João Silva já sabia que os rapazes não eram intocáveis. Até agora, tinha-lhe acontecido quase tudo: fotografar um amigo até à morte, por exemplo. Ainda não se tinha fotografado a si próprio gravemente ferido. Por Sofia Lorena
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Era um dia como os outros para os jovens fotógrafos. Dos quatro do Bang-Bang Club, como ficou conhecido o grupo que cobriu a violência na África do Sul antes das eleições de 1994, estavam três. João Silva, Ken Oosterbroek e Greg Marinovich. Faltava Kevin Carter, que haveria de os encontrar horas mais tarde num hospital. Era um dia como os outros: protestos, violência policial, muitos mortos e muitos feridos, muito sangue. A diferença é que a 18 de Abril de 1994 na township de Thokoza o sangue também seria deles, dos fotojornalistas que ficaram conhecidos por mostrar ao mundo o bang-bang de todos os dias nas townships do apartheid.
No livro que escreveu sobre esses tempos, e do qual João Silva é co-autor, Marinovich descreve como foi atingido no peito. Depois de ser arrastado por João Silva e por outro fotógrafo, ouviu gritar "Ken O foi atingido", "Procura um buraco de saída", pediu Marinovich a Silva, referindo-se ao seu próprio ferimento. "Ele ignorou-me. "Vais ficar bem", disse. Eu pensei que se ele não queria olhar devia ser grave, e, como pensava que tudo isto se estava a passar num filme mau, pedi-lhe que desse um recado à minha namorada. "Diz à Heidi que eu lamento... que a amo", disse eu. "Diz-lhe tu mesmo", respondeu."
A descrição de Marinovich continua até que outro fotógrafo se aproxima dele e de Silva para lhes dizer que "o Ken morreu". É então que João Silva decide aproximar-se de Ken e fotografá-lo. ""O Ken vai querer ver isto depois", disse a si próprio. Ele ficou aborrecido porque o Ken tinha o cabelo na cara, estragando a fotografia. O João tirou-nos fotografias aos dois - dois dos seus mais próximos amigos -, de mim estendido no cimento agarrado ao meu peito; do Ken a ser desajeitadamente levado em braços para a parte de trás de um carro blindado", escreve Marinovich. Horas depois, o fotógrafo nascido em Portugal, que fala português e tem passaporte sul-africano, haveria ainda de chorar ao colo de Kevin Carter. "Como pude fazer aquelas fotos de Ken? Será que perdi a minha alma?", interrogou-se, enquanto Carter retorquia: "Pelo menos tu estavas lá."
João Silva não morreu. Está vivo, na Alemanha, com a mulher, Vivian. Mas desta vez, 16 anos depois, foi ele o atingido. Sábado pisou uma mina no Afeganistão, domingo foi operado e amputaram-lhe as duas pernas abaixo do joelho. Ninguém sabe se voltará a ser o que era: fotojornalista de conflito.
Nesse dia de Abril de 1994, João Silva aprendeu a ter medo. E os fotógrafos do bang-bang aprenderam que as balas também os podiam ferir e matar. "Depois de quatro anos a observar a violência, as balas tinham-nos finalmente apanhado. O bang-bang tinha sido bom para nós até esse momento", escreve Marinovich no primeiro capítulo do livro The Bang-Bang Club.
"João Silva é o fotógrafo contemporâneo de conflito mais talentoso e corajoso. Sem excepção", escreveu agora no seu blogue Marinovich. A opinião pode ser considerada pouca isenta. Afinal, Marinovich é só o melhor amigo de João Silva, um dos sobreviventes do Bang-Bang Club. Mas é partilhada por outros. Michael Kamber, fotojornalista do The New York Times, jornal para o qual João Silva fotografa há anos, disse ao P2 mais ou menos o mesmo que Marinovich escreveu: "Ele é visto pelos colegas como um dos melhores... Eu penso que ele é o melhor fotógrafo de guerra vivo."
Marinovich e Kamber repetem palavras e expressões para descrever João Silva: generoso, cuidadoso, "fácil de se gostar" (Kamber diz que ele ia embedded com os soldados dos EUA "e eles adoravam-no"; depois ia embedded com os rebeldes xiitas, "e eles adoravam-no também"), "respeitado por todos" os que o conhecem. Enquanto Marinovich escrevia no blogue, os seus filhos entraram no escritório e aproximaram-se: "O meu filho Luc, de 5 anos, seguido de perto pela Madeline, de 4 anos. Eles pensam que o João é o melhor. Nota: todos os miúdos e os animais pensam que o João é o melhor. O Luc olhou para mim solenemente e disse: "Sempre que tu foste atingido, o João estava lá para te apoiar?" Sim, respondi [...]."
Uma coisa instintiva
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João Silva, português nascido em Odivelas que foi em criança para Moçambique e depois para a África do Sul, onde ainda vive, estava no vale de Arghandab quando pisou uma mina. Viajava embedded com uma unidade da Quarta Divisão de Infantaria dos Estados Unidos. Estar embedded com os norte-americanos é a única forma de trabalhar hoje em algumas zonas do Afeganistão. João Silva já o fizera muitas vezes, tal como João Pina costuma fazê-lo. Os dois conhecem-se pessoalmente desde o ano passado e estão em contacto desde 2001. Desta vez não se encontraram. "O meu último dia era o primeiro do João [embedded]", disse ao P2 por telefone. Pina esteve por ali, a uns 20 quilómetros da zona onde João Silva trabalhava quando pisou a mina.
João Silva continuou a fotografar. "Os que conhecem o João não vão ficar surpreendidos ao saber que ao longo do seu suplício ele continuou a tirar fotografias", escreveu Bill Keller, director executivo do NYTimes num memorando enviado à redacção. "Isso não me choca. Quando o Ken morreu, fotografou o processo todo e diz que se fosse ele do outro lado queria que tivessem feito o mesmo. Nele, o acto de fotografar é uma coisa puramente instintiva. Ninguém ficou admirado por saber que ele tinha continuado a fotografar [no Afeganistão]", disse João Pina.
Tiago Carrasco, jovem jornalista português que conheceu João Silva este ano na África do Sul, lembra-se de uma das fotografias do The Bang-Bang Club, quando o Ken já está morto e "o João está em cima dele a fotografar". "Ele disse que é instinto, que já não é premeditado. Quando acontece alguma coisa, o que faz é premir o botão, mesmo que tenha a ver com ele", contou Carrasco ao P2, recordando um serão em Pretória, com João Silva a partilhar as suas experiências. "O João é excelente, humilde... É extraordinário como ele fala daquilo de uma forma tão inocente, tão pura, sem impor a experiência dele sobre ti..."
Outros lembram-se de formas diferentes de dizer mais ou menos o mesmo sobre João Silva. "Ele não tem ego", assegura Michael Kamber. E isso é raro na profissão? "Sim, muito raro. O fotojornalismo está cheio de egos enormes. Muitos pensam que são estrelas de rock, que são famosos. O João usa sempre jeans e T-shirt, nunca vai aos festivais de fotografia, não concorre aos concursos, todas as grandes agências o quiseram recrutar, mas ele nunca quis. Ele só quer fotografar", resume.
A capacidade de ver tudo
João Silva é muito experiente, daqueles fotógrafos que não correm riscos que podem ser evitados. A zona em que caminhava com as tropas norte-americanas já tinha sido batida por detectores de minas e por cães. "O João é a pessoa com quem se quer estar numa situação de perigo. Ele salvou-me, puxou-me de uma multidão em que me queriam matar em Bagdad, pôs-me dentro de um carro...", recorda Michael Kamber, que começou a trabalhar com João Silva em 2003, precisamente no Iraque. "Estive com ele há um ano e meio em Sadr City [subúrbio xiita da capital iraquiana] e ele via tudo, via os fios dos engenhos explosivos improvisados, via que havia um helicóptero que nos estava a vigiar a dois quilómetros de distância, percebia onde estavam os insurrectos."
João Silva, 44 anos, fotografa o que quer fotografar: conflitos. "Ele só gosta de trabalhar em situações limite. Um trabalho em que não estejam a acontecer coisas não faz sentido para ele", descreve João Pina, que gosta disso, mas não só, apesar de repetir viagens como embedded para não perder a oportunidade de fotografar onde não se pode ir de outra forma. João Silva e os fotógrafos da sua idade, como os outros do Bang-Bang, "fazem parte de uma geração que cresceu e se afirmou a fotografar conflitos, têm outro espírito", diz Pina, de 30 anos.
João Pina gosta da emoção de algumas situações temperada com a tranquilidade de outras, mas João Silva também. O que ele faz é temperar a emoção do trabalho com a tranquilidade da família. "O João tem três coisas muito importantes na vida dele: a fotografia de conflito, que é o que ele faz há 20 anos; os carros e as motas, a sua outra forma de ter adrenalina; e a sua família, a calma da sua vida", diz João Pina. Greg Marinovich também faz uma referência às motas e aos carros no texto que publicou no seu blogue: "Ele tem uma tendência para o perigo e o risco, mas nunca é imprudente. Especialmente não nas muitas zonas de guerra que cobre. Embora, quando está atrás do volante de um carro, ou montado numa mota, aí quanto menos dissermos, melhor."
João Silva preferiu acordar a mulher às cinco da manhã do que arriscar-se a que ela soubesse o que lhe tinha acontecido sem ser por ele. A brincar, pediu-lhe um cigarro e a bomba da asma. É em Joanesburgo que vivem, na mesma cidade em que estão os pais do fotógrafo.
Tiago Carrasco lembra-se que João Silva lhe disse que estava a pensar voltar a viver em Lisboa, instalar-se em Portugal com a mulher e os dois filhos pequenos. "Ele falou muito do medo que tinha quando se ausentava, não por ele, era medo de que a família fosse alvo de algum ataque. Ele considerava Joanesburgo uma cidade mais perigosa do que Cabul", a capital afegã.
Instinto, necessidade de adrenalina, só saber fazer aquilo que se faz... Por que é que alguém continua a fotografar guerras, mesmo depois de ter aprendido a ter medo, de ter percebido que "os rapazes não são intocáveis", como escreveu Marinovich. João Silva já viu morrer muita gente, a começar pelos amigos.
Ken Oosterbroek morreu-lhe praticamente nos braços, em Abril de 1994; o quarto elemento do Bang-Bang, Kevin Carter, o que não estava na township, não sobreviveu muito mais. É ele o autor da polémica fotografia da criança com fome num campo de refugiados do Sudão e um abutre lá atrás a olhar. Era por isso que ele não estava lá nesse dia, tinha ido dar uma entrevista sobre o Prémio Pulitzer que essa foto lhe valeu. "Odeio esta foto", disse, numa altura em que já partilhara com os companheiros fotojornalistas que consumia drogas e tinha distúrbios psicológicos. Depois, matou-se.
João Silva continuou a fotografar a violência na África do Sul e depois fez o mesmo no Iraque, no Afeganistão, nos Balcãs, em Israel.
João Pina sugere que se continua pelo privilégio de "poder estar no meio da História a acontecer, em directo". Michael Kamber, que entrevistou Silva para um livro, diz que João Silva sempre sentiu "uma forte necessidade de documentar a História", ao mesmo tempo que acredita que "com uma fotografia por dia pode mudar-se a cabeça de uma pessoa por dia", não o mundo de uma vez, mas aos poucos. "Ele acredita completamente no fotojornalismo", afirma.
"Acredito que é curiosidade, querer ver a História a desenrolar-se diante dos nossos olhos. Talvez tenha a ver com a minha experiência pessoal com a independência de Moçambique e os portugueses a fugirem das colónias com medo de represálias", explicou o próprio João Silva, numa entrevista para um site da ONU há cinco anos. "E depois há o mais simples de tudo: eu gosto de o fazer. Passamos muito tempo em zonas de guerra, mas não passamos muito tempo com gente a disparar contra nós. Há dias em que há uma certa quantidade de adrenalina e isso é estimulante. Acima de tudo, há uma necessidade de mostrar ao mundo como a raça humana é tão complexa e lixada."
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No livro que escreveu sobre esses tempos, e do qual João Silva é co-autor, Marinovich descreve como foi atingido no peito. Depois de ser arrastado por João Silva e por outro fotógrafo, ouviu gritar "Ken O foi atingido", "Procura um buraco de saída", pediu Marinovich a Silva, referindo-se ao seu próprio ferimento. "Ele ignorou-me. "Vais ficar bem", disse. Eu pensei que se ele não queria olhar devia ser grave, e, como pensava que tudo isto se estava a passar num filme mau, pedi-lhe que desse um recado à minha namorada. "Diz à Heidi que eu lamento... que a amo", disse eu. "Diz-lhe tu mesmo", respondeu."
A descrição de Marinovich continua até que outro fotógrafo se aproxima dele e de Silva para lhes dizer que "o Ken morreu". É então que João Silva decide aproximar-se de Ken e fotografá-lo. ""O Ken vai querer ver isto depois", disse a si próprio. Ele ficou aborrecido porque o Ken tinha o cabelo na cara, estragando a fotografia. O João tirou-nos fotografias aos dois - dois dos seus mais próximos amigos -, de mim estendido no cimento agarrado ao meu peito; do Ken a ser desajeitadamente levado em braços para a parte de trás de um carro blindado", escreve Marinovich. Horas depois, o fotógrafo nascido em Portugal, que fala português e tem passaporte sul-africano, haveria ainda de chorar ao colo de Kevin Carter. "Como pude fazer aquelas fotos de Ken? Será que perdi a minha alma?", interrogou-se, enquanto Carter retorquia: "Pelo menos tu estavas lá."
João Silva não morreu. Está vivo, na Alemanha, com a mulher, Vivian. Mas desta vez, 16 anos depois, foi ele o atingido. Sábado pisou uma mina no Afeganistão, domingo foi operado e amputaram-lhe as duas pernas abaixo do joelho. Ninguém sabe se voltará a ser o que era: fotojornalista de conflito.
Nesse dia de Abril de 1994, João Silva aprendeu a ter medo. E os fotógrafos do bang-bang aprenderam que as balas também os podiam ferir e matar. "Depois de quatro anos a observar a violência, as balas tinham-nos finalmente apanhado. O bang-bang tinha sido bom para nós até esse momento", escreve Marinovich no primeiro capítulo do livro The Bang-Bang Club.
"João Silva é o fotógrafo contemporâneo de conflito mais talentoso e corajoso. Sem excepção", escreveu agora no seu blogue Marinovich. A opinião pode ser considerada pouca isenta. Afinal, Marinovich é só o melhor amigo de João Silva, um dos sobreviventes do Bang-Bang Club. Mas é partilhada por outros. Michael Kamber, fotojornalista do The New York Times, jornal para o qual João Silva fotografa há anos, disse ao P2 mais ou menos o mesmo que Marinovich escreveu: "Ele é visto pelos colegas como um dos melhores... Eu penso que ele é o melhor fotógrafo de guerra vivo."
Marinovich e Kamber repetem palavras e expressões para descrever João Silva: generoso, cuidadoso, "fácil de se gostar" (Kamber diz que ele ia embedded com os soldados dos EUA "e eles adoravam-no"; depois ia embedded com os rebeldes xiitas, "e eles adoravam-no também"), "respeitado por todos" os que o conhecem. Enquanto Marinovich escrevia no blogue, os seus filhos entraram no escritório e aproximaram-se: "O meu filho Luc, de 5 anos, seguido de perto pela Madeline, de 4 anos. Eles pensam que o João é o melhor. Nota: todos os miúdos e os animais pensam que o João é o melhor. O Luc olhou para mim solenemente e disse: "Sempre que tu foste atingido, o João estava lá para te apoiar?" Sim, respondi [...]."
Uma coisa instintiva
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João Silva, português nascido em Odivelas que foi em criança para Moçambique e depois para a África do Sul, onde ainda vive, estava no vale de Arghandab quando pisou uma mina. Viajava embedded com uma unidade da Quarta Divisão de Infantaria dos Estados Unidos. Estar embedded com os norte-americanos é a única forma de trabalhar hoje em algumas zonas do Afeganistão. João Silva já o fizera muitas vezes, tal como João Pina costuma fazê-lo. Os dois conhecem-se pessoalmente desde o ano passado e estão em contacto desde 2001. Desta vez não se encontraram. "O meu último dia era o primeiro do João [embedded]", disse ao P2 por telefone. Pina esteve por ali, a uns 20 quilómetros da zona onde João Silva trabalhava quando pisou a mina.
João Silva continuou a fotografar. "Os que conhecem o João não vão ficar surpreendidos ao saber que ao longo do seu suplício ele continuou a tirar fotografias", escreveu Bill Keller, director executivo do NYTimes num memorando enviado à redacção. "Isso não me choca. Quando o Ken morreu, fotografou o processo todo e diz que se fosse ele do outro lado queria que tivessem feito o mesmo. Nele, o acto de fotografar é uma coisa puramente instintiva. Ninguém ficou admirado por saber que ele tinha continuado a fotografar [no Afeganistão]", disse João Pina.
Tiago Carrasco, jovem jornalista português que conheceu João Silva este ano na África do Sul, lembra-se de uma das fotografias do The Bang-Bang Club, quando o Ken já está morto e "o João está em cima dele a fotografar". "Ele disse que é instinto, que já não é premeditado. Quando acontece alguma coisa, o que faz é premir o botão, mesmo que tenha a ver com ele", contou Carrasco ao P2, recordando um serão em Pretória, com João Silva a partilhar as suas experiências. "O João é excelente, humilde... É extraordinário como ele fala daquilo de uma forma tão inocente, tão pura, sem impor a experiência dele sobre ti..."
Outros lembram-se de formas diferentes de dizer mais ou menos o mesmo sobre João Silva. "Ele não tem ego", assegura Michael Kamber. E isso é raro na profissão? "Sim, muito raro. O fotojornalismo está cheio de egos enormes. Muitos pensam que são estrelas de rock, que são famosos. O João usa sempre jeans e T-shirt, nunca vai aos festivais de fotografia, não concorre aos concursos, todas as grandes agências o quiseram recrutar, mas ele nunca quis. Ele só quer fotografar", resume.
A capacidade de ver tudo
João Silva é muito experiente, daqueles fotógrafos que não correm riscos que podem ser evitados. A zona em que caminhava com as tropas norte-americanas já tinha sido batida por detectores de minas e por cães. "O João é a pessoa com quem se quer estar numa situação de perigo. Ele salvou-me, puxou-me de uma multidão em que me queriam matar em Bagdad, pôs-me dentro de um carro...", recorda Michael Kamber, que começou a trabalhar com João Silva em 2003, precisamente no Iraque. "Estive com ele há um ano e meio em Sadr City [subúrbio xiita da capital iraquiana] e ele via tudo, via os fios dos engenhos explosivos improvisados, via que havia um helicóptero que nos estava a vigiar a dois quilómetros de distância, percebia onde estavam os insurrectos."
João Silva, 44 anos, fotografa o que quer fotografar: conflitos. "Ele só gosta de trabalhar em situações limite. Um trabalho em que não estejam a acontecer coisas não faz sentido para ele", descreve João Pina, que gosta disso, mas não só, apesar de repetir viagens como embedded para não perder a oportunidade de fotografar onde não se pode ir de outra forma. João Silva e os fotógrafos da sua idade, como os outros do Bang-Bang, "fazem parte de uma geração que cresceu e se afirmou a fotografar conflitos, têm outro espírito", diz Pina, de 30 anos.
João Pina gosta da emoção de algumas situações temperada com a tranquilidade de outras, mas João Silva também. O que ele faz é temperar a emoção do trabalho com a tranquilidade da família. "O João tem três coisas muito importantes na vida dele: a fotografia de conflito, que é o que ele faz há 20 anos; os carros e as motas, a sua outra forma de ter adrenalina; e a sua família, a calma da sua vida", diz João Pina. Greg Marinovich também faz uma referência às motas e aos carros no texto que publicou no seu blogue: "Ele tem uma tendência para o perigo e o risco, mas nunca é imprudente. Especialmente não nas muitas zonas de guerra que cobre. Embora, quando está atrás do volante de um carro, ou montado numa mota, aí quanto menos dissermos, melhor."
João Silva preferiu acordar a mulher às cinco da manhã do que arriscar-se a que ela soubesse o que lhe tinha acontecido sem ser por ele. A brincar, pediu-lhe um cigarro e a bomba da asma. É em Joanesburgo que vivem, na mesma cidade em que estão os pais do fotógrafo.
Tiago Carrasco lembra-se que João Silva lhe disse que estava a pensar voltar a viver em Lisboa, instalar-se em Portugal com a mulher e os dois filhos pequenos. "Ele falou muito do medo que tinha quando se ausentava, não por ele, era medo de que a família fosse alvo de algum ataque. Ele considerava Joanesburgo uma cidade mais perigosa do que Cabul", a capital afegã.
Instinto, necessidade de adrenalina, só saber fazer aquilo que se faz... Por que é que alguém continua a fotografar guerras, mesmo depois de ter aprendido a ter medo, de ter percebido que "os rapazes não são intocáveis", como escreveu Marinovich. João Silva já viu morrer muita gente, a começar pelos amigos.
Ken Oosterbroek morreu-lhe praticamente nos braços, em Abril de 1994; o quarto elemento do Bang-Bang, Kevin Carter, o que não estava na township, não sobreviveu muito mais. É ele o autor da polémica fotografia da criança com fome num campo de refugiados do Sudão e um abutre lá atrás a olhar. Era por isso que ele não estava lá nesse dia, tinha ido dar uma entrevista sobre o Prémio Pulitzer que essa foto lhe valeu. "Odeio esta foto", disse, numa altura em que já partilhara com os companheiros fotojornalistas que consumia drogas e tinha distúrbios psicológicos. Depois, matou-se.
João Silva continuou a fotografar a violência na África do Sul e depois fez o mesmo no Iraque, no Afeganistão, nos Balcãs, em Israel.
João Pina sugere que se continua pelo privilégio de "poder estar no meio da História a acontecer, em directo". Michael Kamber, que entrevistou Silva para um livro, diz que João Silva sempre sentiu "uma forte necessidade de documentar a História", ao mesmo tempo que acredita que "com uma fotografia por dia pode mudar-se a cabeça de uma pessoa por dia", não o mundo de uma vez, mas aos poucos. "Ele acredita completamente no fotojornalismo", afirma.
"Acredito que é curiosidade, querer ver a História a desenrolar-se diante dos nossos olhos. Talvez tenha a ver com a minha experiência pessoal com a independência de Moçambique e os portugueses a fugirem das colónias com medo de represálias", explicou o próprio João Silva, numa entrevista para um site da ONU há cinco anos. "E depois há o mais simples de tudo: eu gosto de o fazer. Passamos muito tempo em zonas de guerra, mas não passamos muito tempo com gente a disparar contra nós. Há dias em que há uma certa quantidade de adrenalina e isso é estimulante. Acima de tudo, há uma necessidade de mostrar ao mundo como a raça humana é tão complexa e lixada."
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Fotógrafos criam fundo de apoio a João Silva2010-10-26Alfredo Leite O fotógrafo sul-africano Greg Marinovich avançou com a criação de um fundo financeiro para apoiar o repórter fotográfico português João Silva após o acidente sofrido no Afeganistão no passado sábado. . Greg refere que a constituição do fundo surge na sequência de várias solicitações nesse sentido feitas por amigos e conhecidos de João Silva, que amputou parcialmente as duas pernas depois de pisar uma mina durante o acompanhamento uma patrulha do exército norte-americano nos arredores de Kandahar.. O fundo destina-se a apoiar financeiramente João Silva e a família, mas os promotores ressalvam a possibilidade de, mais tarde, o jornalista poder canalizar os donativos para uma instituição de caridade já que, recorde-se, o jornal "The New York Times" (NYT), para quem o fotógrafo português trabalha na qualidade de contratado há vários anos, tem assumido até agora todas as despesas de saúde com o jornalista. . João Silva encontra-se internado no hospital de uma base norte-americana na Alemanha e responsáveis do NYT admitiram ao JN a sua transferência em breve para os Estados Unidos. . Marinovich é co-autor com João Silva do livro "Bang Bang Club" que retrata as vivências de ambos e de outros dois fotógrafos, Kevin Carter e Ken Oosterbroek, entretanto falecidos, na cobertura jornalística dos dias quentes do apartheid na África do Sul. O livro foi recentemente adaptado ao cinema num filme já premiado no festival de Toronto, no Canadá. . As contribuições para o fundo de apoio a João Silva pode ser efectuadas via payl pal no site http://www.storytaxi.com/ |
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