Nas fotografias mais institucionais, cerimónias no Estado Novo, o que mais impressiona é a pompa oficial, a falta de naturalidade seja de que tipo for, as poses e a coreografia estereotipada.
» José Pacheco Pereira
21 de Setembro de 2024
Eu já vi milhares, muitos milhares de fotografias. Fotografias comuns e pouco
comuns entram no Arquivo Ephemera todas as semanas, quer por oferta, quer por
aquisição em feiras e velharias, em caixas, sacos ou álbuns familiares ou
institucionais. Estamos a falar de fotografias pré-digitais, em negativos e
papel, cobrindo o final do século XIX, e todo o século XX. As fotografias mais
antigas são na sua maioria tiradas em estúdios fotográficos ou por fotógrafos
amadores com equipamento. Depois dos anos 30 do século XIX a maioria das
fotografias de que falo são tiradas em máquinas individuais, de qualidade
desigual, propriedade de familiares das pessoas fotografadas ou de habitantes,
ou viajantes, dos locais que fotografam. São de um modo geral de formatos pequenos,
mesmo muito pequenos nas máquinas mais pobres. A dimensão das fotografias,
antes do seu conteúdo, também tem uma hierarquia social.
Há nas fotografias comuns, familiares e pessoais, padrões que são reveladores
de mentalidade, de práticas sociais, da forma como as pessoas se querem mostrar
ou se ver, ou registar eventos pessoais e familiares ou nalguns casos
institucionais, de empresas ou eventos públicos. Como estamos a falar de
milhares de fotografias, esses padrões envolvem a percepção do que se
fotografa. Por exemplo, crianças são uma “praga”, chamemos-lhe assim, bebés nus
ou vestidos de marinheiro, em cima de peanhas ou ridiculamente em poses
encenadas, as meninas com vestidos de tule, uma panóplia de criancinhas muitas
vezes forçados a ficarem quietas por uns minutos para serem fotografadas.
Significativo de como olhar mudou, algumas das fotografias de crianças nuas
hoje seriam vistas como pedofilia, como sexo em destaque, aliás como também o
mesmo aconteceria com a publicidade da Nestlé com bebés.
Como estamos num país católico, há fotografias dos sacramentos, em particular
três, baptismo, comunhão e casamento. Os outros sacramentos quase não são
fotografados. No caso da comunhão, as fotografias de adolescentes do sexo
feminino são muitas vezes difíceis de distinguir das do casamento. E casamentos
são milhares, podemos perceber que, naquilo que as pessoas não querem, as fotos
de casamento são das primeiras a serem deitadas fora. Toda a coreografia dos
casamentos está a ser estudada no Arquivo Ephemera e dará uma exposição que
será surpreendente. Como sempre entendemos, o valor da quantidade, que tem pior
fama do que a qualidade, permite perceber coisas novas.
Toda a coreografia dos casamentos está a ser estudada no
Arquivo Ephemera e dará uma exposição que será surpreendente
ara além das crianças, há bastante menos fotos de adolescentes, ou de jovens
adultos, começando em seguida uma série de fotos estereotipadas: praia, junto
de um carro novo, em almoços em restaurantes onde há um fotógrafo, reuniões de
empresas, viagens. Depois há fotos de adultos mais velhos, muitas vezes de
casais, arranjadas em combinações com sentido patriarcal, para presidirem à
memória familiar.
Muitos outros aspectos estão presentes nestas fotografias absolutamente comuns,
vestuário, posturas, encenações. É possível ver a pobreza, mas só espreitando
ocasionalmente. A pobreza não é matéria destes tipos de fotografias.
Quanto às fotografias mais institucionais, cerimónias no
Estado Novo, desfiles, missas, visitas de ministros, o que mais impressiona em
grande número é a pompa oficial, a falta de naturalidade seja de que tipo for,
as poses e a coreografia estereotipada. Claro que quando se olha para o detalhe
vê-se muita coisa que nestas fotografias que não é para ver, as cortinas
puídas, os vasos partidos, os móveis estragados, os tapetes gastos. E, no
conjunto das grandes encenações, a miséria política da ditadura, mas também o
papel dos militares e da igreja.
O exemplo que ilustra este artigo tem a seguinte legenda: 'Festa da Legião
Portuguesa. Prior de Sesimbra falando aos legionários' e é datada de 28 de Maio
de 1939
O exemplo que ilustra este artigo tem a seguinte legenda: “Festa da Legião
Portuguesa. Prior de Sesimbra falando aos legionários” e é datada de 28 de Maio
de 1939. O Prior está a berrar no comício, inflamado pela festa legionária que
ocorre em Setúbal, em vésperas da II Guerra Mundial. À sua volta está no
palanque a burguesia local vestida a rigor e alguns militares, ao seu lado, um
legionário pouco marcial, em baixo um rapaz pobre e um negro. O resto das
fotografias deste comício incluem condecorações e marcha dos legionários com as
espingardas anacrónicas. Tudo medíocre, provinciano, uma imitação paupérrima
dos regimes nazi e fascista. Mas, não nos enganemos, o Prior está lá como
padres, bispos e cardeal por todo o lado, mostrando o papel da igreja, mas, no
seu conjunto, esta gente engalanada e triste era perigosa.
O poder da fotografia é mostrá-lo demasiado bem.
O autor é colunista do PÚBLICO
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