenho ganas de quebrar-lhe toda aquela prosápia de mulher fatal. Mas, adelante. (MMC - 1973.03.25)


Temos uma criada nova, a Ricardina, míope e vestida de preto, com um ar submisso e tímido. O que não a impediu de pedir-me um casaco velho para o pai. Não, foi a resposta.  (MCG - 1973.03.30)


Passo agora horas seguidas a escrever, quer rascunhos manuscritos, quer dactilografando. Há pouco o Camilo berrou-me ali da casa dele para eu deixar de escrever à noite, pois está farto do tac-tac da máquina [pela noite dentro]. Mas cá em casa ainda ninguém se queixou. [A casa dele ficava na Rua dos Mercadores, o quarto dele na direcção do meu, avistando-se os terraços de ambas as casas] (MCG - 1973.04.14)


Ainda estou a mastigar a última talhada dum dos bolos que a D. Vitória deixou naquela travessa, especialmente para o "menino", a transbordar. Só lá ficaram umas poucas de migalhas: um tipo não tem nada que fazer e nos intervalos do trabalho (muitos devem ser eles, não?) vá lá uma trincadela! Ah! Ah! Ah! Pois é, a  ilustre senhora foi de abalada para o Cano, mai-la sua sobrinha, mas o seu derradeiro gesto, à partida, comoveu-me. (MCG  - 1973.04.16)


Acabei de jantar: o [Emídio] Guerreiro e eu comprámos comida no "snack" Camões e viemos de abalada até casa com um carregamento de salada russa (bah!), filetes de pescada (estavam bons mas tinham espinhas) e borrego assado com ervilhas (saboroso, mas a carne era tanta como os ossos). Meio queijito (que o Guerreiro tinha) e maçãs (que tenho ali) e fizemos a festa por 38$50 cada um. Ah! esquecia‑me, como fundo musical a "Pequena Sinfonia Nocturna", de Mozart. A cadeira (desmontável) que a minha mãe me deu permite um sentar confortável. Gosto muito de estar sentado nela: estuda‑se bem. (1974.04 24) 


Isto cá em casa tem sido uma aventura: um cano rebentado e alagando o antigo quarto do Sr. Prates, no r/c, obrigando-nos durante uns quinze dias escada acima escada abaixo para ligar e desligar a água, forçando a pragas entre dentes sempre que me não tivesse precavido a tempo e horas. Regressei, como sempre, necessitado dum bom banho. (...) Tomei-o sim, mas só hoje e a prestações, um enorme panelão aquecendo na casa de banho com água sendo retirada aos poucos para os recipientes apropriados. Uma aventura! (...) Enquanto estive de férias o sr. Prates apanhou um grande susto; enquanto tomava banho ouviu um estouro e água a esguichar por todos os lados. Ao fim duns três ou quatro anos de serviço o aquecedor entregou a alma ao seu criador, humanamente falando! Ah! mas já esburacaram para aí a casa toda, para consertar o tal cano e para fazer um buraco cá para cima, que o novo e enorme aquecedor, de 10 litros, como convém a uma casa de FAMÍLIA como esta, ficará na cozinha. Ah!Ah!Ah! Para meu sossego o sr. Prates diz que agora teremos água quente todo o dia. Parece-me fartura demais, mas quem sabe! Mas enquanto não tapam a buracaria toda tenho de ir lá abaixo ao r/c sempre que necessitar de qualquer coisa. 


Hoje foi dia de arrumação no meu quarto. Arrumei a roupa de inverno e retirei a de verão, deitei fora a roupa velha e... para mais não tive paciência. Tenho além a papelada e jornalada para arrumar e deitar fora, desde que eu e o João Luís fizemos a grande arrumação no meu quarto..(...) Pois, tínhamos arrumado com tudo para dentro do malão ou, doutro modo, arrumámos com a desarrumação, de modo que tenho andado desarrumado por não saber onde param as "coisas". Enfim... ficará talvez para domingo de manhã. De resto o domingo é o dia das minhas arrumações! (MCG - 1973.04.27)


Adeus, doce sossego das refeições, nos dias em que o rádio não trabalha!  Pois é, o sr. Prates comprou uma televisão e já houve programa ao jantar. Até o Diogo da Amareleja mudou de lugar (Agora é que ele enfia a comida fora da boca! Ah!Ah!Ah!) Pois é, mas para mim de nada me deve servir, salvo de pretexto para ir conviver um pouco... nos intervalos. Sim, que já sei por experiência própria que os programas que me interessam não interessam ao resto da "família", que fala quando não lhes interessa. (...) Também sei que a maioria prefere o I Programa quando o II me interessa, e vice versa. (1973.04.30)


Ao regressar a Luandm findas as férias em 1966/67, a minha mãe deixou-me o televisor Hitachi que trouxera de Angola, que cedi à D. Vitória quando na casa dela me hospedei, sendo colocado na sala de refeições para partilha pela "comunidade". Quando os programas que me interessavam não interessavam ao maralhal, ia vê-los no Café Alentejo.


Lá fora a chuva miúdinha cai miúdinha, salvo uma ou outra pinga mais forte desprendendo-se do beiral para o pátio. Está uma noite agradável. Algures ouve-se talvez um rádio. Ou será das "misses" na TV? A malta do café foi especar-se para ver as meninas desfilarem mostrando as suas plásticas e sorrisos e ademanes mais ou menos (des)elegantes. (MCG - 1973.04.30)


O céu está novamente azul e a tarde vai a meio. (...) No gira discos, música do século XVII, de Corelli. Nada condizente com a desarrumação que vai pelo quarto, com livros e papéis pelo divã, conjuntamente com as calças que a D. Vitória nunca arruma naquele simulacro de guarda fatos (MCG - 1973.05.01)


Qual é neste momento o meu anseio máximo? Descansar! Como sempre comecei a entusiasmar-me com o trabalho, desta feita o de Sociologia do Desenvolvimento, que já vai em ... - imaginem - dezoito páginas.  Como não sei parar para descansar, nem tenho possibilidades de fazê-lo, o resultado está à vista. Gostava de estar assim sentado, sentindo a brisa acariciando me o rosto e o afago duns dedos na minha pele. Mas não pode ser, que tu estás longe. E ... como reagiriam outras pessoas se eu fosse capaz de sentar-me ao fundo das escadas, seduzido pelo gosto bom  dum sorriso, e abraçasse, num gesto sem malícia, camarada, quase fraternal, a pessoa que lá estivesse? Ai Jesus, credo! Mas ... sê-lo-ia? (MCG - 1973.05.11)


Quem me entrou aqui pelo quarto dentro, mãos atrás das costas, esquadrinhando os posters e fotografias que tenho pelas paredes? O nosso amigo Luís (de Moura), que vai amanhã às inspecções. Convidei-o para almoçar comigo. (...) A casa da D. Vitória vai sofrendo modificações. Hoje foi o fecho da porta do meu quarto que o amigo Diogo, no entusiasmo duma conversa, houve por bem escangalhar. Agora é que eu corro sérios riscos! (Se não piadasse é que era para admirar). Pois é, mas ali na casa de banho pintaram janelas, portas, banheira e autoclismo dum verde quase abominável e puseram cortinas de plástico no postigo e na janela. Só falta uma alcatifa! Só não consigo entender-me com o raio do controle das águas quentes e frias do chuveiro. Não me lembro de ter feito comentários tão vernáculos como hoje: a água ou saía a escaldar ou gélida. (MCG - 1973.05.27)


Hoje andei em arrumações aqui no quarto. Ou melhor, desarrumei a desarrumação para arrumá-la. Tirei do fundo da mala as revistas e jornais que lá se amontoavam desde a última reforma mobiliária no quarto. Agora jazem pelo divã. Amanhã será a 2ª fase. Tem de ser aos poucos para o tempo chegar para tudo - mesmo não fazer nada - e eu não me chatear. (MCG - 1973.06.03)


O sorriso e a voz terna da Eglantina fazem[-me] desejá-la com toda a pureza da simplicidade que haveria de haver entre um homem e uma mulher. (MCG - 1973.06.17 A)


O Orlando faz hoje anos. Deve haver festinha. Reprovou na Escola e anda ouvindo discursos por causa disso há tanto tempo que já estou enjoado (...) A Vicência faz exame depois de amanhã. (...)  [O Orlando] deu-me alguns dos desenhos dele (que eu podia ficar com todos os que quisesse). Vai sendo altura de mudar a decoração do meu quarto. O rapazinho  agora pediu-me trabalho - não tem nada que fazer - de modo que desde sábado que me anda em arrumações aqui no quarto - ordenou-me revistas, separou-me jornais e amanhã vou comprar umas folhas de cartão para fazer cadernos para arquivar a papelada e revistas. (MCG - 1973.06.17 B)


Aqui estou no  café, hoje no Portugal. São dez da manhã. (...) O empregado acabou de pôr‑me aqui a sandes de fiambre e o galão. Já não posso ver o pão seco com manteiga mais o copo de leite em casa da D. Vitória. Nem o frango de aviário ou o bife (!) com arroz e batatas fritas ou as batatas fritas com fiambre e ovo. Que falta de imaginação, quanto mais não seja na apresentação. Claro que também já deito pelos olhos sandes de fiambre, abomináveis pregos no pão, galões claros, copos de leite frio.(MCG - 1973.06.28 A)


O Diogo apareceu-me hoje ao meio dia aqui pelo quarto, com o seu ar desempenado e sorridente, naquele seu jeito característico e uma grande bacalhoada. Fazia-lo pela Amareleja, mas pelos vistos , segundo ele, os ares por lá davam pouco rendimento, de modo que se veio aprochegando para o exame de Matemática. (MCG - 1973.06.28 B)


Está frio e eu cansado. Passo os dias na biblioteca ou no café, como vagabundo. Gosto do silêncio do meu quarto - só se ouve o tic-tac do relógio e o roçar da caneta no papel. O café, com o seu ruído e a fumarada, cansa-me. Mas lá é que estão as pessoas, lá é que se conversa, lá é que falamos a sério ou rimos a bandeiras despregadas, lá se gasta o dinheiro, em lanches e ceias, de pão de forma ou galões claros ou bolos. Uma pequena fortuna ao fim do mês.

(...) De tarde requisitei a sala de jantar, mais fresca, e lá fiz o estendal de livros e códigos e leis e decretos-leis, para tentar fazer um esquema da matéria para ver se amanhã me conseguia safar [no exame de Direito do Trabalho] (MCG - 1973.06.28 B). 


Entretanto crescia em mim o nervoso miudinho, daquele que faz picadas no estômago e amarga a boca; o amigo Diogo entretanto regressou e como não estava para estudar mais matemática resolveu ligar a televisão e fez se desentendido mesmo ás mais directas. Enfim, agarrei na trouxa e fui para o Arcada  (aquilo, quando me for embora de Évora  - ai que alívio! - até põem lá uma lápide rezando: "Só lhe faltou trazer para cá a cama e o bacio") 

Resumindo e concluindo, não fiz esquema nenhum, não estou com cabeça para fazê-lo e amanhã devo fazer uma linda figura. (MCG - 1973.07.01)


Charlot e o "seu" garoto espreitam cautelosamente pela esquina, buscando o polícia que os persegue e, façanhudo com o casse tête na mão, está por detrás deles.  A luz amarela do gira discos está acesa mas nenhum disco se faz ouvir neste momento. O tic tac do despertador enche o quarto: são 18:30. Não se pode entrar hoje no Arcada, cuja atmosfera deve ter muito pouco oxigénio, tornando-se assim irrespirável. (XXX - 1973.07.03)


Apareceu me hoje o Aristides lá pelo café; veio dos Açores para fazer exame de Economia II. Penso que tenciona fixar residência no Porto. Ficou hospedado na casa da D.Vitória, mais concretamente, no meu quarto. (...) (MCG - 1973.07.04)


Quem vai entrar em compressão de despesas sou eu. A D. Vitória, no próximo ano deixa de dar-me comida (ela acha que eu sou muito exigente e que não me contento com qualquer mistela) Assim, diz que me leva 500 paus pelo quarto e banhos. Com tratamento de roupas, 750 $ 00. Mas não me põe cadeiras novas no quarto nem me substitui a rede do divã ("Venha a nós o Vosso Reino"). Desabafou, desabafou, com a minha ingratidão. A conversa do costume, e que ninguém lhe dissera, como eu ontem, que antigamente o serviço e a comida eram melhores. Ai, como ela é minha amiga! Mas isso é lá à maneira dela. (...) "Que eu só gostava de comer com quem me agradava. Que quando era com as "senhoras" [D.Ilda e Teresinha] preferia comer sózinho" (MCG - 1973.07.08)


A D. Vitória sempre pôs-me um colchão novo no divã. Sempre terá valido para algo a minha conversata de há dias. (1973.07.15)


O Aristides foi-se embora hoje. Reprovou a Economia II. O que não é de admirar, cada vez mais desnorteado que ele anda, inquieto e sem rumo. (MCG - 1973.07.20)


Ontem à noite arrumei a papelada e a livralhada. Ali ao canto, um monte daquela transformada em lixo; pelos divãs e mesa outra cujo destino deve estar pronto em menos de uma hora. Depois, é arrumar os livros e a roupa para férias e ala para Paço d'Arcos. (MCG - 1973.08.01)


A tralha já está toda arrumada. A maleta de tecido escocês [vermelha], o velho saco dos TAP  e o saco beige, meus velhos companheiros de andanças pelas sete partidas, ali estão alinhados, abarrotando. Coitada da maleta, com tantos enchimentos abarrotantes dará em breve o berro! (MCG - 1973.08.02)


Conhecem este bater forte e martelado? Ah! a minha querida Olivetti Letera 22 está aqui comigo, no frio metálico da sua armadura, na circularidade das suas teclas pretas onde brilha a alvura das letras! Esmurradinha pelos cantos, carecendo duma afinaçãozita mas dócil aos meus dedos. Se não parecesse loucura dar-lhe-ia muitos beijinhos (...) Dou lhe umas palmadinhas, de satisfação, à minha inseparável companheira de sete anos: UMA VIDA! Sim, não é uma máquinazita qualquer, de baquelite e frágilzinha! NÃO! É uma máquina que dura que perdura. Que trocou Luanda por Lisboa, Porto, Évora... (1973.09.05)


Fui ontem aquela cidade mumificada (-museu, reza a propaganda turística!). Nem queiras saber como fiquei doente, como estive doente nas horas que estive naquela terra, que me parece um pesadelo, longe que dela estou. (...) Em Évora encontrei montes de malta: eram olás! hellos e bons dias quase pegados. Até encontrei o cobrador da camioneta da Amareleja! (MCG - 1973.09.08)


São umas 21 horas e daqui te envio um aceno amigo. Daqui da tabacaria da esquina, cheia de gente que aguarda ligações telefónicas. Estou com um princípio de valentíssima constipação. Acabei há pouco de jantar - uma porcaria! - e daqui a pouco vou até casa para terminar o trabalho de Doutrinas Sociais, cuja 2ª parte está fraquinha e desconexa da 1ª. Tenho de refundir uma ou 2 páginas.   Gostava de ter falado contigo hoje. Tenho saudades tuas - muitas. Escreves-me? (MCG 1973.10.09)


 É noite. Do pátio chega-me o esfregar da escova no cimento e da água que escorre. Música do século XVIII abafa (quase) o tiquetaque do relógio. São 19 horas em Évora. A cama desfeita, o pijama sobre o corpo, um bocejar enorme. A viagem foi mais fatigante e monótona, cortada por longos silêncios. Cansado - fatiga nervosa - resolvi ir jantar aos "Manuéis", eram 14 horas: vitela em molho de tomate e "mousse" de chocolate (a última!) (...) Em casa deitei me mas o dormir não veio e li o "Tintim", mais o "Expresso" (e as suas análises embirrantes, "higiénicas"), o "Comércio do Funchal" (e as suas "contradições de classe", agora em guerra com a "República"), o "Diário de Lisboa" e a "República" (cada vez me aborrece mais a "ingenuidade" do senhor Raúl Rego)... Enfim, agora é que são mesmo 19:00 horas e bocejo tremendamente, o que é mau sinal. (MCG - 1973.10.29)


Podia falar-te da tristeza sem sentido desta vida que levo. Da necessidade de agarrar o presente com ambas as mãos. Do nenhum entusiasmo ao avistar anteontem à noite as luzes de Évora. A viagem [de regresso da Amareleja] foi rápida, com minutos de silêncio, outros de conversa animada e outros de busca desesperada de palavras, no negrume da noite, com a estrada deslizando sob nós, o rádio transmitindo música e as pontes aparecendo bruscamente na curva da estrada, dois parapeitos brancos, esguios, varridos pelos faróis do automóvel. Chegados ao burgo, deixada a Marília e [outro] em casa, foi a busca dum lugar para estacionar. As aulas recomeçaram, mas ... quero ir-me embora. É quase uma obsessão. Évora e o Instituto não são apenas o negativo. Mas é ele que sobressai. Obsessivamente. O Diogo e eu temos falado. Como dantes. Quanto à Adélia ... tenho de dar-lhe a desculpa dos seus quinze anos! Quanto à D. Vitória tem-me recebido com um sorriso bom.  O sorriso que não tenho à minha volta nem dentro de mim. O Orlando tem feito grandes estádios no meu quarto. Por causa da máquina de escrever. O Camilo lá anda, com a verborreia do costume, um enorme trabalho de fim de curso (três caloiros a trabalharem para ele). O Carlos [Nunes da Ponte] com a pacatez habitual. O Guerreiro com os seus problemas, (...) só descobre defeitos e motivos de críticas a mim. Sou a válvula de escape dele.  (MCG - 1973.11.20)


Descobri hoje que a Eglantina tem olhos verdes. Encontrei-a ali na Rua Nova, quando ia ao correio. Apanhámos uma frialdade por causa do paleio.  Falou-me nas "desventuras" da nossa amiga [Adélia] e na desculpa que merecem os seus 15 anos. O que não impede que os "ares" andem maus. (MCG - 1973.11.27)


Lá em casa houve mudanças. As miúdas passaram para o "vosso" quarto [o das escadas para o terraço], no 2ºandar. Agora passam o tempo lá em cima e - parece-me - acabou o sossego,  com subidas e descidas constantes, a porta sempre abrindo e fechando, chamamentos do fundo das escadas para cima. Esperemos que acalme. 

Vindo da rua, deparei com a D.Vitória carregada com camas, que ajudei a transportar escadas acima, enquanto ouvia um desabafo: "Muito pena a gente para ganhar uns tostões!" Já ontem o Orlando me retorquira "ora, isto vai mal!" quando lhe fiz a pergunta habitual: "Então, sô Orlando, como vai isso?!" Referir se ia à sua "exclusão" do 2º andar? (MCG - 1973.12.04)


A Adélia agora passou ao outro extremo e anda muito cumprimentadora e sorridente. (MCG - 1973.12.06)


Ao chegar a casa - será por isso que o Camilo passa dias no café? - o desejo de entrar em nós e a desolação porque não se pode contar aos livros aquilo que nos vai na alma ou comunicar as maravilhas das descobertas que se vão fazendo diariamente. O carinho e a ternura estão fechados dentro de mim, por trás desta máscara que não é senão uma parte de mim. Não saberás o que é para mim este desenraizamento. Compreendo muita coisa - sei até coisas demais que não tenho onde aplicar. O quarto reflecte-se no negrume brilhante do vidro da janela onde se espelham os candeeiros. (..) O tempo foge-me por entre os dedos e não sei o que me ficará dele. (MCG - 1973.12.14)


1974

O quarto está gelado. Passei o fim de semana lendo umas coisas de antropologia. Tenho os "conhecimentos" um tanto ou quanto baralhados. A D. Vitória veio aqui há pouco trazer-me um doce e pêras de arroz doce. Está uma simpatia de senhora!  (MCG - 1974.01.03)


Ando muito cansado, necessitando de dormir umas boas sonecas, mas a cama de Évora não me seduz. O meu pai, que "descansou" uns minutos nela, disse que não valia a pena sacrificar-me: disse para comprar uma cama e um colchão decentes. Que pena não ter vindo mais cedo! (MCG - 1974.01.06)


É ao anoitecer. Ouço uma sessão de órgão que o Carlos [Nunes da Ponte] gravou para mim vai para uns 2 anos. Os óculos encavalitados no nariz, a minha mãe vai lendo um trabalho meu sobre “A ocupação portuguesa de Angola”.  Este é mais um postal para a colecção. É uma fotografia bonita, não é? ((1974.01.21 MCG)


O Carlos acabou de sair. Esteve aqui no paleio. Está frio; o quarto é grande demais para os 750 W do aquecedor. Ando num estado de tensão quase insuportável. Ainda não falei nem com o [Chico] Lucas nem com a Ana. Preciso simultaneamente de descontrair e de estudar. Sobretudo de descontrair. Precisava de um carro para sair de Évora, sem sujeições aos outros ou às camionetas. (MCG 1974 02 07)


A D. Vitória levou me hoje ao quarto uma dose de arroz doce. Ah!Ah!Ah! (MCG - 1974.02.16)


A nossa relação mútua sempre foi algo distante, talvez por não sermos muito expansivos. Mas a verdade é que a D. Vitória me aturou algumas madurezas e creio que me estimava. Sempre foram seis anos de convivência. Visitei-a algumas vezes quando ia a Évora depois de sair de lá e telefonei-lhe algumas outras, ficando contente por não esquecê-la. Morreu em 1998 e desse facto soube acidentalmente pela Noémia Mendes, que me vai dando notícias dos nossos conhecimentos comuns em Évora. A D. Vitória era solteirona, tal como os irmãos que com ela viviam: o sr. Prates e, posteriormente, a D. Joana. Na pensão ficavam sucessivamente os sobrinhos que do Cano vinham para Évora estudar, como o Manuel, a Ermelinda e o Orlando.

bb
A vida, é só uma e o "ser estudante" um momento dela. Que futuro será o meu, não sei. Não quero é que ele seja de estagnação. Há sempre - tem, de haver - um modo de conseguir que o momento que passa seja de conhecimento, um conhecimento que só é possível pelos outros e com os outros. A certeza é a nossa morte, tudo o resto é uma tentativa para superá-la ou para sobreviver-lhe. (MCG - 1974.03.13)


A Adélia não está já em casa da D. Vitória - quando fora de férias ia com armas e bagagens. Quanto ao Diogo - que passou a tarde no meu quarto - disse‑me que vai também sair. Está nas mesmas condições que eu e paga mais 50 paus que eu, i.e., 800 $ 00. (MCG 1974.04.17)


Passa da meia noite: o tic-tac do relógio enche o quarto. Os sacos estão arrumados e o quarto também. A mesa, essa ainda não. Arranjo um espaço à minha frente. Estou triste e cansado. Desta vida de estudante, o que mais me custa é a partida para férias. Ou porque as férias não têm sentido – a seguir há os exames e a preocupação deles – ou porque [sem ti, ausente] não têm qualquer significado. Bah! isto são balelas. (MCG - 1976.06.10)


O tempo está agradável, mas o meu espírito anda fora de mim. Não sei bem porquê! Olho para os livros aqui nos caixotes e sinto-me aprisionado. Já deviam ter seguido para qualquer parte, porque estando ainda aqui, significa que eu também estou e que não tenho ainda para onde ir. Sinto-me enredado parado! (1974.07.17)

Depois.... é preciso arrumar - convenientemente - a tralha nos caixotes, o que deve levar uns dois dias (por causa deste calor infame!) Entretanto vamos ver se cravo o meu tio Zeca Jones a vir até cá. (MCG - 1974.07.24)

São 19:30; o quarto parece um pandemónio, os caixotes derrubados pelo chão, enchendo-se de livros. Precisava dum bom banho. Os meus tios vêm amanhã e não vejo como acabarei de arrumar isto tudo. (MCG - 1974.08.01)

Já tenho os caixotes cheios. Comprei mais três, mas parece me que foi excessivo: um deve chegar para o que falta. O problema vai ser transportá-los para o r/c, para o quarto que foi do Diogo, de Santo Aleixo. Se não arranjar ajuda terei de esvaziá-los um a um, transportá-los e depois aos livros e tornar a enchê-los e pregá-los. Uma estopada. É um trabalho muito chato, para quem não tem muito método e de vez em quando tem de ir... arejar. (MCG - 1974.09.01)

Safa, que fartura! Isto não devia ser assim; cada vez que um tipo muda de casa é uma chatice. P'ra quê um tipo levar a tralha atrás? Sim, para quê? O sentido de posse é uma invenção diabólica, um atentado à liberdade. sete caixotes, um MALÃO e uma mala, eis a bagagem que fica em casa da D. Vitória.... E deitei fora seis sacos enormes cheios de papelada. Safa! (...) Estou para aqui todo partido. Vá lá que tive ajuda para transportar os caixotes do 2º andar para o r/c: o Cabeça, a Lídia e mais dois casais. (...) Foram uns tipos porreiros. O sr. Veladas, contínuo do ISESE, ajudou me a serrar tábuas e pregar os caixotes. Amanhã à tarde devo ter tudo pronto! (MCG - 1974.09.02)

Eu por cá ando, mas mais calmo, cheio até aos cabelos ... de encaixotamentos. Não há nada como a liberdade de nada possuir. Como dizia, salvo erro Salomão - ou Cristo? - "Olhai os lírios do campo que nada têm de vestir ou as avezinhas do céu... " Enfim, já não me recordo lá muito bem e a caneta com que escrevo é uma porcaria que agrava a gatafunhice. (MCG - 1974.09.05)


A D. Vitória levou‑me 500 paus pelo quarto em Agosto e 250 pela semana que estive em Setembro!!! Amigos, amigos, negociatas à parte. Diz que a partir do momento em que estiver empregado passarei também a pagar o armazém. Entretanto o [Custódio] Cónim ofereceu‑se para guardar a tralha toda lá no monte do pai, em Évora Monte. (MCG - 1974.09.13)


Ao longo dos seis anos que estive hospedado na casa da D. Vitória, algumas vezes deu-me um repente e deu-me vontade de zarpar imediatamente para outra casa, mas depois ... tinha tanta livralhada e papelada que me obrigava a acalmar e a não mudar.

 

O quarto

A casa da D. Vitória ocupava o  prédio. No r/c um pequeno pátio interior, com divisões que serviam de arrumo e de quartos do irmão Ambrósio e dos sobrinhos a estudar em Évora, sucessivamente o Manuel e o Orlando, assim como da empregada. A este pátio acedia-se a partir da cozinha e creio que nele havia um poço, o que é comum em edifícios nas zonas medievais. No 1º andar, ao qual se acedia através duma escada, situavam-se, na frente, o quarto das pessoas importantes, as que trabalhavam, sucessivamente o Carvalheiro, a D. Suzete e filha e o senhor Marquês. Por um breve período o quarto não foi arrendado, preferindo a proprietária reservá-lo a sala de estar. Um átrio permitia o acesso a este e a duas divisões interiores, a sala das refeições das pessoas importantes, incluindo os estudantes. O outro quarto interior, tinha janela para o pátio, tal como a cozinha, onde comiam a D. Vitória, os familiares e as raparigas estudantes. Aliás, estas, para salvaguarda da sua "integridade", e a sobrinha dormiam  conjuntamente  com a dona da pensão, no referido quarto. Neste piso havia três varandas de sacada.

No 2º andar para a frente havia dois quartos, um dos quais permitia o acesso ao terraço onde sr estendia a roupa para secar. Nas traseiras havia um quarto com janela para o pátio e vista para uma parede e telhados bem como a casa de banho, antecedida duma divisão interior. Para este pátio dava também a sede da ANP (Acção Nacional Popular)  com um pequeno postigo. A casa de banho tinha uma janela que dava para telhados e as raparigas tinham por hábito fechá-la quando tomavam banho, o que causou pelo menos duas  intoxicações devido ao facto do esquentador aí estar colocado e, tomando elas banhos umas a seguir às outras, não tinham o cuidado de arejar a divisão.  Uma das vezes é referida num dos meus poemas e outra obrigou-me a fazer respiração artificial boca-a-boca. Este piso era quase sempre ocupado apenas por estudantes, salvo o caso de duas delas, amigas, uma delas acompanhada pela mãe.

Contrariando a hospedeira, o meu quarto estava sempre ocupado por colegas do ISESE, rapazes e algumas raparigas, que iam estudar, conversar, ouvir música ou jogar às cartas. O que também acontecia com algumas das senhoras e das raparigs hospedadas.



Nas paredes uma serigrafia de Ribeiro de Pavia, adquirida para financiar as CDE's (Comissões Democráticas Eleitorais), uma foto duma mãe vietnamita chorando o filho morto na Guerra do Vietname e a reprodução duma pintura de Picasso. Em 1º plano vê-se o divã que me servia de cama
.



O ascético divã onde dormia. O armário servia de guarda roupa (nas gavetas) e de biblioteca. Nas paredes, uma litogravura de Ribeiro de Pavia (Alentejanos), adquirida numa campanha para recolha de fundos pelas CDE, para além de reproduções dum quadro de Picasso e fotos do Maio de 68, da Guerra do Vietname e em Angola e da Liz Taylor no filme "Quem tem medo de Virgínia Wolf ?"



Atrás do sofá, a servir de recosto, um colchão insuflável da tropa que trouxera de Luanda e à minha direita os sacos da TAP que me serviam para transportar a bagagem nas minhas viagens de avião ou para Lisboa/Porto ou aos fins de semana para a Amareleja ou, Beringel / Beja e regressos. 

Na parede a reprodução dum quadro de Van Gogh (Cafe Terrace, à noite), um Cristo, do Camilo, artesanato alentejano e uma foice que trouxera do monte do pai da Celeste, em Santo Amador (Moura). Também se vislumbram duas das garrafas de uísque das que comprava a bordo do avião nas viagens de regresso a Portugal. 

Afixado também um poster do ITAU, “O amor é um pássaro azul no alto da madrugada”, de Maria Rosa Colaço. Este e algumas das outras imagens afixadas nas paredes do meu quarto eram pela dona da casa de hóspedes consideradas "porcarias" e "poucas vergonhas", que em vão e por vezes quis que eu os retirasse.

O quarto tinha dois divãs, de rede, sobre a qual estavam colchões de palha de milho. Um deles servia-me de sofá e  o outro de cama.


Na porta um cartaz das campanhas eleitorais das CDE's (Comissões Democráticas Eleitorais). Nas mãos a minha caricatura para a Festa dos Finalistas do Liceu Salvador Correia (1965/66), da autoria do meu colega e amigo Carlos Barradas. Na mesa, para além de livros,  distinguem-se a máquina de escrever Olivetti Lettera 2000 e a calculadora Facit. Encostado à parede, o espelho da cómoda. O guarda-fatos não tinha porta; um cortinado verde fazia as vezes dela.



O ascético divã onde dormia, a mesa de estudo com o candeeiro mais a incómoda cadeira e, na cómoda, o gravador de cassetes, trazido de Luanda, o gira-discos Philips, comprado na loja do pai do Sertório, uma bandeja em vime, artesanato da Madeira oferecida pelo meu irmão, e a reprodução doutro quadro de Picasso. Por cima dos livros outra das "porcarias " e "poucas vergonhas",  uma foto (cartaz) a preto e branco dum dorso feminino, das nádegas ao pescoço. Em nenhuma das fotos aparece um poster de Charlot e de Jackie Coogan no filme O Garoto de Charlot.

 À esquerda o armário de  que se falou acima e à direita o "guarda-fatos", com um cortinado a servir de porta, e afixada na porta do quarto a minha caricatura feita pelo Carlos Barradas para a Festa de Finalistas do Liceu Nacional Salvador Correia, em Luanda, no ano de 1965 / 66.  Em 1º plano um dos livros das Teses do III Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro,  de 4 a 8 de Abril de 1973



Cartaz eleitoral das CDE (Comissões Democráticas Eleitorais)


Cartaz do ITAU


Litogravura de Ribeiro de Pavia, adquirida numa campanha de angariação de fundos das CDE /Comissões Democráticas Eleitorais), em 1969, durante a campanha para a então chamada Assembleia Nacional. A referida litogravura faz parte da série "Servos da Gleba", ilustrações de Pavia para o romance "Fanga", de Alves Redol,  escrito em 1943, que retrata a precária existência da população das lezírias, em luta contra a fome e a opressão.



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