* Victor Nogueira
Esta rectilínea artéria liga dois antigos povoados do que viria a ser a cidade de Setúbal. Ao longo dela, a sul, corria a muralha medieval, de que resta apenas um torreão junto à taberna do João do Grão, e os arruamentos transversais são a memória / testemunho onde se situavam postigos e portas de acesso ao povoado. Para Norte eram os arrabaldes, de hortas e quintas, para onde a cidade se passou a estender a partir do início do século XX. Nelas persistem algumas moradias com seus vastos quintais, a maioria delas votada ao abandono e para venda desde há anos. No lugar duma delas foi erguido o edifício onde se situa o Centro de Trabalho do PCP, o Edifício Arrábida - cujo último piso "reproduz" o que lá existira. O edifício primitivo tinha laboriosos tectos trabalhados, de estuque, e uma das salas tinha o tecto e as paredes pintados de modo a dar a ilusão de se situar no interior dum jardim povoado de aves.
As árvores agora reverdecidas dentro em breve estarão cobertas de flores roxas, como se fossem as buganvilias que caracterizavam Luanda.
1972
Uma breve paragem em Setúbal, para reabastecer a máquina e desentorpecer as pernas. (...) Escrevo enquanto espero o prego, o Compal de ananás e o iogurte de morango, aqui na esplanada dum café duma rua azafamada. O céu escureceu e à minha frente está cinzento. Daqui a pouco deve desabar um dilúvio. Gosto de Setúbal. Não sei bem porquê. É muito diferente de Évora. É mesmo o seu contrário: movimento e vida, azáfama e montes de pessoas, ruas largas e árvores. Reparo mais nas pessoas que em Évora. (MCG - 1972.12.28)
Demos hoje uma voltas por
Setúbal e pela Serra da Arrábida. Os arredores da cidade
são muito arborizados e algumas estradas correm junto ao mar (ou rio ?). Mas,
contrariamente ao de ontem, o dia de hoje esteve enevoado e chuvoso.
Tal como em Badajoz, existem
ruas por onde só passam pessoas, cheias de lojas. Fui visitar o Museu [Convento de Jesus]
que não tive tempo de ver totalmente. Fiquei apaixonado pelos primitivos portugueses (pinturas do século XVI), dum realismo e beleza impressionantes: as expressões, as lágrimas, as
ilusões de óptica... Tenho de lá voltar. Agora é que não posso deixar de ir
visitar - desta vez - o Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Também
apreciei muito uma escultura chinesa e, sobretudo, um S. Pedro de madeira, cor
de camarão, com as veias e as rugas tão reais, tão reais, que se fossem em
tamanho natural enganar‑me‑ia.
Terminei a minha digressão
turística com uma visita às Igrejas de Santa
Maria e de S. Julião. ([1])
Depois dum lanche frugal, apanhei a camioneta para Cacilhas, depois o ferry-boat para o Cais do
Sodré e o comboio para Paço de Arcos. Só me faltou andar de avião. Em Setúbal reconheci o Zeca Afonso. Refreei o impulso de perguntar‑lhe "Você é que é o Zeca Afonso
?" e deixei‑o seguir para um café da Praça do Bocage. (MCG - 1972.12.29)
postal ilustrado - frente
1973
Daqui da esplanada do
café, olhando à minha direita, a paisagem é esta. ([2]) Olha lá, e se a gente viesse
viver para Setúbal? É mais sossegada que Lisboa e é uma hora de camioneta! A
tarde está chuvosa, o café está cheio de gente, rapazes e raparigas, e a
passarada faz uma chilreada enorme por entre as árvores. (MCG - 1973.11.01)
postal ilustrado - verso
1996
De Setúbal falei nas linhas anteriores. Mas a cidade de hoje
nada tem a ver com aquela que me encantou, ponto de passagem dum estudante
universitário de Angola exilado em Évora a caminho de Lisboa ou do Porto.
Setúbal era a Avenida 5 de Outubro, com acácias floridas e as miúdas em bando,
era o estuário do Sado visto do Forte de S. Filipe, era o Castelo de Palmela
visto de qualquer ponto da cidade tal como o estuário do Sado com a Serra da
Arrábida ao fundo. Setúbal era também o
enorme paredão ribeirinho cheio de carros ao entardecer ou de pescadores de
cana, com o pôr do sol sempre variado espelhado nas núvens ou cintilando nas
águas do rio. Setúbal eram as praias, o desejo das praias que se vieram a
revelar desagradavelmente frias e de acesso difícil.
As acácias floridas, rubras ou roxas, a luminosidade do ar e
o céu azul faziam lembrar Luanda, tal como o Estuário do Sado, visto do Castelo
de s. Filipe, se assemelhava à baía de Luanda vista da Fortaleza de S. Miguel,
com a Península de Tróia confundindo se com a Ilha do Cabo.
Uma cidade são as pessoas, as pedras, as casas e a paisagem circundante.
Mas as pessoas de Setúbal revelaram-se uma desilusão. A cidade reúne a dimensão
humana das distâncias dentro de si própria das cidades pequenas com o
individualismo das grandes cidades onde cada um trata de si, sem a
solidariedade dos vizinhos mas, paradoxalmente, com a coscuvilhice e
maledicência destes: todos sabem de todos mas cada um trata de si. Nada da
camaradagem que encontrei entre as gentes do Barreiro!
[1] - A igreja de Santa Maria é a
Sé, com aspecto imponente; a de S. Julião, destruida pelo terramoto de 1755,
tem um aspecto desgracioso, mas conserva
dois portais manuelinos.
[2] - Árvores frondosas e trânsito
automóvel, que já não existem em 1996, a
estátua do Bocage e, ao fundo, o edifício da Câmara, onde vim a trabalhar de
1984 a 1987, além da casa, na altura azulada, por cima duma tabacaria, cheia de
sol, onde gostaria de viver e que compraria se tivesse dinheiro.. O café referido
no postal deveria ser o Central.
Cafe Canoa, à esquerda
Capela de N. Senhora da Conceição, onde era uma das portas da muralha medieval. Ao lado situava-se a Foto Cetóbriga, de Américo Ribeiro, onde desde o início da minha estada em Setúbal e até ao seu encerramento, já com outro proprietário, tirava as fotos tipo passe e revelava os rolos fotográficos,
Edifício Arrábida, que é um dos Centros de Trabalho do PCP
Capela de Santo António, junto a um dos postigos da murualha medieval
Neste edifício existe um restaurante onde por vezes almoçava quando saía em Setúbal nas viagens entre évoraburgomedieval e Lisboa
fotos em 2017.03.17
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Uma Photographia por si só vale por mil palavras?