O quê? O meu
avô era fotógrafo?
Era um fantasma que pairava há décadas pelo Arquivo
Municipal Fotográfico de Lisboa. A autoria do seu espólio fundador ficou
escondida até agora. Uma exposição revela finalmente quem andou a fotografar a
cidade durante dez anos na viragem do século passado. Há várias surpresas.
27 de
Novembro de 2016, 10:00
Foi um mistério
que atormentou durante anos os funcionários do Arquivo Municipal Fotográfico de
Lisboa, como um fantasma. Quem teria andado pela cidade, entre 1898 e 1908, a
fazer fotografias dos prédios e das ruas de uma forma tão estudada e
sistemática? De quem foi a ideia? Quem financiou tamanha empreitada? Foram
feitas várias tentativas para chegar a um nome, um estúdio, um fotógrafo, uma
acta de sessão de câmara, um relatório, um pagamento, mas nunca se conseguiu
nenhuma relação directa, nenhum documento, nada. Até agora: está provada a
autoria do Fundo Antigo, o conjunto de imagens fotográficas que, em
1942, deu origem ao arquivo e que é, até hoje, um dos mais importantes espólios
à sua guarda. É uma revelação enorme que traz consigo várias surpresas, a maior
das quais aquela que demonstra que não foi um, mas dois os fotógrafos
envolvidos neste monumental trabalho que deu origem a 3800 negativos em vidro,
e quase outras tantas provas em papel coladas em páginas de dezenas de álbuns
amarelecidos.
Os nomes da
primeira surpresa são: Arthur Júlio Machado (1867-1947) e José Candido
d’Assumpção e Souza (1856-1923), cortesia de uma equipa do arquivo da Rua da
Palma que, durante o segundo semestre do ano passado, não arredou pé enquanto
não descortinou as pistas que relacionassem algum nome a um conjunto de imagens
de extraordinária importância a vários níveis, a começar pelo seu lado inédito
em Portugal (em qualidade e em quantidade). Para além da intenção de
inventariar, cartografar e fotografar (numa época em que outras cidades
europeias estavam a fazer o mesmo), estas fotografias revelam o frenesi da
cidade, mostram que está viva, com crianças à espreita, varinas, carroças e
gente a conversar à janela.
Quando o
Arquivo programou uma exposição a partir das imagens do Fundo Antigo no
início de 2015, ainda não se sabia nada do que hoje se sabe. O que havia nessa
altura era o que sempre houve no arquivo: milhares de chapas de vidro com
fotografias de qualidade, um conjunto de grande coerência e imagens que
revelavam que se estava perante alguém “com sensibilidade” para captar “o
espírito da cidade” para além da frieza topográfica das fachadas, dos prédios,
das ruas.
A segunda
surpresa vem agarrada ao chavão que diz que, por vezes, aquilo que mais
procuramos está mesmo à frente dos nossos olhos. É que a chave para começar a
desvendar este mistério que perdurou tanto tempo até estava arquivada no…
Arquivo Municipal Fotográfico. Há cerca de 15 anos, Luísa Costa Dias, alguém
que sempre se bateu pela descoberta da autoria do Fundo Antigo e
directora daquela casa entre 1994 e 2011, ano em que faleceu, pediu a uma
historiadora de arte, Maria de Lurdes Ribeiro, para tentar a sua sorte. O
trabalho começou a ser feito, foi reunida documentação, mas não foi
estabelecida nenhuma ligação concreta. Certo é que entre a papelada arquivada
estava um requerimento de 20 de Julho de 1898, no qual constava uma proposta
para fotografar os prédios da cidade que para além de uma preocupação
estatística demonstrava uma atenção “memorialista” da urbe em transformação. E
como é que agora se chegou a este documento fotocopiado e arquivado no arquivo?
Paula Figueiredo Cunca, investigadora envolvida na equipa, explica: “Alguém se
lembrou que a Maria de Lurdes [também já falecida] tinha referido este
requerimento como alguma coisa que podia vir ser uma pista importante. Mas para
além dela, e desde essa altura, ninguém leu esse documento. Depois de o
encontrar e de o ler, percebi que estava ali tudo”. Para Cunca, uma das razões
por se ter demorado tanto tempo até se chegar à identificação da autoria (este
espólio ficou anónimo durante mais de cem anos se atendermos ao fim da captação
de imagens, em 1908) é que “sempre se julgou que se tratava de um fotógrafo
importante (Joshua Benoliel, por exemplo), um grande estúdio ou uma grande
encomenda”. E por isso, os caminhos das investigações anteriores foram sendo
feitos nesses sentidos. “Mexeu-se em muita documentação, mas nunca na
documentação certa.” E desta vez, até as obras de remodelação no arquivo, que
obrigaram a um adiamento desta exposição ajudaram, já que houve mais tempo para
a investigação.
Depois deste
primeiro fio condutor, as descobertas relacionadas com a actividade fotográfica
destes dois homens sucederam-se. Havia que corroborar os dados desse
requerimento, cruzá-lo com outras fontes para se confirmar com toda a certeza
de que se estava perante os autores certos. “A equipa inicial de duas pessoas
multiplicou-se e foi toda a gente para o Arquivo Municipal do Arco do Cego à
procura de documentação do expediente da Câmara que pudesse dar mais pistas,
folhas de pagamento, uma licença, qualquer coisa.” Foi aqui que se percebeu que
o trabalho foi pago a uma empresa (outra surpresa), a Machado e Souza,
constituída para levar avante o projecto.
E como é que
tudo começou? Em 1898 Arthur Júlio Machado e José Candido d’Assumpção e Souza
trabalhavam na Câmara como desenhadores no Serviço Geral de Obras. A sua
primeira intenção terá sido utilizar o registo fotográfico como uma ferramenta
utilitária, que ajudasse a indexar o parque urbanístico de Lisboa e que
orientasse os que decidiam as profundas transformações da cidade nessa viragem
de século (abertura de novas ruas e avenidas, novas zonas residenciais). Ao
mesmo tempo, a fotografia foi encarada como o melhor suporte iconográfico para
preservar a memória do edificado que ia sendo destruído para dar lugar a novas
construções. Quando submeteram o requerimento para aprovação, a 20 de Julho de
1898, os dois desenhadores lembraram que sua ideia não era nova e lamentaram
que outro projecto semelhante, iniciado em 1871, tivesse sido interrompido. A
isto juntou-se um arquitecto-chefe da câmara, José Luís Monteiro (1848-1942),
que apadrinhou logo a ideia e um chefe de Arquivo (também olisipógrafo),
Eduardo Freire de Oliveira (1841-1916), com um claro interesse pela construção
de memória visual da cidade.
Os dois
desenhadores apresentaram o seu projecto de uma forma pragmática: queriam fazer
fotografias “da frente ou frentes sobre a rua com a data em que foi tirada e
havendo em qualquer frente elementos decorativos, históricos ou archeologicos”
nos prédios, monumentos e edifícios públicos. É uma abordagem fotográfica até
então inédita na cidade, como nota Paula Figueiredo Cunca num dos textos do
catálogo que será impresso a propósito desta exposição. “Nunca assim se tinha
visto: fotografar para documentar a cidade sem inquietações comerciais, sociais
ou estéticas, mas urbanísticas.” No mesmo ano, obtiveram aprovação e começaram
a fotografar.
A consumação da
empreitada destes dois homens passava sobretudo pela “organização de álbuns com
as photographias dos prédios da cidade de Lisboa, acompanhadas da monografia de
cada um d’ elles, conforme a sua importância relativa”. Ou seja, para além da
tomada de vistas fotográficas de prédios, havia que fazer pelo menos duas
impressões de cada imagem e construir registos documentais com dados que
incluíam detalhes como o número de andares, nome do proprietário, nome da rua,
etc. Uma dessas cópias ficava arquivada, a outra seria para uso nos serviços de
obras.
E aqui entra a
terceira surpresa que é também um “reencontro”, depois de um “divórcio
forçado”. Quando o Arquivo Fotográfico saiu das instalações do Museu da Cidade,
os negativos viajaram com o primeiro e a maior parte dos álbuns ficaram no
segundo (não se sabe porquê). Perante a informação do requerimento de 1898, só
agora foi possível determinar que se trata do mesmo corpo de trabalho. O número
de cópias em papel corresponde, grosso modo, ao número de negativos
em vidro existentes do Fundo Antigo. Exemplares desses álbuns podem
ser apreciados na exposição do Arquivo (patente até ao dia 23 de Janeiro de
2017).
Descoberta a
identidade dos autores do espólio, a equipa do Arquivo lançou-se na investigação
de outros detalhes da vida destes dois funcionários que ajudassem a compreender
melhor as suas opções e o que os levou a embarcar nesta aventura. A informação
até agora recolhida permite saber que tiveram percursos profissionais de alguma
maneira ligados à criatividade e às artes. Eram técnicos com um olhar não
apenas topográfico, mas sensível ao pulsar da cidade. José Candido nasceu,
viveu e trabalhou em Lisboa. Frequentou aulas de Desenho e Pintura nas Belas
Artes. Começou a trabalhar na Direcção Geral dos Trabalhos Geodésicos, em 1877,
na secção de fotografia, mas foi como desenhador que viria desenvolver
carreira. Não foi possível identificar a formação académica de Arthur Júlio,
mas, para além da actividade como desenhador na câmara de Lisboa, sabe-se que
assinou projectos de arquitectura e que passou num exame de mestre-de-obras.
Foi compositor e maestro.
“Vê-se o amor que eles tinham por aquilo que estavam a fazer
Fernando Sousa (bisneto de José Candido)
Vamos a mais
duas surpresas? Nenhum dos descendestes dos autores tinha a mais pequena ideia
deste trabalho dos seus antepassados e foi com espanto que receberam a
novidade. O encenador e actor Carlos Avilez, neto de Arthur Júlio, com quem
viveu até aos 12 anos, diz que se falava publicamente do avô “por várias outras
coisas”, nomeadamente por compositor de operetas, peças teatrais e de revista.
Mas este seu trabalho como fotógrafo era-lhe desconhecido. “Ele nunca referiu
isto comigo. É extraordinário. Era uma pessoa de uma grande simplicidade e
sensibilidade, de enorme valor, mas não se elogiava a si próprio. Quando me
contaram fiquei surpreendido”, afirma Avilez ao PÚBLICO, que não teve dúvidas
quando lhe pediram para identificar o seu avô em duas fotografias do Fundo
Antigo onde posa (provavelmente) para o seu parceiro, José Candido. “A
documentação que o Arquivo reuniu sobre ele é de uma pesquisa extraordinária.
Batia tudo certo.” “Quero ir mais vezes à exposição. Ali encontro o meu avô.
Estou a olhar para o mundo dele.”
O sentimento de
Fernando Sousa, bisneto de José Candido e antigo jornalista do PÚBLICO, foi
muito parecido com o de Avilez. “Quando me disseram ‘Não sei se o senhor sabe
mas o seu bisavô foi uma das pessoas que fez o primeiro levantamento fotográfico
sistemático de Lisboa’ eu respondi ‘Estão a brincar comigo? Eu ouvi todas as
histórias de família e isso nunca foi abordado. Nunca ninguém me disse que o
meu bisavô tinha fotografado Lisboa dessa maneira”. Fernando ficou estupefacto
e continuou a duvidar, mas do outro lado insistiam: “Olhe que é verdade, foi
ele e outro sócio”. “Sócio? Eu nem sequer sabia que ele tinha uma empresa!”
Depois da documentação apresentada pelo Arquivo, Fernando ficou totalmente
convencido e diz que esta descoberta “traz outra alma às fotografias”. “Vê-se o
amor que eles tinham por aquilo que estavam a fazer, com a presença do elemento
humano, não há apenas edifícios, há pessoas, multidões, pessoas que estão à
espreita. E não são apenas um documento da cidade, são também documentos do
quotidiano, de vestuário, de relações sociais e de desenvolvimento da cidade.
Vê-se, por exemplo, que Lisboa era uma cidade pobre”, diz o bisneto, que
através das fotografias expostas sente uma relação “afectuosa” dos autores para
com a cidade. Para além deste lado humanista, Fernando destaca nas imagens do Fundo
Antigo “o retrato de uma Lisboa que está a desaparecer e de outra que
está a nascer”.
Agora, para
variar, uma coincidência. O artista que há mais de uma década construiu um
trabalho a partir das imagens deste espólio, a que chamou Anónimo,
apresentado na bienal LisboaPhoto de 2005, é o mesmo que fez a curadoria da
actual exposição no Arquivo, José Luís Neto. Quando começou a escolher imagens
do Fundo Antigo, nada se sabia sobre os autores. Mas a partir do
momento em que começaram surgir informações sobre quem eram estes homens, Neto
reposicionou o seu projecto expositivo tentando mostrar a “sensibilidade
incrível” dos dois desenhadores. “Quando isso aconteceu, vi que havia a possibilidade
de cruzar mensagens, do desenho, da arquitectura, da música. Comecei a rever
tudo.” Fugindo de qualquer sequência cronológica (os negativos têm a data
inscrita) ou geográfica, o curador decidiu criar vários núcleos temáticos, que
vão dos anúncios publicitários e da tipografia da cidade, às grandes
construções e monumentos, ou das árvores e da água aos muros. As mais de 100
fotografias mostradas respeitam a escala exacta do negativo (não houve
ampliações ou reduções do formato original 13X18 cm). Ao contrário do exercício
que foi feito em Anónimo, trabalho que foi reposto e que isola
figuras anónimas que vagueiam pela cidade, numa tentativa de dar a ideia de
descontínuo na fotografia e de aproximá-la ao desenho (coincidência?). Com a
descoberta dos autores do Fundo Antigo, a noção de “anónimo” no
trabalho de Neto foi reconfigurada – apenas as figuram que nele vagueiam
continuam de identidade desconhecida. Em conversa com o PÚBLICO, o artista diz
apreciar esta mutabilidade da essência do seu primeiro trabalho sobre um
espólio que conhece bem. “Esta é uma reposição muito feliz”.
Como é feliz o
nome escolhido para a exposição e que não podia ser outra coisa senão Lisboa,
Uma Grande Surpresa e que não podia vir de outro lugar senão das
imagens do Fundo Antigo (está algures nas imagens destas
páginas, basta olhar com atenção).
mistério que
atormentou durante anos os funcionários do Arquivo Municipal Fotográfico de
Lisboa, como um fantasma. Quem teria andado pela cidade, entre 1898 e 1908, a
fazer fotografias dos prédios e das ruas de uma forma tão estudada e
sistemática? De quem foi a ideia? Quem financiou tamanha empreitada? Foram
feitas várias tentativas para chegar a um nome, um estúdio, um fotógrafo, uma
acta de sessão de câmara, um relatório, um pagamento, mas nunca se conseguiu
nenhuma relação directa, nenhum documento, nada. Até agora: está provada a
autoria do Fundo Antigo, o conjunto de imagens fotográficas que, em
1942, deu origem ao arquivo e que é, até hoje, um dos mais importantes espólios
à sua guarda. É uma revelação enorme que traz consigo várias surpresas, a maior
das quais aquela que demonstra que não foi um, mas dois os fotógrafos envolvidos
neste monumental trabalho que deu origem a 3800 negativos em vidro, e quase
outras tantas provas em papel coladas em páginas de dezenas de álbuns
amarelecidos.
Os nomes da
primeira surpresa são: Arthur Júlio Machado (1867-1947) e José Candido
d’Assumpção e Souza (1856-1923), cortesia de uma equipa do arquivo da Rua da
Palma que, durante o segundo semestre do ano passado, não arredou pé enquanto
não descortinou as pistas que relacionassem algum nome a um conjunto de imagens
de extraordinária importância a vários níveis, a começar pelo seu lado inédito
em Portugal (em qualidade e em quantidade). Para além da intenção de
inventariar, cartografar e fotografar (numa época em que outras cidades
europeias estavam a fazer o mesmo), estas fotografias revelam o frenesi da
cidade, mostram que está viva, com crianças à espreita, varinas, carroças e
gente a conversar à janela.
Quando o
Arquivo programou uma exposição a partir das imagens do Fundo Antigo no
início de 2015, ainda não se sabia nada do que hoje se sabe. O que havia nessa
altura era o que sempre houve no arquivo: milhares de chapas de vidro com
fotografias de qualidade, um conjunto de grande coerência e imagens que
revelavam que se estava perante alguém “com sensibilidade” para captar “o
espírito da cidade” para além da frieza topográfica das fachadas, dos prédios,
das ruas.
A segunda
surpresa vem agarrada ao chavão que diz que, por vezes, aquilo que mais
procuramos está mesmo à frente dos nossos olhos. É que a chave para começar a
desvendar este mistério que perdurou tanto tempo até estava arquivada no…
Arquivo Municipal Fotográfico. Há cerca de 15 anos, Luísa Costa Dias, alguém
que sempre se bateu pela descoberta da autoria do Fundo Antigo e
directora daquela casa entre 1994 e 2011, ano em que faleceu, pediu a uma
historiadora de arte, Maria de Lurdes Ribeiro, para tentar a sua sorte. O
trabalho começou a ser feito, foi reunida documentação, mas não foi
estabelecida nenhuma ligação concreta. Certo é que entre a papelada arquivada
estava um requerimento de 20 de Julho de 1898, no qual constava uma proposta
para fotografar os prédios da cidade que para além de uma preocupação
estatística demonstrava uma atenção “memorialista” da urbe em transformação. E
como é que agora se chegou a este documento fotocopiado e arquivado no arquivo?
Paula Figueiredo Cunca, investigadora envolvida na equipa, explica: “Alguém se
lembrou que a Maria de Lurdes [também já falecida] tinha referido este
requerimento como alguma coisa que podia vir ser uma pista importante. Mas para
além dela, e desde essa altura, ninguém leu esse documento. Depois de o
encontrar e de o ler, percebi que estava ali tudo”. Para Cunca, uma das razões
por se ter demorado tanto tempo até se chegar à identificação da autoria (este
espólio ficou anónimo durante mais de cem anos se atendermos ao fim da captação
de imagens, em 1908) é que “sempre se julgou que se tratava de um fotógrafo
importante (Joshua Benoliel, por exemplo), um grande estúdio ou uma grande
encomenda”. E por isso, os caminhos das investigações anteriores foram sendo
feitos nesses sentidos. “Mexeu-se em muita documentação, mas nunca na
documentação certa.” E desta vez, até as obras de remodelação no arquivo, que
obrigaram a um adiamento desta exposição ajudaram, já que houve mais tempo para
a investigação.
Depois deste
primeiro fio condutor, as descobertas relacionadas com a actividade fotográfica
destes dois homens sucederam-se. Havia que corroborar os dados desse
requerimento, cruzá-lo com outras fontes para se confirmar com toda a certeza
de que se estava perante os autores certos. “A equipa inicial de duas pessoas
multiplicou-se e foi toda a gente para o Arquivo Municipal do Arco do Cego à
procura de documentação do expediente da Câmara que pudesse dar mais pistas,
folhas de pagamento, uma licença, qualquer coisa.” Foi aqui que se percebeu que
o trabalho foi pago a uma empresa (outra surpresa), a Machado e Souza,
constituída para levar avante o projecto.
E como é que
tudo começou? Em 1898 Arthur Júlio Machado e José Candido d’Assumpção e Souza
trabalhavam na Câmara como desenhadores no Serviço Geral de Obras. A sua
primeira intenção terá sido utilizar o registo fotográfico como uma ferramenta
utilitária, que ajudasse a indexar o parque urbanístico de Lisboa e que
orientasse os que decidiam as profundas transformações da cidade nessa viragem
de século (abertura de novas ruas e avenidas, novas zonas residenciais). Ao
mesmo tempo, a fotografia foi encarada como o melhor suporte iconográfico para
preservar a memória do edificado que ia sendo destruído para dar lugar a novas
construções. Quando submeteram o requerimento para aprovação, a 20 de Julho de
1898, os dois desenhadores lembraram que sua ideia não era nova e lamentaram
que outro projecto semelhante, iniciado em 1871, tivesse sido interrompido. A
isto juntou-se um arquitecto-chefe da câmara, José Luís Monteiro (1848-1942),
que apadrinhou logo a ideia e um chefe de Arquivo (também olisipógrafo),
Eduardo Freire de Oliveira (1841-1916), com um claro interesse pela construção
de memória visual da cidade.
Os dois
desenhadores apresentaram o seu projecto de uma forma pragmática: queriam fazer
fotografias “da frente ou frentes sobre a rua com a data em que foi tirada e
havendo em qualquer frente elementos decorativos, históricos ou archeologicos”
nos prédios, monumentos e edifícios públicos. É uma abordagem fotográfica até
então inédita na cidade, como nota Paula Figueiredo Cunca num dos textos do
catálogo que será impresso a propósito desta exposição. “Nunca assim se tinha
visto: fotografar para documentar a cidade sem inquietações comerciais, sociais
ou estéticas, mas urbanísticas.” No mesmo ano, obtiveram aprovação e começaram
a fotografar.
A consumação da
empreitada destes dois homens passava sobretudo pela “organização de álbuns com
as photographias dos prédios da cidade de Lisboa, acompanhadas da monografia de
cada um d’ elles, conforme a sua importância relativa”. Ou seja, para além da
tomada de vistas fotográficas de prédios, havia que fazer pelo menos duas
impressões de cada imagem e construir registos documentais com dados que
incluíam detalhes como o número de andares, nome do proprietário, nome da rua,
etc. Uma dessas cópias ficava arquivada, a outra seria para uso nos serviços de
obras.
E aqui entra a
terceira surpresa que é também um “reencontro”, depois de um “divórcio
forçado”. Quando o Arquivo Fotográfico saiu das instalações do Museu da Cidade,
os negativos viajaram com o primeiro e a maior parte dos álbuns ficaram no
segundo (não se sabe porquê). Perante a informação do requerimento de 1898, só
agora foi possível determinar que se trata do mesmo corpo de trabalho. O número
de cópias em papel corresponde, grosso modo, ao número de negativos
em vidro existentes do Fundo Antigo. Exemplares desses álbuns podem
ser apreciados na exposição do Arquivo (patente até ao dia 23 de Janeiro de
2017).
Descoberta a
identidade dos autores do espólio, a equipa do Arquivo lançou-se na
investigação de outros detalhes da vida destes dois funcionários que ajudassem
a compreender melhor as suas opções e o que os levou a embarcar nesta aventura.
A informação até agora recolhida permite saber que tiveram percursos
profissionais de alguma maneira ligados à criatividade e às artes. Eram
técnicos com um olhar não apenas topográfico, mas sensível ao pulsar da cidade.
José Candido nasceu, viveu e trabalhou em Lisboa. Frequentou aulas de Desenho e
Pintura nas Belas Artes. Começou a trabalhar na Direcção Geral dos Trabalhos
Geodésicos, em 1877, na secção de fotografia, mas foi como desenhador que viria
desenvolver carreira. Não foi possível identificar a formação académica de
Arthur Júlio, mas, para além da actividade como desenhador na câmara de Lisboa,
sabe-se que assinou projectos de arquitectura e que passou num exame de
mestre-de-obras. Foi compositor e maestro.
“Vê-se o amor que eles tinham por aquilo que estavam a fazer
Fernando Sousa (bisneto de José Candido)
Vamos a mais
duas surpresas? Nenhum dos descendestes dos autores tinha a mais pequena ideia
deste trabalho dos seus antepassados e foi com espanto que receberam a
novidade. O encenador e actor Carlos Avilez, neto de Arthur Júlio, com quem
viveu até aos 12 anos, diz que se falava publicamente do avô “por várias outras
coisas”, nomeadamente por compositor de operetas, peças teatrais e de revista.
Mas este seu trabalho como fotógrafo era-lhe desconhecido. “Ele nunca referiu
isto comigo. É extraordinário. Era uma pessoa de uma grande simplicidade e
sensibilidade, de enorme valor, mas não se elogiava a si próprio. Quando me
contaram fiquei surpreendido”, afirma Avilez ao PÚBLICO, que não teve dúvidas
quando lhe pediram para identificar o seu avô em duas fotografias do Fundo
Antigo onde posa (provavelmente) para o seu parceiro, José Candido. “A
documentação que o Arquivo reuniu sobre ele é de uma pesquisa extraordinária.
Batia tudo certo.” “Quero ir mais vezes à exposição. Ali encontro o meu avô.
Estou a olhar para o mundo dele.”
O sentimento de
Fernando Sousa, bisneto de José Candido e antigo jornalista do PÚBLICO, foi
muito parecido com o de Avilez. “Quando me disseram ‘Não sei se o senhor sabe
mas o seu bisavô foi uma das pessoas que fez o primeiro levantamento
fotográfico sistemático de Lisboa’ eu respondi ‘Estão a brincar comigo? Eu ouvi
todas as histórias de família e isso nunca foi abordado. Nunca ninguém me disse
que o meu bisavô tinha fotografado Lisboa dessa maneira”. Fernando ficou
estupefacto e continuou a duvidar, mas do outro lado insistiam: “Olhe que é
verdade, foi ele e outro sócio”. “Sócio? Eu nem sequer sabia que ele tinha uma
empresa!” Depois da documentação apresentada pelo Arquivo, Fernando ficou
totalmente convencido e diz que esta descoberta “traz outra alma às
fotografias”. “Vê-se o amor que eles tinham por aquilo que estavam a fazer, com
a presença do elemento humano, não há apenas edifícios, há pessoas, multidões,
pessoas que estão à espreita. E não são apenas um documento da cidade, são
também documentos do quotidiano, de vestuário, de relações sociais e de
desenvolvimento da cidade. Vê-se, por exemplo, que Lisboa era uma cidade
pobre”, diz o bisneto, que através das fotografias expostas sente uma relação
“afectuosa” dos autores para com a cidade. Para além deste lado humanista,
Fernando destaca nas imagens do Fundo Antigo “o retrato de uma
Lisboa que está a desaparecer e de outra que está a nascer”.
Agora, para
variar, uma coincidência. O artista que há mais de uma década construiu um
trabalho a partir das imagens deste espólio, a que chamou Anónimo,
apresentado na bienal LisboaPhoto de 2005, é o mesmo que fez a curadoria da
actual exposição no Arquivo, José Luís Neto. Quando começou a escolher imagens
do Fundo Antigo, nada se sabia sobre os autores. Mas a partir do
momento em que começaram surgir informações sobre quem eram estes homens, Neto
reposicionou o seu projecto expositivo tentando mostrar a “sensibilidade
incrível” dos dois desenhadores. “Quando isso aconteceu, vi que havia a
possibilidade de cruzar mensagens, do desenho, da arquitectura, da música.
Comecei a rever tudo.” Fugindo de qualquer sequência cronológica (os negativos
têm a data inscrita) ou geográfica, o curador decidiu criar vários núcleos
temáticos, que vão dos anúncios publicitários e da tipografia da cidade, às
grandes construções e monumentos, ou das árvores e da água aos muros. As mais
de 100 fotografias mostradas respeitam a escala exacta do negativo (não houve
ampliações ou reduções do formato original 13X18 cm). Ao contrário do exercício
que foi feito em Anónimo, trabalho que foi reposto e que isola
figuras anónimas que vagueiam pela cidade, numa tentativa de dar a ideia de
descontínuo na fotografia e de aproximá-la ao desenho (coincidência?). Com a
descoberta dos autores do Fundo Antigo, a noção de “anónimo” no
trabalho de Neto foi reconfigurada – apenas as figuram que nele vagueiam
continuam de identidade desconhecida. Em conversa com o PÚBLICO, o artista diz
apreciar esta mutabilidade da essência do seu primeiro trabalho sobre um
espólio que conhece bem. “Esta é uma reposição muito feliz”.
Como é feliz o
nome escolhido para a exposição e que não podia ser outra coisa senão Lisboa,
Uma Grande Surpresa e que não podia vir de outro lugar senão das
imagens do Fundo Antigo (está algures nas imagens destas
páginas, basta olhar com atenção).
Sem comentários:
Enviar um comentário
Uma Photographia por si só vale por mil palavras?