QUARTA, 4 DE JANEIRO DE 2012, 09H53
Amilcar Bettega
De Lisboa
Gosto de pensar no que faz um escritor (para) inventar histórias. Assunto complicadíssimo. Para já, essa palavra "inventar", tão inadequada nesse caso. Escrever, seria melhor palavra? Talvez, mas acho que me levaria fatalmente a uma abordagem diferente. Quando falo "inventar" refiro-me à criação, a bolar algo que não existia antes. O problema é que nada é de fato inventado.
Uma hipótese de ficção científica, apenas para ajudar na reflexão: imaginemos alguém que nasça já adulto, dotado de linguagem, dominando bem uma lingua e com o cérebro já formado para desempenhar todas as funções, inclusive a da expressão escrita. E que a primeira coisa que esse ser fantástico deva fazer é escrever uma história. Ele não tem nenhuma experiência de vida, nem mesmo o inconsciente de uma vivência intra-uterina, nada. Ele simplesmente "apareceu" no mundo, assim do nada. O que ele irá escrever?
Não dá para saber ao certo, já que isto não passa de um exercício de ficção, mas somos levados a pensar, sem muito medo de errar, que a resposta é: nada.
Simplesmente porque ele não tem nada atrás dele, não tem passado, não tem vivência, nenhum parâmetro a partir do qual "inventar" alguma coisa. Aí então, a primeira evidência: a literatura (a arte, em geral) está ligada diretamente à realidade (seja lá o que for isso, mas para efeitos da nossa reflexãozinha aqui, o mundo tal qual ele se apresenta a nós - o que vemos, tocamos, ouvimos, sentimos, etc, e a percepção global que fazemos disso).
Ok, mas então por que a tal realidade descrita fielmente não é, nunca foi (nem nos tempos áureos do mais ferrenho realismo), literatura?
Entre outras coisas porque a literatura (como qualquer arte) se situa no terreno da representação e não da reprodução. Representar. Re-presentar. Tornar presente outra vez, ou seja, algo que já foi presente e que volta, mas de outro jeito. Daí a necessidade da vivência, aí a identificação com o real.
E outra componente importante nessa equação é a questão espacial. Uma peça literária (como, outra vez, toda obra de arte) é materialmente finita. Mesmo que não tenha um início, meio e fim, em algum lugar ou momento ela começa e em outro (ou no mesmo) ela termina, em contraposição ao mundo e à existência humana que orbita em torno deste através dos tempos. Assim é impossível reproduzir o mundo (a dita realidade) tal e qual, em toda a sua extensão. É preciso recortar, selecionar, escolher o que vai entrar e o que vai ficar de fora da história - e eu arriscaria a dizer que é esse o ponto (ou pelo menos um dos pontos mais importantes): do que se apresenta como realidade, o escritor (o artista) seleciona (seleção esta que nunca é totalmente consciente e racional) o que vai fazer parte de sua obra, e no simples ato de escolher "x" e deixar "y" de fora ele transforma esta mesma realidade onde "x" e "y" e mais uma penca de coisas convivem.
Nem mesmo a fotografia, que alguns acreditam que desempenha com precisão o papel de registrar o mundo e que veio para liberar a pintura e até a literatura das representações figurativas e realistas (sim, liberou, mas não foi para isso que ela veio), pois nem ela, a fotografia, é cópia fiel da realidade. Ou melhor: a fotografia, desde que a encaremos como arte, é talvez a forma de expressão que mais transforma a realidade. Pelo simples gesto do recorte, o fotógrafo é capaz de levar aquele que vê a foto à construção de imagens poderosíssimas, muito maiores do que a "realidade" da qual foram extraídas, potencializando-a.
Como faz aliás toda a boa literatura, como deve fazer a arte.
Amilcar Bettega é escritor, autor de O vôo da trapezista, Deixe o quarto como está e Os lados do círculo(livro vencedor do Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira em 2005).
Fale com Amilcar Bettega: amilcar.bettega@terra.com.br
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Uma Photographia por si só vale por mil palavras?